O desafio
A eleição de Pedro Passo Coelho para a presidência do PSD, com uma concludente vitória sobre os demais concorrentes, vem consolidar decididamente a vertente liberal do PSD, podendo contribuir para uma clarificação do espectro partidário no nosso país. Mas constitui igualmente um arriscado desafio político para o novo líder.
Uma das dificuldades de leitura do nosso sistema partidário sempre teve a ver com a equívoca identidade política do PSD. E o problema não estava somente na caracterização “social-democrata” constante do seu nome oficial – embora esta cause uma compreensível confusão, sobretudo lá fora –, mas sim na sua grande indefinição programática. É certo que o partido sempre foi comparativamente mais liberal do que o PS na área económica, tendo liderado a luta pelas privatizações, pela abertura da economia ao mercado e pela desintervenção do Estado na economia, embora sempre sem rupturas à la Thatcher. Todavia, até recentemente, o PSD não punha em causa nem a “Constituição social” nem o Estado social, tal como este foi sendo construído entre nós, sobretudo por iniciativa do Partido Socialista, nas áreas do ensino, da saúde e da segurança e protecção social. Complementarmente, o PSD adoptava um posição assaz conservadora na esfera dos valores sociais, nomeadamente na despenalização do aborto e na modernização do direito de família, que lhe davam uma vertente tipicamente de direita. Deste modo, o PSD podia apresentar-se, conforme os casos e as circunstâncias, como um partido simultaneamente liberal e social, conservador e reformista, de direita e de centro.
Por isso, a alternância política entre os governos do PSD e do PS não significava até agora grandes rupturas políticas no domínio das políticas económicas e sociais. Por um lado, os governos do PS não revogaram as medidas de privatização e de liberalização económica tomadas pelos governos do PSD. Por sua vez, os governos do PSD não punham essencialmente em causa o acquis social herdado dos governos do PS. Nessa área, a diferença de cada governo em relação ao anterior traduzia-se normalmente por avanços na área privilegiada de cada um, ou seja, a liberalização económica, no caso do PSD, e novas políticas sociais, no caso do PS.
Essa relativa continuidade política nas políticas económicas e sociais, levando a uma percepção de relativa indiferenciação entre os dois partidos (mais acentuada do que a realidade), pode vir a ser modificada pela adopção pelo PSD de uma “chave” política acentuadamente mais liberal nessas áreas. É certo que, desde pelo menos a presidência de Marques Mendes, o PSD dava claras mostras de distanciação em relação ao modelo de Estado social estabelecido entre nós, senão ao próprio conceito, como ficou demonstrado na radicais propostas de substituição do actual sistema “mutualizado” de pensões por um sistema de capitalização individual e de “liberdade de opção” nas áreas da saúde e da educação. Mas também é certo que tais propostas não conseguiram obter um apoio entusiástico nas hostes partidárias (muito menos fora delas) e não tiveram adequada sequência, nem sequer com Manuela Ferreira Leite, a qual, apesar de adoptar um discurso claramente neoliberal em matéria fiscal e de investimento público, não estendeu esse discurso à esfera social no seu programa eleitoral, com excepção da proposta de “liberdade de opção” na área da saúde.
A eleição de Passos Coelho, bem mais consistente do que os seus predecessores numa orientação ostensivamente mais liberal, em todas as áreas, pode levar o PSD a marcar uma identidade mais própria, quer em relação ao PS (sobretudo na área das políticas sociais), quer em relação ao CDS (sobretudo na área da liberdade individual). É de esperar, por um lado, uma orientação marcadamente mais apostada na retirada do Estado da esfera económica, na privatização dos serviços públicos subsistentes (água, transportes, etc.), na liberalização e privatização dos serviços sociais, na redução do peso da despesa social do Estado, na diminuição do investimento público, na diminuição da carga fiscal (sobretudo no IRS e nos impostos sobre as empresas). É de aguardar, por outro lado, uma atitude menos conservadora do PSD do que a tradicional na esfera da liberdade de costumes. O resultado desta operação será provavelmente um partido por um lado mais liberal e menos social, mais cosmopolita e menos conservador.
Resta saber da viabilidade desta nova orientação política do PSD como alavanca do regresso ao governo, do qual tem estado afastado há 15 anos, exceptuado o mal sucedido interregno de 2002-2005. As condições não são seguramente as melhores para fazer vingar um discurso retintamente liberal, pelo menos na área social. As dificuldades orçamentais do país podem justificar o apelo para uma redução da despesa pública, mas também não ajudam em nada uma proposta de diminuição da receita fiscal. O elevado endividamento público pode justificar a redução dos encargos sociais e do investimento público, mas as carências sociais e o défice de crescimento económico tornam politicamente pouco apelativo um ataque em forma às políticas sociais e às obras públicas. Qualquer dessas apostas poderia reverter em vantagem do PS, que permanecerá fiel ao Estado social e ao papel do Estado na regulação e dinamização da economia.
O desafio do novo presidente “laranja” consiste em saber se vai ser capaz de “vender” um discurso liberal sob condições socialmente e politicamente adversas, sendo a resposta certa para a “saudade de poder” do PSD, ou se não passará de mais uma solução efémera na vertiginosa sucessão de líderes em que o PSD se tem tornado especialista.
Vital Moreira, JP 30.03.10
Uma das dificuldades de leitura do nosso sistema partidário sempre teve a ver com a equívoca identidade política do PSD. E o problema não estava somente na caracterização “social-democrata” constante do seu nome oficial – embora esta cause uma compreensível confusão, sobretudo lá fora –, mas sim na sua grande indefinição programática. É certo que o partido sempre foi comparativamente mais liberal do que o PS na área económica, tendo liderado a luta pelas privatizações, pela abertura da economia ao mercado e pela desintervenção do Estado na economia, embora sempre sem rupturas à la Thatcher. Todavia, até recentemente, o PSD não punha em causa nem a “Constituição social” nem o Estado social, tal como este foi sendo construído entre nós, sobretudo por iniciativa do Partido Socialista, nas áreas do ensino, da saúde e da segurança e protecção social. Complementarmente, o PSD adoptava um posição assaz conservadora na esfera dos valores sociais, nomeadamente na despenalização do aborto e na modernização do direito de família, que lhe davam uma vertente tipicamente de direita. Deste modo, o PSD podia apresentar-se, conforme os casos e as circunstâncias, como um partido simultaneamente liberal e social, conservador e reformista, de direita e de centro.
Por isso, a alternância política entre os governos do PSD e do PS não significava até agora grandes rupturas políticas no domínio das políticas económicas e sociais. Por um lado, os governos do PS não revogaram as medidas de privatização e de liberalização económica tomadas pelos governos do PSD. Por sua vez, os governos do PSD não punham essencialmente em causa o acquis social herdado dos governos do PS. Nessa área, a diferença de cada governo em relação ao anterior traduzia-se normalmente por avanços na área privilegiada de cada um, ou seja, a liberalização económica, no caso do PSD, e novas políticas sociais, no caso do PS.
Essa relativa continuidade política nas políticas económicas e sociais, levando a uma percepção de relativa indiferenciação entre os dois partidos (mais acentuada do que a realidade), pode vir a ser modificada pela adopção pelo PSD de uma “chave” política acentuadamente mais liberal nessas áreas. É certo que, desde pelo menos a presidência de Marques Mendes, o PSD dava claras mostras de distanciação em relação ao modelo de Estado social estabelecido entre nós, senão ao próprio conceito, como ficou demonstrado na radicais propostas de substituição do actual sistema “mutualizado” de pensões por um sistema de capitalização individual e de “liberdade de opção” nas áreas da saúde e da educação. Mas também é certo que tais propostas não conseguiram obter um apoio entusiástico nas hostes partidárias (muito menos fora delas) e não tiveram adequada sequência, nem sequer com Manuela Ferreira Leite, a qual, apesar de adoptar um discurso claramente neoliberal em matéria fiscal e de investimento público, não estendeu esse discurso à esfera social no seu programa eleitoral, com excepção da proposta de “liberdade de opção” na área da saúde.
A eleição de Passos Coelho, bem mais consistente do que os seus predecessores numa orientação ostensivamente mais liberal, em todas as áreas, pode levar o PSD a marcar uma identidade mais própria, quer em relação ao PS (sobretudo na área das políticas sociais), quer em relação ao CDS (sobretudo na área da liberdade individual). É de esperar, por um lado, uma orientação marcadamente mais apostada na retirada do Estado da esfera económica, na privatização dos serviços públicos subsistentes (água, transportes, etc.), na liberalização e privatização dos serviços sociais, na redução do peso da despesa social do Estado, na diminuição do investimento público, na diminuição da carga fiscal (sobretudo no IRS e nos impostos sobre as empresas). É de aguardar, por outro lado, uma atitude menos conservadora do PSD do que a tradicional na esfera da liberdade de costumes. O resultado desta operação será provavelmente um partido por um lado mais liberal e menos social, mais cosmopolita e menos conservador.
Resta saber da viabilidade desta nova orientação política do PSD como alavanca do regresso ao governo, do qual tem estado afastado há 15 anos, exceptuado o mal sucedido interregno de 2002-2005. As condições não são seguramente as melhores para fazer vingar um discurso retintamente liberal, pelo menos na área social. As dificuldades orçamentais do país podem justificar o apelo para uma redução da despesa pública, mas também não ajudam em nada uma proposta de diminuição da receita fiscal. O elevado endividamento público pode justificar a redução dos encargos sociais e do investimento público, mas as carências sociais e o défice de crescimento económico tornam politicamente pouco apelativo um ataque em forma às políticas sociais e às obras públicas. Qualquer dessas apostas poderia reverter em vantagem do PS, que permanecerá fiel ao Estado social e ao papel do Estado na regulação e dinamização da economia.
O desafio do novo presidente “laranja” consiste em saber se vai ser capaz de “vender” um discurso liberal sob condições socialmente e politicamente adversas, sendo a resposta certa para a “saudade de poder” do PSD, ou se não passará de mais uma solução efémera na vertiginosa sucessão de líderes em que o PSD se tem tornado especialista.
Vital Moreira, JP 30.03.10
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