sexta-feira, julho 16, 2010

Ana Jorge, entrevista à GH

A GH entrevista, nesta edição, a ministra da Saúde Ana Jorge. Há, nas palavras da responsável pela tutela ideias frontais sobre a forma de estar na Saúde por parte de administradores hospitalares, médicos e enfermeiros.
Não deixa de fazer críticas a quem não presta um bom serviço, ao SNS, particularmente aos seus pares, e dá explicações sobre algumas das atitudes que tem tomado. Apesar de não ter dito directamente, sentimos que economizar é a palavra-chave do Ministério da Saúde, neste momento. E se algumas medidas foram tomadas, arriscamos dizer que muitas outras podem estar já a caminho.

Gestão HospitalarEstá a fazer-se uma boa gestão hospitalar, em Portugal?

Ana Jorge – Para se fazer uma boa gestão, num hospital, tem de se ter em atenção a necessidade de envolver os diferentes sectores profissionais. Mas isso nem sempre acontece…

GHPor culpa de quem? Dos médicos? Administradores? Enfermeiros?

AJ – Os enfermeiros são o grupo profissional que há mais tempo tem essa preocupação de envolver os diferentes actores; os médicos a seguir.
Relativamente aos administradores hospitalares, e do ponto de vista geral, penso que há uma questão que é essencial analisar: em minha opinião eles deviam estar equiparados aos directores de serviço de acção médica e não estão. Repare que os administradores hospitalares quando terminam o curso entram directamente no mercado e nos hospitais; não fizeram nenhum percurso anterior e vão, directamente, para um lugar de chefia, sem nunca terem dado provas concretas de que sabem gerir, neste caso um hospital.

GHE não é suficiente?

AJ – Não é suficiente. Repare que o director de serviço, médico, tem todo um percurso e uma actividade concreta, anterior, que lhe permitiram atingir o patamar em que está.
Logicamente que não pode trabalhar sozinho (nem deve) mas necessitaria de ter ao seu lado outra pessoa – que poderia muito bem ser o administrador hospitalar – com um passado de trabalho hospitalar, também real e concreto, para que em conjunto gerissem bem os hospitais.
Esta cultura não existe; ou melhor não está implementada, apesar de haver já alguns hospitais em que isso acontece e onde os resultados positivos estão à vista…

GHDê-me um exemplo de um hospital bem gerido.

AJ – Olhe, por exemplo, o Hospital de S. João, no Porto. Lá trabalha-se como se costuma trabalhar nos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) e resulta. Neste local, como noutros, há uma gestão conjunta – com pessoas da área médica e pessoas da área da gestão – e faz-se um trabalho com o mesmo objectivo e para o mesmo fim, de equipa. Eu sinto que o papel dos administradores hospitalares poderia situar-se bem nesta área…

GHO que me está a dizer é que os administradores hospitalares não têm prestado um bom serviço aos hospitais nacionais…

AJ – Não é bem isso. O que eu digo é que não têm feito este trabalho a par de outros responsáveis; não têm desenvolvido um trabalho conjunto com os directores de serviço e deviam faze-lo.
Até em termos físicos deviam estar no mesmo patamar que os restantes membros do Conselho de Administração.
Sei que o que estou a dizer é controverso, mas é o que eu penso; defendo isso e já constatei, no terreno, que quando isso existe as coisas melhoram, quer ao nível da relação com os profissionais de saúde – entre si – quer passando para os próprios profissionais essa política.

GHA questão da liderança não é importante em Saúde? Há quem defenda que se houver um bom líder, ao nível de gestão, as coisas acabam por estar facilitadas e ficam mais bem geridas. Acha que neste domínio há casos de sucesso devido à liderança dos Administradores Hospitalares?

AJ – A liderança é importante, quer na Saúde quer noutros sectores, e os administradores hospitalares não são diferentes das outras pessoas e dos outros sectores da saúde e, claro, que a liderança é importante e desejável.

GHHoje no Hospital de Santa Maria houve mais de 700 urgências. Como é que vai fazer cortes nas horas extraordinárias com esta situação?

AJ – O que eu acho é que para se poder gerir melhor as urgências convém que os administradores olhem para dentro e vejam como estão constituídas as equipas. Eu não gostaria de dar exemplos porque todos os conhecem mas há situações de equipas, relacionadas com as urgências, que têm de ser revistas e analisadas. Obviamente que há situações, principalmente nas grandes Urgências, em que, para segurança dos doentes, temos que ter equipas fortes e bem constituídas, porque sabemos que há situações de grande tensão, em que entram nos hospitais doentes em condições muito graves e complexas e onde acabam por existir, muitas vezes, equipas em stress total – e há que dar muita atenção a esses casos.
Mas certamente que há também casos, como em Santa Maria, em que muitas dessas 700 entradas pela Urgência, não correspondem, na sua totalidade, a casos graves e complexos.
Se formos analisa-los, com base na triagem de Manchester, concluímos que muitos deles estão no azul e no verde. No fundo, esse número acaba por causar uma grande pressão, junto dos profissionais de saúde mas não correspondem a casos muito graves, em termos clínicos. O que acontece é que como os médicos têm um número demasiado grande de doentes para ver, ficam com menos disponibilidade para atender os casos mais graves. Isto é muito complicado.

GHPensa que com o corte de cinco por cento nas horas extraordinárias consegue resolver a situação?

AJ – Penso que sim. O que peço aos administradores é que analisem a realidade que têm nos seus hospitais e conversamos a seguir…

GHA senhora ministra deu algumas ideias relativas à política do medicamento e da contenção que é necessário fazer, mas não referiu, por exemplo, a necessidade de se levar a cabo uma politica de antibióticos correcta, e que poderia ajudar a conter os gastos na Saúde…

AJ – O que considero importante na política de antibióticos não é só os gastos mas sim o problema das resistências que lhe estão associados e que, no fundo, tem a ver com a má prática clínica. Mas aí também os directores de serviço têm de tomar, nas suas mãos, uma atitude que pode fazer toda a diferença. É a eles que compete a criação de normas específicas dentro dos próprios serviços – aliás não só eles, tem de haver uma orientação geral nesse domínio e tem havido um trabalho muito grande por parte da DGS.
Vou dar-lhe um exemplo – que só serve de exemplo – em determinados serviços as pessoas sabem que para tratar uma pneumonia o primeiro antibiótico a aplicar deve ser penicilina endovenosa. E eu perguntaria, quantos directores de serviço definiram isto como regra? Quantos directores definiram para a política de antibióticos, dentro dos serviços que dirigem, regras específicas baseadas nos medicamentos a aplicar nas diferentes etapas – primeira, segunda e terceira?
A isto chama-se boa prática clínica. Tem de haver regras definidas em cada hospital e em cada serviço para não prescrever, numa urgência, Cefalosporinas de Terceira Geração. Não podem fazê-lo! A isto chama-se Governação Clínica.

GHAcha que a Central de Compras, a ser criada em breve, pode resolver muitos dos problemas da Saúde, ao nível dos gastos?

AJ – A Central de Compras vai resolver alguns dos problemas; vai ser possível fazer compras em maior volume e ter, portanto, uma maior capacidade de negociação com as empresas. Mas obviamente que isso tem também a ver com os prazos de pagamento que forem garantidos…

GHE há casos em que se pode gastar até mais do que o que se gasta actualmente…

AJ – Em alguns casos pode acontecer e é por isso que quem estiver à frente da Central de Compras vai ter que perceber concretamente o que é que fica mais caro e mais barato – adquirindo o que interessar através da Central, e, fora dela o que não interessar. Há que arranjar mecanismos que possibilitem estas duas opções.
Isto vai requerer também que quem está à frente dos hospitais perceba o objectivo da acção e aceite algumas determinações.
Se houver, por exemplo, um cirurgião que esteja habituado a trabalhar com um equipamento específico e se foi adquirido outro, através da Central de Compras, que apesar de ter as mesmas indicações é diferente daquele com que trabalhava, é lógico que tem de haver uma optimização de esforços e de vontades. É lógico que tem de haver regras e normas muito bem definidas e orientadas para que não haja discrepâncias relativamente ao que se pretende adquirir e o resultado final. Agora, temos de entender que não se pode agradar a todos e nem sempre podemos fazer o que queremos…

GHNa área dos medicamentos a actuação da Central de Compras pode não dar tão bons resultados como a outros níveis...

AJ – Vai depender do que se fizer e de como se fizer. Eventualmente pode não haver grandes ganhos com a aquisição de medicamentos através da Central. Agora o que se pode fazer é começar devagar, neste domínio, e ir alargando o leque de medicamentos a adquirir para uso hospitalar através da Central de Compras. Talvez assim se consigam definir parâmetros e estabelecer compromissos.

GHFalemos da “fuga” de médicos do sector público para o privado. Tem medo que a saída de muitos clínicos conceituados “esvazie” o sector público do valor e do conhecimento que até aqui mantinha?

AJ – Penso que não. Penso que há alguma capacidade para gerir a situação. E temos de ter uma coisa em atenção: todos sabemos que o sector privado está a dar mais condições financeiras, nomeadamente através dos salários e de prémios, mas sabemos também que as condições laborais que são dadas não são consistentes o que fez já com que algumas das pessoas que saíram tivessem, posteriormente, voltado para o sector público. O que gostaria de dizer é que temos condições para manter a capacidade e a boa qualidade a que o sector público hospitalar sempre nos habituou.
Repare neste exemplo: na área dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) há quem esteja, por opção, no sector privado mas a maioria está no sector público. As Unidades de Saúde Familiar (USF) e a reforma feita ao nível dos CSP têm sido um bom incentivo para que as pessoas se mantenham no público.

GHMas também há oposto. Há quem diga que no Público hoje já não há uma carreira, nem um projecto, nem se ganha mais do que no privado e que, portanto, não há motivação para continuar... Gostaria de saber a sua opinião.

AJ – Na questão da carreira temos estado a trabalhar e estamos no bom caminho. Tendo por base a regulamentação dos concursos sinto que estamos a fazer um bom trabalho. Em relação aos projectos – mais precisamente à não existência de projectos dentro dos serviços – considero que logo após a criação dos primeiros hospitais SA, isso não foi acautelado junto das direcções de serviços. Deviam ter sido criadas condições para que as pessoas não fossem para além do que deviam de ir e não se avançasse para a má prática clínica nos hospitais, o que por vezes aconteceu. Essa parte que não foi tida em consideração na altura e, portanto, criaram-se deficiências por não se ter enquadrado a situação de uma forma correcta. Infelizmente essa prática tem sobrevivido mas também já se começou a alterá-la.
Relativamente aos vencimentos, é lógico que o sector público nunca poderá pagar da mesma forma que o privado e com as mesmas regras. Mas deixe-me que lhe diga que Portugal, nesse aspecto, não está nada mal. Quando falamos com médicos de outros países, na Europa, ficamos a saber que eles não tem os mesmos vencimentos que nós. Ficam aquém de nós.

GHMuitos dizem que o Ministério da Saúde tem sob a sua tutela diversos organismos que poderiam ser extintos, ou interligados e que tal medida poderia trazer controlo de gastos…

AJ – De facto existem algumas dificuldades de articulação e em alguns casos isso poderia acontecer e dar resultados positivos. Seja como for, este não era o momento correcto para se fazer essa modificação.
Relativamente ao Alto Comissariado, neste momento está a ser desenvolvido o Plano Nacional de Saúde (PNS) e o Alto Comissariado, neste domínio, estamos a fazer um trabalho excelente. Como se percebe não era possível, neste momento, interromper o que está a ser feito e é por isso que vamos continuar o trabalho, tal como estava determinado, pelo menos nesta fase.
Fizemos, em todo o caso, uma pequena alteração no funcionamento do Alto Comissariado.

GH – A questão da receita médica e da colocação do preço do medicamento prescrito e do mais barato gerou alguma contestação por parte da ANF. Acha importante esta medida?

AJ – O paciente deve ser informado do preço dos medicamentos e do que poderia não gastar, ou poupar.
O médico, por seu lado, tem de ter um indicador, ou pelo menos uma ideia real, de que há outros medicamentos com a mesma qualidade que podem ser adquiridos por um preço mais baixo. É lógico que o clínico pode ter razões para optar pelo mais caro, mas o doente deve saber. No fundo, o médico é sempre responsável por aquilo que possa vir a acontecer ao doente e a decisão final é sempre dele, mas o doente pode e deve ser informado. Há duas coisas que temos de fazer cada vez mais: uma é aumentar a capacidade do cidadão para saber o que traz, de facto, risco para a saúde e, a outra, é que tenha acesso aos valores dos gastos em Saúde.

GHTem receio do futuro? Como vai ser o futuro?

AJ – Eu gostaria fundamentalmente que toda a gente entendesse o trabalho que está a ser feito, no sentido de salvaguardar o SNS. É bom que se saiba que se hoje o SNS faz sentido fará, no futuro, ainda mais sentido, porque a Saúde é sem dúvida algo sem a qual não se pode viver .
Nós construímos um Serviço Nacional de Saúde que conta já com 31 anos e penso que algumas das medidas que estão a ser tomadas, e outras que vão ter que ser consideradas, pretendem contribuir para a sua sustentabilidade. Muitas delas, no entanto não são passíveis de ser implementadas neste momento.
Os profissionais de Saúde tem, também, de ter consciência das posições dos serviços de saúde e agir em conformidade. Têm que perceber que alguns meios de diagnóstico não fazem sentido ser realizados e devem seguir as praticas comuns da Medicina e não fazer o que é desnecessário.
GH n.º 46, entrevista de Marina Caldas

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