quarta-feira, junho 23, 2010

Relatório Primavera 2010

Segundo Constantino Sakellarides a lógica de pensamento tem de mudar dos serviços para os processos

SNS precisa de novas «concepções» que «não são poesia»
A um Relatório de Primavera que mostra sinais de menos vigor relativamente a edições passadas, contrapôs-se, em parte, o discurso de Constantino Sakellarides, com a apresentação de novas «concepções» para o SNS, que «têm instrumentos, não são poesia».
O ambiente da sala, pequena e cheia, não parecia coincidir com a ideia do entusiasmo da renovação que está irremediavelmente ligado à apresentação do Relatório de Primavera, o décimo desde que o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) publica esta análise crítica sobre aspectos que marcam o sector da Saúde ao longo de cada ano. Na apresentação, realizada em Lisboa no passado dia 16, na Fundação Calouste Gulbenkian — entidade que passou a ser parceira no projecto —, foi de Constantino Sakellarides, um dos coordenadores do documento, que saíram as palavras mais críticas em relação aos caminhos que a Saúde está a seguir. No discurso, a que a ministra da tutela, Ana Jorge, não assistiu, o também director da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) lembrou que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) teve progressos significativos nos seus 30 anos de existência. Mas, em tom afável e de forma caricatural, sublinhou que agora «caminha para um beco sem saída».
Isto porque a lógica de pensamento dos cuidados de saúde continua «fixada na oferta», além de ter «várias formas sobrepostas de financiamento» e de contar com uma «pressão crescente para taxas moderadoras e co-pagamentos». E acrescentou: «Pensa-se sempre em oferta de serviços, nunca em pessoas.»
Afirmando que a alternativa é fazer a «transição dos serviços para o processo de cuidados», Constantino Sakellarides apontou que as chaves da mudança estão na «gestão do processo de cuidados, financiamento e contratualização», nos «sistemas de informação centrados no cidadão», na «literacia» e na «escolha».

Os instrumentos

O especialista em Saúde Pública sublinhou que «estas concepções têm instrumentos, não são poesia». Para demonstrar isso, explicou que primeiro que tudo seria preciso um «debate político anual sobre a Saúde», algo que «não existe». Ou seja, «as contas são apresentadas como contas, não como opções políticas». No que poderá ser entendido como uma alusão ao não cumprimento dos tempos mínimos garantidos definidos pela tutela para as consultas externas (ver caixa), o director da ENSP frisou que é preciso haver «garantias no acesso aos cuidados de saúde» e que estas sejam «cumpridas». Isto porque «a garantia é uma garantia, não é uma meta ou um desejo».
Outro dos instrumentos sublinhados por Constantino Sakellarides foi a criação de «sistemas electrónicos que integrem informação clínica em relação a cada pessoa», afirmando que «era bom que viessem o mais depressa possível». A realização de auditorias foi outra medida apontada, até porque «não é possível presumir que temos sistemas de informação de saúde sem auditorias».
Para o especialista, tem de se «aproveitar a oportunidade» dada pela crise «para fazer uma reforma mais profunda do SNS». Para isso acontecer, duas questões se colocam: uma é saber se é possível haver «superação da nossa governança», que leve a «respostas mais integradas, mais inteligentes e adequadas aos desafios»; a outra é aquilatar se «os efeitos dramáticos desta crise serão suficientes para esbater as resistências estruturais que a sociedade portuguesa tem em relação à mudança».
No ano em que o Relatório de Primavera se intitula «Desafios em tempos de crise», Constantino Sakellarides lançou mesmo um repto ao OPSS para «apresentar um relatório intercalar que responda a essas questões» dentro de seis meses.

Alguns destaques

«Tempo Medicina» destaca algumas das conclusões do Relatório de Primavera 2010 (que pode ser consultado em www.observaport.org), que teve como coordenadores Constantino Sakellarides, Ana Escoval e Pedro Lopes Ferreira.

Integração de cuidados

Os autores do relatório defendem a transferência de recursos dos hospitais para os cuidados de saúde primários. Afirmam que se pede, «e bem», aos CSP que «assumam e actuem em cada vez mais áreas», embora ainda não se tenha efectuado a «transferência e não crescimento» de recursos.

Reforma dos cuidados de saúde primários

Está escrito no relatório que a colocação no terreno dos agrupamentos de centros de saúde ficou «bastante aquém do êxito» das unidades de saúde familiar (USF). Afirmando que o acréscimo de dificuldades era «facilmente previsível», os autores do estudo apontam constrangimentos como a «legislação demasiado ambígua», «falta de uma política de investimento nos recursos humanos» e «inexistência de um modelo de financiamento global minimamente explícito». Afirmam ainda que é chegada altura de apresentar resultados das USF, até porque os aumentos das remunerações das de modelo B «são também uma realidade, que terá de ser justificada»

Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados

Apesar de reconheceram que a «capacidade de resposta da RNCCI cresceu», os investigadores apontam, contudo, «alguma predominância da institucionalização face à permanência no domicílio», além de continuarem a existir «alguns problemas na acessibilidade».

Programa Consulta a Tempo e Horas

Através da análise às especialidades de Oftalmologia e Gastrenterologia, o documento conclui que existe uma «resposta deficiente, muito desigual entre hospitais e com uma grande variabilidade nos critérios de referenciação». Sublinha-se ainda que o não cumprimento dos tempos mínimos garantidos «significa a quebra de um compromisso para com o cidadão-pagador».

Hospitais

O desenvolvimento da gestão intermédia é uma das principais medidas apontadas pelos investigadores no que respeita à reorganização hospitalar. Isto porque «a transferência das obrigações contratuais para o interior dos hospitais, através de contratualização interna, é imprescindível», devendo ainda «incluir metas económicas». Além de terem de ser «implementadas/reforçadas as unidades intermédias de gestão», é também indicado que o «financiamento deve ser justo e constituir-se como uma meta exequível». Outra das medidas apontadas é que o modelo de financiamento deve ser construído para se tornar numa «peça fundamental no planeamento estratégico».
Das recomendações feitas é de sublinhar o facto de os investigadores apontarem que «os níveis da oferta devem ser ajustados às necessidades efectivas em cuidados de saúde» e que «deve existir planeamento ao nível da distribuição de equipamentos e da concentração de serviços, através da existência de uma rede de referenciação adequada». Além disso, deve existir uma «preocupação crescente na implementação de um modelo de prestação de cuidados centrado no cidadão e nas suas doenças».

Prescrição de antibióticos

Apesar de reconhecerem que não se trata de um fenómeno exclusivamente português, os autores do estudo reafirmam que no caso das quinolonas a utilização deste antibiótico «continua a ser excessiva em relação a países de referência». Sublinham, a propósito, que «o Ministério da Saúde não tem sido suficientemente interventivo» na promoção de boas práticas, nomeadamente, na questão de «assumir as bases de uma política de prescrição baseada na melhor evidência científica».

Políticas de luta contra o tabagismo

É indicado no relatório que o impacte de medidas como o desenvolvimento de normas de boas práticas no tratamento do tabagismo e a proibição de fumar em locais públicos ficou «aquém do esperado». Os investigadores classificam ainda de «erráticas» e «pouco efectivas» as políticas de educação para a saúde, além de criticarem que os estímulos económicos aos consumidores são «contraditórios», uma vez que se combinam preços pouco elevados do tabaco e falta de comparticipação de terapêuticas.

Controlo da diabetes

Classificando de «preocupante» o facto de um estudo de 2009 ter apontado 12% de prevalência da diabetes entre os 20 e os 79 anos, os autores do relatório informam ainda que em relação a indicadores como amputações dos membros inferiores a diabéticos ou retinopatia diabética «pouco se alterou nos últimos anos». A juntar a isto, sublinha-se ainda que esta doença não está incluída no Plano Nacional de Saúde, que termina este ano, representando, contudo, «7% da despesa em saúde em 2008».
Os autores do documento defendem que a abordagem deve ser feita através de «respostas integradas que permitam a prevenção da diabetes e a identificação precoce de pessoas afectadas, no âmbito de cuidados suportados na evidência». De entre as medidas sugeridas pode destacar-se a realização de «rastreios custo-efectivos», o desenvolvimento de «competências nos profissionais para o atendimento de pessoas com doença crónica» e a «criação de mecanismos de acessibilidade a áreas críticas» para diabéticos, como a Oftalmologia e tratamento do pé diabético.

Tempo de Medicina 21.06.10

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