ACF, entrevista ao TM
Adalberto Campos Fernandes sobre novo modelo de financiamento dos hospitais: «Alterações» deviam ser debatidas com «profundidade»
Em entrevista ao «Tempo Medicina» após ter deixado a presidência do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Adalberto Campos Fernandes diz que se despediu de Ana Jorge com um «até breve» e que estará sempre «ao lado» daquela que considera a sua casa. Quanto ao novo modelo de financiamento dos hospitais do SNS, defende que o mesmo deveria ter sido debatido «com a devida profundidade».
«Tempo Medicina» — Mal se soube da sua saída, começaram a surgir comentários a lamentar a decisão e a elogiar o seu trabalho. Estava ciente desse apreço?
Adalberto Campos Fernandes — Eu sentia-me bem. O melhor indicador que podemos ter sobre a apreciação do trabalho é quando de manhã acordamos e vamos felizes e motivados. Por outro lado, quando circulamos pelos corredores da instituição ou quando recebemos as pessoas e interagimos… penso que qualquer gestor tem como preocupação sentir quais são os sinais, qual é a química que tem com a instituição.
«TM» — Os sinais que captava indicavam-lhe que estava a fazer um bom trabalho?
ACF — Sempre foram positivos. Infelizmente não me foi possível conhecer cada um dos 6300 profissionais [do CHLN], portanto, o contacto directo era com um universo mais restrito. Mas circulando dentro e fora dos edifícios dos hospitais sentimo-nos em casa.
«TM» —Referia-me também a comentários positivos oriundos de fora do CHLN, nomeadamente da parte de outros administradores hospitalares...
ACF — Admito que sim. Todos nós na vida procuramos fazer bem aquilo que fazemos, que é ser profissionais e termos naturalmente respeito pelo trabalho uns dos outros. Conheci melhor a administração pública e conheci muita gente que aí trabalha desde sempre. Não falo apenas de médicos, enfermeiros, técnicos, ou pessoal administrativo, mas também de pessoas que aí têm feito a sua carreira de gestão. E devo dizer que tive, em muitos casos, surpresas muito positivas. Nós temos na administração pública gente de grande qualidade e que merece que se lhe dê a devida atenção e que se encare o trabalho na administração pública como um trabalho de serviço à comunidade. Mas é necessário que se passe tão cedo quanto possível da lógica burocrático-administrativa para a lógica do projecto profissional, do projecto individual e, consequentemente, do projecto das organizações.
«TM» — Como reagiu a ministra quando lhe comunicou que pretendia sair?
ACF — Não queria estar a dar nota das conversas pessoais, mas devo dizer que tenho uma excelente relação pessoal e institucional com a senhora ministra da Saúde.
«TM» — Mas de que forma é que Ana Jorge o tentou demover?
ACF — Tentou fazer o que era possível e naturalmente que eu estou muito reconhecido por esse gesto. Despedimo-nos com um «até breve».
Regresso pela via política?
«TM» — Que projecto é que o levaria a regressar?
ACF — Entrei para a Faculdade de Medicina de Lisboa em 1977 e estava completamente fora do meu horizonte que um dia o professor Correia de Campos se lembraria de me desafiar para trabalhar no Hospital de Santa Maria. Portanto, não antecipo nenhum tipo de cenários. Como tenho dito, depois se avaliará [o meu regresso] se for útil e onde for útil.
«TM» — Se já admite a hipótese de regresso, porque é que sai?
ACF — Habituei-me ao longo da vida, e acho que é prudente que tenhamos este registo, que não há nenhum tipo de cenário que seja fechado. E hoje em dia, com a velocidade a que as coisas acontecem, temos de estar preparados para que num determinado momento possamos abraçar um projecto em que nos revemos do ponto de vista profissional e onde há também alguém que confia em nós e nos desafia para o concretizar.
«TM» — Um convite para ministro da Saúde poderá fazê-lo ponderar no regresso?
ACF — É possível. Servir a administração pública [AP] teve para mim uma componente de surpresa muito positiva. Estamos todos habituados a ter da AP uma leitura muito mediatizada, de que as pessoas não trabalham, não são competentes, não são dedicadas… Acho que há em ambos os sectores, público e privado, pessoas com esse tipo de características. Só que as condições de exercício de quem trabalha na área pública são diferentes, e nós temos de avaliar as pessoas no contexto em que elas estão a desempenhar a suas funções.
«TM» — A sua equipa estava preparada para a sua saída?
ACF — Há muito tempo que estava. Nós tivemos, nestes cinco anos, uma relação de muito forte cumplicidade profissional e estratégica. Como se imagina, partilhámos todos os nossos pensamentos, inquietações e vontades, portanto, foi naturalmente em equipa que fomos preparando a continuidade. Uma continuidade muito tranquila. Repare-se que hoje o meu sucessor no cargo é o meu director clínico, o dr. João Álvaro Correia da Cunha, que passa a acumular essa função com a condição de presidente do conselho de administração.
«Ciclo muito mau»
«TM» — Justificando a sua saída disse-nos, na semana passada, que defende que «a gestão tem ciclos óptimos». Porque é que sai antes de chegar o inevitável ciclo menos bom?
ACF — Eu não sei se está para chegar um ciclo menos bom.
«TM» — As regras da economia dizem que a seguir a um ciclo óptimo vem um ciclo mau…
ACF — Pelo contrário. Se olharmos para a realidade do País, tudo indica que estamos a sair de um ciclo muito mau.
«TM» — Refiro-me ao ciclo muito bom que o hospital tem vivido.
ACF — Pois, mas o hospital não é o País. E é preciso clarificar que vivemos estes cinco anos num contexto que foi difícil para o País.
«TM» — A nível hospitalar prevê-se que a situação se possa tornar mais difícil, de tal forma que outros administradores hospitalares estarão a ponderar também a saída...
ACF — Daquilo que eu li, as razões [para as saídas] não são equivalentes. As pessoas têm o direito de manifestar a sua posição, têm o direito de continuar ou não, e compreendo que seja muito interessante fazer uma leitura cumulativa e até identificativa das razões. Não sei se vai sair mais algum director de hospital ou não. O que tenho visto nos jornais são especulações e eu também acho que é muito negativo que se especule. Porque as entradas e saídas não se pré-anunciam, sobretudo não se fazem destes momentos nenhum tipo de novelas. As pessoas tomam as decisões e executam-nas. Se querem estar estão, se querem sair saem e assumem as consequências pelos actos que tomam. Não me parece positivo para o sistema que, muitas vezes à revelia dos próprios, a Comunicação Social teorize sem que os próprios sejam chamados ou ouvidos. Não é bom para as instituições, que precisam de tranquilidade, nem para o sistema, que precisa de estabilidade. Portanto, não gosto nem quereria entrar em matéria de apreciação especulativa sobre o que cada um pensa fazer.
«TM» — Se não estivesse já de saída, ficaria preocupado com o novo modelo de financiamento dos hospitais do SNS?
ACF — Não, não ficaria preocupado. Uma vez que estou a dar esta entrevista numa altura em que já não sou presidente do conselho de administração, não queria entrar em grandes detalhes de apreciação sobre o modelo, mas talvez aponte uma crítica: Este modelo foi proposto pela tutela e pelas ARS aos hospitais e estes devem discutir com a tutela alterações que, de uma forma sensível, podem impactar os modelos de organização e de gestão.
«TM» — Está a dizer que isso não aconteceu?
ACF — Parece-me que não terá acontecido com a devida profundidade. Talvez tivesse de ter sido mais aprofundada a questão de discutir com as empresas alterações às regras que vão condicionar a execução dos contratos-programa.
«TM» — O CHLN sai muito penalizado com a aplicação deste novo modelo de financiamento?
ACF — Não é das unidades que terá maior repercussão face, até, ao seu volume de actividade. E creio que tem condições para se ajustar ao novo modelo. Também estou certo de que provavelmente ainda haverá, em sede de discussão do contrato-programa, margem para que esses ajustamentos possam ser introduzidos em nome de uma racionalidade económica e de princípios de bom governo institucional e também de salvaguarda do equilíbrio orçamental do SNS.
««TM» — Qual é o orçamento que Correia da Cunha terá para gerir este ano?
ACF — No conjunto, o CHLN mobiliza mais de 400 milhões de euros no seu orçamento.
«TM» — E com o novo modelo de financiamento, de quanto disporá?
ACF — Aquilo que é o contrato global com a ARSLVT é menos do que isso, andará nos duzentos e tal milhões de euros. Mas o momento da negociação com a entidade que contrata não está executado.
«TM» — Essa poderá ser uma das dores de cabeça de Correia da Cunha…
ACF — As dores de cabeça, que eu espero que venham a ser poucas, não serão muito diferentes das dores de cabeça inerentes à governação de uma unidade de saúde que tem dois hospitais, 6300 profissionais, que tem um orçamento superior a 400 milhões de euros e por onde passam anualmente mais de 6 milhões de pessoas, multiplicando isto por actos, procedimentos, diagnósticos e terapêuticas. Estamos a falar de uma instituição de enorme complexidade que tem as dificuldades inerentes a estes grandes indicadores que acabei de referir.
Descentralizar é necessário
«TM» -- Sempre foi um defensor da avaliação dos administradores hospitalares…
ACF – Não apenas dos administradores hospitalares. É fundamental avaliar as equipas de gestão, como é fundamental avaliar os dirigentes intermédios. O que é importante é inculcar, nomeadamente nos hospitais públicos, uma cultura de avaliação. Esta pressupõe que é consignada autonomia a quem é avaliado, ou seja, descentralização de competências, fixação de metas e objectivos e que, passado o período em que esses objectivos são contratualizados, os respectivos agentes são avaliados. Naturalmente que implica sempre monitorização e acompanhamento. Isso é fundamental, porque é pedagógico, é útil. Mas talvez um dos desejos que eu deixaria expressos para o futuro fosse que as diferentes tutelas na Saúde tivessem menos receio de descentralizar o poder e que se sentissem mais capazes de confiar nos profissionais. Eu cito muitas vezes o exemplo do prof. Manuel Antunes em Coimbra sabendo de antemão que há muita gente que critica aspectos do modelo e que diz que o modelo não é replicável. Eu também acho que os modelos não são replicáveis exactamente da mesma forma em todo o lado. Mas o espírito da descentralização do poder, da autonomia, a fixação de metas, tem sempre bons resultados. Porque aconteceu com o CRI [centros de responsabilidade integrada] nos HUC e está a acontecer nas unidades de saúde familiar. Não que ter receio de libertar competências e deixar os profissionais assumirem aquilo que é muito uma vocação.
«TM» -- O Serviço de Urgência Central do CHLN está em vias de se tornar CRI…
ACF – E agora a senhora ministra anunciou a possibilidade de vários hospitais e várias equipas poderem avançar para esses modelos no País. É um caminho positivo porque nós temos ainda no SNS uma vertente muito centralista, que introduz uma carga muito pesada de natureza burocrática e administrativa. E que, de certa maneira, espartilha o potencial de trabalho dos profissionais porque não liberta competências. A contratualização tem de ser progressivamente feita no sentido de transferir para as instituições e grupos profissionais a capacidade de fazer e, no final do dia, de serem naturalmente avaliados e responsabilizados. Na área da saúde, e em particular nos hospitais, é preciso haver três coisas: governação estratégica, onde naturalmente deve estar incluído o planeamento estratégico; governação clínica, porque o que nós fazemos é praticar, produzir, ensinar cuidados de saúde; e finalmente governação económica. Não vale a pena iludir a questão… um sistema de saúde sustentável é a melhor coisa que podemos dar ao País, no sentido de que um sistema de saúde tem uma reprodução económica que é efectiva. Não apenas pelos ganhos em saúde explícitos, mas também pela qualidade de vida dos indivíduos, das famílias, pela sua inserção no mercado de trabalho pela capacidade de termos uma população mais saudável, com menos morbilidade, com menos cronicidade nas doenças. Ou seja, se há bom investimento público que tem reprodução sobre a vida humana, na qualidade de vida humana e o desenvolvimento das pessoas, é o investimento na área da saúde.
Sim ao Curry Cabral
«TM» — Como correu a fusão com o Hospital de Pulido Valente?
ACF — Correu com as dificuldades inerentes à junção de duas instituições que têm histórias, culturas e dimensões diferentes e até cruzamentos de vidas e de profissionais também diferentes. Nada disto é surpreendente em processos de integração.
«TM» — Para si fazia sentido aquela integração?
ACF — Fazia. Assim como faria sentido uma cooperação mais próxima com o Hospital de Curry Cabral. Não sou eu que o digo, são os peritos que há muitos anos estudaram a reorganização da rede hospitalar na área da Grande Lisboa e que tornam inevitável que essas aproximações, se não forem feitas em tempo útil e de forma programada, sejam feitas num tempo menos útil de forma mais precipitada.
«TM» — Ficou desapontado com a decisão da ministra em relação ao Hospital de Curry Cabral?
ACF — Não, não fico desapontado. O que eu digo é que daqui por dois anos temos uma certeza: o Hospital de Loures abrirá. Será a concretização de uma aspiração de muitas gerações e vai ter um impacte muito significativo na região Norte de Lisboa. Vai ter influência directa sobre a procura assistencial do CHLN, com impacte muito significativo na área da Urgência. E terá também impactes directos sobre o Hospital de Curry Cabral. Portanto, nesta matéria não há estados de alma. Há avaliações técnicas numa primeira instância e, numa segunda instância, há decisões políticas. E é assim que as coisas funcionam normalmente e nós temos de trabalhar num quadro de normalidade que resulta daquilo que, em cada momento, se julgar que é mais adequado por quem tem a responsabilidade de ver o todo relativamente a nós que vemos as partes do problema.
«TM» — Vê as partes do problema mas com base em estudos que aparentemente não foram tidos em conta...
ACF — Os políticos têm de fazer a interface entre aquilo que é uma avaliação fria, de natureza racional e técnica e aquilo que é a aplicação dos resultados desses estudos à realidade social, económica e local. E é por isso que eu não critico, nem positiva nem negativamente, porque naturalmente a decisão política teve em conta outros factores que eu não conheço e que seguramente são ponderosos.
«TM» — Como é que geriu o facto de o Hospital de Pulido Valente ter uma relação privilegiada com a Faculdade de Ciências Médicas e o Hospital de Santa Maria com a Faculdade de Medicina de Lisboa?
ACF — Houve sempre, e há, uma boa relação dos hospitais com as faculdades. E as próprias faculdades têm uma relação institucional equilibrada e muito positiva. Haverá um tempo de transição e o natural será a constituição de um grande centro académico em torno da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital Oriental de Lisboa, aquando da abertura deste hospital. Naturalmente que haverá uma concentração daquilo que são as actividades de formação, ensino e investigação na Faculdade de Ciências Médicas. Esta transição será pacífica e natural.
«TM» — Ao longo desta entrevista, vai sempre dizendo «nós», como se ainda fizesse parte do CHLN…
ACF — E continuarei a dizer. Estou responsável hoje como estarei daqui por um ou dois anos por tudo o que acontecer no HSM e no HPV. Estou e estarei, daqui para a frente, em todos os momentos em que for útil e que o meu director clínico, actual presidente do CA, entender que sou útil. Estarei sentado ao lado dele. Gostaria de continuar a ser um dos rostos daquilo que é o CHLN, não só nas coisas boas mas nas coisas más, porque coisas boas e más acontecem sempre. Eu não vou para outra galáxia e vou estar sempre ao lado daquilo que considero ser a minha casa.
«TM» — Já pode dizer que funções vai desempenhar no grupo Millennium BCP?
ACF — Neste momento ainda não é oportuno.
Ministeriável ou nem por isso?
«Tempo Medicina» — Teria aceite o cargo de ministro da Saúde, caso tivesse sido convidado?
Adalberto Campos Fernandes — Não sei como reagiria perante essa situação. O mais importante é a consciência que cada um deve ter sobre o ajustamento das suas capacidades perante os desafios colocados. O exercício de funções políticas é muito difícil e carece de pessoas que tenham motivação e gosto pela política. Por isso, não sei responder a essa pergunta porque é um cenário que não foi colocado e também porque acredito que existem muitas outras pessoas em melhores condições para desempenhar esse tipo de funções.
«TM» — O boato que o dava como ministeriável circulou de tal maneira que é inevitável falar no assunto…
ACF — Tenho dito que esses tipos de rumores são simpáticos e até honrosos. No entanto, acredito que essas funções requerem um elevado grau de certeza relativo à aptidão individual para o seu desempenho. Para se aceitar desafios desse tipo é preciso estar muito convicto de que se está nas melhores condições para o fazer. É um exercício muito difícil que requer, para além de competência, um elevado sentido de missão.
«TM» — Quando aceitou o cargo no Hospital de Santa Maria tinha a certeza de que iria conseguir desempenhar bem a função?
ACF — Não tinha a certeza. Senti-me com uma forte vontade de fazer o teste, até porque era a casa onde me tinha formado e onde estive vários anos. Apesar de tudo, conhecia melhor a realidade, conhecia os cantos à casa e estamos a falar de uma prática que é muito operacional. São coisas completamente distintas.
Missão do Hospital de Santa Maria
«TM» — Disse que quando chegou ao Hospital de Santa Maria encontrou a instituição «deprimida, com altíssimos níveis de desinvestimento, muito degradada e sem fazer honra à qualidade dos profissionais que tinha». Como é que definiu o seu «plano de ataque»?
ACF — Uma instituição deprime-se não apenas porque a motivação individual das pessoas está baixa; não apenas porque se deixa envelhecer ou porque se confronta com um enorme desinvestimento tecnológico. Também se deprime muitas vezes por não ter explícita e de forma clara para todos a sua missão. Portanto, diria que a primeira prioridade de alguém que decide ajudar a renascer ou a reagir esse tipo de instituições é clarificar a missão. E a missão do Hospital de Santa Maria é uma missão inequívoca: é um hospital universitário e, como hospital universitário que é, deve recuperar os valores fundacionais de um hospital universitário. Em termos de modelos de desenvolvimento estratégico, o País não pode deixar de ter uma Medicina clínica de base científica, altamente diferenciada, que esteja independente de valores exclusivamente económicos, que seja evidentemente sustentável, mas que imprima a capacidade de regeneração das elites ao nível científico, clínico e da investigação, e não apenas na área médica. Porque o Hospital de Santa Maria e o Hospital de Pulido Valente são instituições que têm uma responsabilidade enorme na formação de quadros na área da Saúde: médicos, enfermeiros, técnicos e outros profissionais. O País, com a dimensão que tem, com a tradição que tem de uma Medicina de elevada qualidade, com a responsabilidade que tem de o sistema de Saúde ser talvez uma das poucas histórias de sucesso que a democracia tem para contar, não pode desistir de criar condições para que essa Medicina de elevada diferenciação científica se exerça. Portanto, a missão é fundamental. É concentrar as energias, unir, agregar, juntar em vez de dividir. E a prioridade foi, juntamente com o director da Faculdade de Medicina de Lisboa, o professor José Fernandes e Fernandes, a de nos entendermos e transmitirmos para fora, para todos os actores profissionais da instituição, uma ideia clara de qual é o rumo e de qual é a missão da instituição.
«TM» — Mas assim que chegou à instituição houve um período de resistências, algumas dificuldades…
ACF — Curiosamente, não sentimos as resistências internas. Houve aqueles episódios [ameaças] que são do conhecimento geral mas não sabemos o ponto de origem e penso que há que relativizar esse aspecto, porque provavelmente se tratam de reacções ligadas a interesses menores. Mas eu diria que a instituição estava de tal maneira esgotada que nos terá dado o benefício da dúvida. E nós beneficiámos muito disso.
Em entrevista ao «Tempo Medicina» após ter deixado a presidência do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Adalberto Campos Fernandes diz que se despediu de Ana Jorge com um «até breve» e que estará sempre «ao lado» daquela que considera a sua casa. Quanto ao novo modelo de financiamento dos hospitais do SNS, defende que o mesmo deveria ter sido debatido «com a devida profundidade».
«Tempo Medicina» — Mal se soube da sua saída, começaram a surgir comentários a lamentar a decisão e a elogiar o seu trabalho. Estava ciente desse apreço?
Adalberto Campos Fernandes — Eu sentia-me bem. O melhor indicador que podemos ter sobre a apreciação do trabalho é quando de manhã acordamos e vamos felizes e motivados. Por outro lado, quando circulamos pelos corredores da instituição ou quando recebemos as pessoas e interagimos… penso que qualquer gestor tem como preocupação sentir quais são os sinais, qual é a química que tem com a instituição.
«TM» — Os sinais que captava indicavam-lhe que estava a fazer um bom trabalho?
ACF — Sempre foram positivos. Infelizmente não me foi possível conhecer cada um dos 6300 profissionais [do CHLN], portanto, o contacto directo era com um universo mais restrito. Mas circulando dentro e fora dos edifícios dos hospitais sentimo-nos em casa.
«TM» —Referia-me também a comentários positivos oriundos de fora do CHLN, nomeadamente da parte de outros administradores hospitalares...
ACF — Admito que sim. Todos nós na vida procuramos fazer bem aquilo que fazemos, que é ser profissionais e termos naturalmente respeito pelo trabalho uns dos outros. Conheci melhor a administração pública e conheci muita gente que aí trabalha desde sempre. Não falo apenas de médicos, enfermeiros, técnicos, ou pessoal administrativo, mas também de pessoas que aí têm feito a sua carreira de gestão. E devo dizer que tive, em muitos casos, surpresas muito positivas. Nós temos na administração pública gente de grande qualidade e que merece que se lhe dê a devida atenção e que se encare o trabalho na administração pública como um trabalho de serviço à comunidade. Mas é necessário que se passe tão cedo quanto possível da lógica burocrático-administrativa para a lógica do projecto profissional, do projecto individual e, consequentemente, do projecto das organizações.
«TM» — Como reagiu a ministra quando lhe comunicou que pretendia sair?
ACF — Não queria estar a dar nota das conversas pessoais, mas devo dizer que tenho uma excelente relação pessoal e institucional com a senhora ministra da Saúde.
«TM» — Mas de que forma é que Ana Jorge o tentou demover?
ACF — Tentou fazer o que era possível e naturalmente que eu estou muito reconhecido por esse gesto. Despedimo-nos com um «até breve».
Regresso pela via política?
«TM» — Que projecto é que o levaria a regressar?
ACF — Entrei para a Faculdade de Medicina de Lisboa em 1977 e estava completamente fora do meu horizonte que um dia o professor Correia de Campos se lembraria de me desafiar para trabalhar no Hospital de Santa Maria. Portanto, não antecipo nenhum tipo de cenários. Como tenho dito, depois se avaliará [o meu regresso] se for útil e onde for útil.
«TM» — Se já admite a hipótese de regresso, porque é que sai?
ACF — Habituei-me ao longo da vida, e acho que é prudente que tenhamos este registo, que não há nenhum tipo de cenário que seja fechado. E hoje em dia, com a velocidade a que as coisas acontecem, temos de estar preparados para que num determinado momento possamos abraçar um projecto em que nos revemos do ponto de vista profissional e onde há também alguém que confia em nós e nos desafia para o concretizar.
«TM» — Um convite para ministro da Saúde poderá fazê-lo ponderar no regresso?
ACF — É possível. Servir a administração pública [AP] teve para mim uma componente de surpresa muito positiva. Estamos todos habituados a ter da AP uma leitura muito mediatizada, de que as pessoas não trabalham, não são competentes, não são dedicadas… Acho que há em ambos os sectores, público e privado, pessoas com esse tipo de características. Só que as condições de exercício de quem trabalha na área pública são diferentes, e nós temos de avaliar as pessoas no contexto em que elas estão a desempenhar a suas funções.
«TM» — A sua equipa estava preparada para a sua saída?
ACF — Há muito tempo que estava. Nós tivemos, nestes cinco anos, uma relação de muito forte cumplicidade profissional e estratégica. Como se imagina, partilhámos todos os nossos pensamentos, inquietações e vontades, portanto, foi naturalmente em equipa que fomos preparando a continuidade. Uma continuidade muito tranquila. Repare-se que hoje o meu sucessor no cargo é o meu director clínico, o dr. João Álvaro Correia da Cunha, que passa a acumular essa função com a condição de presidente do conselho de administração.
«Ciclo muito mau»
«TM» — Justificando a sua saída disse-nos, na semana passada, que defende que «a gestão tem ciclos óptimos». Porque é que sai antes de chegar o inevitável ciclo menos bom?
ACF — Eu não sei se está para chegar um ciclo menos bom.
«TM» — As regras da economia dizem que a seguir a um ciclo óptimo vem um ciclo mau…
ACF — Pelo contrário. Se olharmos para a realidade do País, tudo indica que estamos a sair de um ciclo muito mau.
«TM» — Refiro-me ao ciclo muito bom que o hospital tem vivido.
ACF — Pois, mas o hospital não é o País. E é preciso clarificar que vivemos estes cinco anos num contexto que foi difícil para o País.
«TM» — A nível hospitalar prevê-se que a situação se possa tornar mais difícil, de tal forma que outros administradores hospitalares estarão a ponderar também a saída...
ACF — Daquilo que eu li, as razões [para as saídas] não são equivalentes. As pessoas têm o direito de manifestar a sua posição, têm o direito de continuar ou não, e compreendo que seja muito interessante fazer uma leitura cumulativa e até identificativa das razões. Não sei se vai sair mais algum director de hospital ou não. O que tenho visto nos jornais são especulações e eu também acho que é muito negativo que se especule. Porque as entradas e saídas não se pré-anunciam, sobretudo não se fazem destes momentos nenhum tipo de novelas. As pessoas tomam as decisões e executam-nas. Se querem estar estão, se querem sair saem e assumem as consequências pelos actos que tomam. Não me parece positivo para o sistema que, muitas vezes à revelia dos próprios, a Comunicação Social teorize sem que os próprios sejam chamados ou ouvidos. Não é bom para as instituições, que precisam de tranquilidade, nem para o sistema, que precisa de estabilidade. Portanto, não gosto nem quereria entrar em matéria de apreciação especulativa sobre o que cada um pensa fazer.
«TM» — Se não estivesse já de saída, ficaria preocupado com o novo modelo de financiamento dos hospitais do SNS?
ACF — Não, não ficaria preocupado. Uma vez que estou a dar esta entrevista numa altura em que já não sou presidente do conselho de administração, não queria entrar em grandes detalhes de apreciação sobre o modelo, mas talvez aponte uma crítica: Este modelo foi proposto pela tutela e pelas ARS aos hospitais e estes devem discutir com a tutela alterações que, de uma forma sensível, podem impactar os modelos de organização e de gestão.
«TM» — Está a dizer que isso não aconteceu?
ACF — Parece-me que não terá acontecido com a devida profundidade. Talvez tivesse de ter sido mais aprofundada a questão de discutir com as empresas alterações às regras que vão condicionar a execução dos contratos-programa.
«TM» — O CHLN sai muito penalizado com a aplicação deste novo modelo de financiamento?
ACF — Não é das unidades que terá maior repercussão face, até, ao seu volume de actividade. E creio que tem condições para se ajustar ao novo modelo. Também estou certo de que provavelmente ainda haverá, em sede de discussão do contrato-programa, margem para que esses ajustamentos possam ser introduzidos em nome de uma racionalidade económica e de princípios de bom governo institucional e também de salvaguarda do equilíbrio orçamental do SNS.
««TM» — Qual é o orçamento que Correia da Cunha terá para gerir este ano?
ACF — No conjunto, o CHLN mobiliza mais de 400 milhões de euros no seu orçamento.
«TM» — E com o novo modelo de financiamento, de quanto disporá?
ACF — Aquilo que é o contrato global com a ARSLVT é menos do que isso, andará nos duzentos e tal milhões de euros. Mas o momento da negociação com a entidade que contrata não está executado.
«TM» — Essa poderá ser uma das dores de cabeça de Correia da Cunha…
ACF — As dores de cabeça, que eu espero que venham a ser poucas, não serão muito diferentes das dores de cabeça inerentes à governação de uma unidade de saúde que tem dois hospitais, 6300 profissionais, que tem um orçamento superior a 400 milhões de euros e por onde passam anualmente mais de 6 milhões de pessoas, multiplicando isto por actos, procedimentos, diagnósticos e terapêuticas. Estamos a falar de uma instituição de enorme complexidade que tem as dificuldades inerentes a estes grandes indicadores que acabei de referir.
Descentralizar é necessário
«TM» -- Sempre foi um defensor da avaliação dos administradores hospitalares…
ACF – Não apenas dos administradores hospitalares. É fundamental avaliar as equipas de gestão, como é fundamental avaliar os dirigentes intermédios. O que é importante é inculcar, nomeadamente nos hospitais públicos, uma cultura de avaliação. Esta pressupõe que é consignada autonomia a quem é avaliado, ou seja, descentralização de competências, fixação de metas e objectivos e que, passado o período em que esses objectivos são contratualizados, os respectivos agentes são avaliados. Naturalmente que implica sempre monitorização e acompanhamento. Isso é fundamental, porque é pedagógico, é útil. Mas talvez um dos desejos que eu deixaria expressos para o futuro fosse que as diferentes tutelas na Saúde tivessem menos receio de descentralizar o poder e que se sentissem mais capazes de confiar nos profissionais. Eu cito muitas vezes o exemplo do prof. Manuel Antunes em Coimbra sabendo de antemão que há muita gente que critica aspectos do modelo e que diz que o modelo não é replicável. Eu também acho que os modelos não são replicáveis exactamente da mesma forma em todo o lado. Mas o espírito da descentralização do poder, da autonomia, a fixação de metas, tem sempre bons resultados. Porque aconteceu com o CRI [centros de responsabilidade integrada] nos HUC e está a acontecer nas unidades de saúde familiar. Não que ter receio de libertar competências e deixar os profissionais assumirem aquilo que é muito uma vocação.
«TM» -- O Serviço de Urgência Central do CHLN está em vias de se tornar CRI…
ACF – E agora a senhora ministra anunciou a possibilidade de vários hospitais e várias equipas poderem avançar para esses modelos no País. É um caminho positivo porque nós temos ainda no SNS uma vertente muito centralista, que introduz uma carga muito pesada de natureza burocrática e administrativa. E que, de certa maneira, espartilha o potencial de trabalho dos profissionais porque não liberta competências. A contratualização tem de ser progressivamente feita no sentido de transferir para as instituições e grupos profissionais a capacidade de fazer e, no final do dia, de serem naturalmente avaliados e responsabilizados. Na área da saúde, e em particular nos hospitais, é preciso haver três coisas: governação estratégica, onde naturalmente deve estar incluído o planeamento estratégico; governação clínica, porque o que nós fazemos é praticar, produzir, ensinar cuidados de saúde; e finalmente governação económica. Não vale a pena iludir a questão… um sistema de saúde sustentável é a melhor coisa que podemos dar ao País, no sentido de que um sistema de saúde tem uma reprodução económica que é efectiva. Não apenas pelos ganhos em saúde explícitos, mas também pela qualidade de vida dos indivíduos, das famílias, pela sua inserção no mercado de trabalho pela capacidade de termos uma população mais saudável, com menos morbilidade, com menos cronicidade nas doenças. Ou seja, se há bom investimento público que tem reprodução sobre a vida humana, na qualidade de vida humana e o desenvolvimento das pessoas, é o investimento na área da saúde.
Sim ao Curry Cabral
«TM» — Como correu a fusão com o Hospital de Pulido Valente?
ACF — Correu com as dificuldades inerentes à junção de duas instituições que têm histórias, culturas e dimensões diferentes e até cruzamentos de vidas e de profissionais também diferentes. Nada disto é surpreendente em processos de integração.
«TM» — Para si fazia sentido aquela integração?
ACF — Fazia. Assim como faria sentido uma cooperação mais próxima com o Hospital de Curry Cabral. Não sou eu que o digo, são os peritos que há muitos anos estudaram a reorganização da rede hospitalar na área da Grande Lisboa e que tornam inevitável que essas aproximações, se não forem feitas em tempo útil e de forma programada, sejam feitas num tempo menos útil de forma mais precipitada.
«TM» — Ficou desapontado com a decisão da ministra em relação ao Hospital de Curry Cabral?
ACF — Não, não fico desapontado. O que eu digo é que daqui por dois anos temos uma certeza: o Hospital de Loures abrirá. Será a concretização de uma aspiração de muitas gerações e vai ter um impacte muito significativo na região Norte de Lisboa. Vai ter influência directa sobre a procura assistencial do CHLN, com impacte muito significativo na área da Urgência. E terá também impactes directos sobre o Hospital de Curry Cabral. Portanto, nesta matéria não há estados de alma. Há avaliações técnicas numa primeira instância e, numa segunda instância, há decisões políticas. E é assim que as coisas funcionam normalmente e nós temos de trabalhar num quadro de normalidade que resulta daquilo que, em cada momento, se julgar que é mais adequado por quem tem a responsabilidade de ver o todo relativamente a nós que vemos as partes do problema.
«TM» — Vê as partes do problema mas com base em estudos que aparentemente não foram tidos em conta...
ACF — Os políticos têm de fazer a interface entre aquilo que é uma avaliação fria, de natureza racional e técnica e aquilo que é a aplicação dos resultados desses estudos à realidade social, económica e local. E é por isso que eu não critico, nem positiva nem negativamente, porque naturalmente a decisão política teve em conta outros factores que eu não conheço e que seguramente são ponderosos.
«TM» — Como é que geriu o facto de o Hospital de Pulido Valente ter uma relação privilegiada com a Faculdade de Ciências Médicas e o Hospital de Santa Maria com a Faculdade de Medicina de Lisboa?
ACF — Houve sempre, e há, uma boa relação dos hospitais com as faculdades. E as próprias faculdades têm uma relação institucional equilibrada e muito positiva. Haverá um tempo de transição e o natural será a constituição de um grande centro académico em torno da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital Oriental de Lisboa, aquando da abertura deste hospital. Naturalmente que haverá uma concentração daquilo que são as actividades de formação, ensino e investigação na Faculdade de Ciências Médicas. Esta transição será pacífica e natural.
«TM» — Ao longo desta entrevista, vai sempre dizendo «nós», como se ainda fizesse parte do CHLN…
ACF — E continuarei a dizer. Estou responsável hoje como estarei daqui por um ou dois anos por tudo o que acontecer no HSM e no HPV. Estou e estarei, daqui para a frente, em todos os momentos em que for útil e que o meu director clínico, actual presidente do CA, entender que sou útil. Estarei sentado ao lado dele. Gostaria de continuar a ser um dos rostos daquilo que é o CHLN, não só nas coisas boas mas nas coisas más, porque coisas boas e más acontecem sempre. Eu não vou para outra galáxia e vou estar sempre ao lado daquilo que considero ser a minha casa.
«TM» — Já pode dizer que funções vai desempenhar no grupo Millennium BCP?
ACF — Neste momento ainda não é oportuno.
Ministeriável ou nem por isso?
«Tempo Medicina» — Teria aceite o cargo de ministro da Saúde, caso tivesse sido convidado?
Adalberto Campos Fernandes — Não sei como reagiria perante essa situação. O mais importante é a consciência que cada um deve ter sobre o ajustamento das suas capacidades perante os desafios colocados. O exercício de funções políticas é muito difícil e carece de pessoas que tenham motivação e gosto pela política. Por isso, não sei responder a essa pergunta porque é um cenário que não foi colocado e também porque acredito que existem muitas outras pessoas em melhores condições para desempenhar esse tipo de funções.
«TM» — O boato que o dava como ministeriável circulou de tal maneira que é inevitável falar no assunto…
ACF — Tenho dito que esses tipos de rumores são simpáticos e até honrosos. No entanto, acredito que essas funções requerem um elevado grau de certeza relativo à aptidão individual para o seu desempenho. Para se aceitar desafios desse tipo é preciso estar muito convicto de que se está nas melhores condições para o fazer. É um exercício muito difícil que requer, para além de competência, um elevado sentido de missão.
«TM» — Quando aceitou o cargo no Hospital de Santa Maria tinha a certeza de que iria conseguir desempenhar bem a função?
ACF — Não tinha a certeza. Senti-me com uma forte vontade de fazer o teste, até porque era a casa onde me tinha formado e onde estive vários anos. Apesar de tudo, conhecia melhor a realidade, conhecia os cantos à casa e estamos a falar de uma prática que é muito operacional. São coisas completamente distintas.
Missão do Hospital de Santa Maria
«TM» — Disse que quando chegou ao Hospital de Santa Maria encontrou a instituição «deprimida, com altíssimos níveis de desinvestimento, muito degradada e sem fazer honra à qualidade dos profissionais que tinha». Como é que definiu o seu «plano de ataque»?
ACF — Uma instituição deprime-se não apenas porque a motivação individual das pessoas está baixa; não apenas porque se deixa envelhecer ou porque se confronta com um enorme desinvestimento tecnológico. Também se deprime muitas vezes por não ter explícita e de forma clara para todos a sua missão. Portanto, diria que a primeira prioridade de alguém que decide ajudar a renascer ou a reagir esse tipo de instituições é clarificar a missão. E a missão do Hospital de Santa Maria é uma missão inequívoca: é um hospital universitário e, como hospital universitário que é, deve recuperar os valores fundacionais de um hospital universitário. Em termos de modelos de desenvolvimento estratégico, o País não pode deixar de ter uma Medicina clínica de base científica, altamente diferenciada, que esteja independente de valores exclusivamente económicos, que seja evidentemente sustentável, mas que imprima a capacidade de regeneração das elites ao nível científico, clínico e da investigação, e não apenas na área médica. Porque o Hospital de Santa Maria e o Hospital de Pulido Valente são instituições que têm uma responsabilidade enorme na formação de quadros na área da Saúde: médicos, enfermeiros, técnicos e outros profissionais. O País, com a dimensão que tem, com a tradição que tem de uma Medicina de elevada qualidade, com a responsabilidade que tem de o sistema de Saúde ser talvez uma das poucas histórias de sucesso que a democracia tem para contar, não pode desistir de criar condições para que essa Medicina de elevada diferenciação científica se exerça. Portanto, a missão é fundamental. É concentrar as energias, unir, agregar, juntar em vez de dividir. E a prioridade foi, juntamente com o director da Faculdade de Medicina de Lisboa, o professor José Fernandes e Fernandes, a de nos entendermos e transmitirmos para fora, para todos os actores profissionais da instituição, uma ideia clara de qual é o rumo e de qual é a missão da instituição.
«TM» — Mas assim que chegou à instituição houve um período de resistências, algumas dificuldades…
ACF — Curiosamente, não sentimos as resistências internas. Houve aqueles episódios [ameaças] que são do conhecimento geral mas não sabemos o ponto de origem e penso que há que relativizar esse aspecto, porque provavelmente se tratam de reacções ligadas a interesses menores. Mas eu diria que a instituição estava de tal maneira esgotada que nos terá dado o benefício da dúvida. E nós beneficiámos muito disso.
Continuar ligado ao CHLN
«TM» — Vai aceitar o convite de Fernandes e Fernandes para integrar o grupo de curadores do Centro Académico?
ACF — Com o maior gosto. Aliás, isso significa para mim, pelo menos no plano afectivo, ficar ligado à instituição e poder ajudar, participar no seu desenvolvimento e acompanhar coisas muito interessante que estamos a fazer e, estou certo, ainda este ano vão acontecer. Como seja, por exemplo, a instalação do ciclotrão para produção de radiofármacos; a construção do centro de Medicina Nuclear; grande alargamento da Unidade de Radioterapia com instalação de novos aceleradores lineares. Dando assim ao CHLN uma dimensão tecnológica de primeiro nível no País no diagnóstico e no tratamento do cancro, também com a instalação da unidade de diagnóstico e tratamento integrado do cancro da mama. Além daquilo que estamos a fazer na área da Imagiologia, que é o reequipamento. Era uma área muito deficitária, com baixo nível de diferenciação tecnológica e, até ao Verão, o CHLN ficará com uma dotação tecnológica na área da Imagiologia que é também de primeiro nível.
Avaliação de tecnologias «séria e independente»
«TM» — Em concreto, quais poderão vir a ser os maiores problemas no futuro próximo do CHLN? O aumento do consumo de medicamentos, por exemplo?
ACF — Gostaria de falar muito menos daquilo que são as obrigações do dr. Correia da Cunha, que tem o direito a exercer o seu mandato com total liberdade e com total abertura de espírito. Mas posso sugerir-lhe, num aspecto mais macro, aquilo que possam ser algumas manifestações de vontade que eu tenho para o futuro. Em relação ao consumo de medicamentos, este não pode ser controlado de forma duradoura e sustentada no ponto de utilização. Ou seja, não é no momento da decisão médica de prescrever um medicamento que esse controlo deve ser exercido. Quando se diz que o hospital A ou B têm uma meta de crescimento de despesa de «xis» por cento está a dar-se uma meta indicativa e está a actuar-se ao nível mais difícil do controlo dessa meta, porque não se presume que os médicos prescrevam os medicamentos nos hospitais por livre arbítrio; prescrevem-nos seguramente na sequência de um processo de decisão clínica. Isto não significa que os hospitais não devam organizar-se investindo nos modelos de governação clínica mais avançados; que não haja reflexão sobre os actos e procedimentos e as decisões que se tomam; que não haja uma apreensão do significado do custo dos medicamentos, de todos eles e também de outros dispositivos biomédicos pelo forte impacte que eles têm na utilização de recursos. Mas o trabalho principal deverá ser feito a montante. Terá de ser feito, em primeiro lugar, através de uma atitude distanciada do doente e também a nível nacional sobre, por exemplo, como nós gerimos a inovação. Deveremos gerir a inovação através de barreiras burocráticas ou administrativas? Deveremos gerir a inovação através de vetos de gaveta? Deveremos gerir a inovação através de manobras de retardamento da entrada dos fármacos? Ou deveremos afrontar o problema da inovação, não sacrificando o interesse dos doentes e tendo uma abordagem muito mais ligada à apreciação da custo-efectividade da inovação? Não é pelo facto de os medicamentos inovadores se chamarem assim que são todos melhores do que aqueles que já existem ou que venham a assumir, em termos de valor acrescentado para o próprio doente, uma importância muito significativa.
Então, deveríamos rapidamente seguir o caminho que está a ser concretizado em países como Canadá, Austrália, do Norte da Europa, e devíamos dar o passo que falta dar que é imprimir uma avaliação de tecnologias de saúde que seja séria, independente, distanciada dos diferentes interesses em presença, que seja feita em nome do interesse geral e salvaguardando, primeiro que tudo, o interesse dos doentes a terem acesso às melhores terapêuticas. Mas também o interesse dos cidadãos que, enquanto contribuintes, vêem que hoje já não chega a totalidade do IRS que pagam para que possam ter níveis de protecção adequados no sistema de Saúde. Portanto, este balanço entre uma boa utilização dos recursos que são escassos e a salvaguarda imperativa dos interesses do doente é um exercício difícil que tem de ser feito com serenidade, com distanciamento do momento de utilização do fármaco e deve ser feito, naturalmente, com uma base científica, com uma base suportada na melhor evidência e que possa em cada momento dizer se o custo alternativo de uma decisão que eu tomo é melhor ou pior do que aquela que eu estou a tomar.
Apelo à integração
«TM» — Disse que defende um «SNS moderno, bem gerido e com visão estratégica». É isso que está a acontecer actualmente?
ACF — Quero acreditar que sim. Porque, como eu dizia há pouco, o investimento em saúde, seja ele público ou privado, é de elevado retorno social. Nós hoje temos páginas que nos enchem de orgulho, como são os indicadores da área materno-infantil, que nos colocam em posições únicas no contexto dos países desenvolvidos e até quase únicos, porque não temos outros indicadores tão expressivos e de tão elevada diferenciação. E tudo aquilo que tem sido o desenvolvimento do sistema de Saúde no seu conjunto, desde a fundação do SNS mas ainda anteriormente a isso, tem sido um caminho de bons resultados. Nós hoje temos uma cobertura do País que em termos europeus, em termos de proximidade da rede, é de muito boa qualidade; temos uma Medicina e uma prestação de cuidados também de elevada qualidade. Daquilo que é a leitura macro do sistema, temos uma história muito positiva para contar.
Naturalmente que existem algumas disfunções que temos de ir corrigindo todos os dias. Primeiro: somos fracos no planeamento estratégico, estamos agora a procurar corrigir alguns erros do passado, nomeadamente a concentração de hospitais sem um racional demográfico nem populacional adequado; naquilo que tem que ver com a carta de equipamentos pesados, não temos ainda explícita a forma como os investimentos devem ser feitos, e isto penaliza tanto os cidadãos ao nível do investimento público como penaliza os próprios operadores privados, uma vez que a repartição de equipamentos pesados pelo País é relativamente mal ponderada. Portanto, o planeamento estratégico para as infra-estruturas é fundamental.
Por outro lado, temos de ter também processos de articulação bem definidos. Dentro do sistema público é preciso fazer mais na ligação dos cuidados de saúde primários com os cuidados hospitalares e com os cuidados continuados integrados. É preciso insistir muito nesta ideia-chave da integração.
«TM» — Maria de Belém desafiou-o a criar uma unidade local de saúde…
ACF — Exactamente. Aliás, nem é um desafio, porque era uma vontade nossa de há muito tempo.
«TM» — Então porque é que não se concretizou?
ACF — Neste momento não estão reunidas as condições, uma vez que houve a criação dos Aces. Além de que, num primeiro tempo, os Aces que foram criados estavam desarticulados com os hospitais. Por exemplo, metade de alguns Aces trabalhavam com o Hospital de Santa Maria e com o Hospital de Pulido Valente e nesse mesmo Aces a outra metade trabalhava com o Hospital de Curry Cabral… mas a integração é um processo difícil. Porque para pôr o cidadão no centro do sistema temos de fazer várias coisas. Temos de ter, por exemplo, desmaterialização de processos; processo clínico electrónico e evoluir esse processo rapidamente; organizar o sistema de modo a servir o cidadão de uma forma compreensiva e intuitiva; fazer do médico de família o pilar prioritário na gestão de cuidados a nível de cada família; e promover uma integração funcional de tal maneira que o doente quando vai ao centro de saúde e tem necessidade de uma consulta de especialidade hospitalar ou cirurgia, é rapidamente encaminhado sem perdas de tempo, sem repetições de telefonemas e sem deslocações. E quando sai do hospital já tem preparado o seu destino, seja uma alta para o domicílio, seja para a reabilitação ou para integração na RNCCI. Portanto, o caminho da integração tem que ver com a organização e tem que ver com a referenciação dentro do sistema público e também na articulação do sistema público com outros actores, nomeadamente o sector social e privado.
Andreia Vieira, Tempo de Medicina 08.02.10
«TM» — Vai aceitar o convite de Fernandes e Fernandes para integrar o grupo de curadores do Centro Académico?
ACF — Com o maior gosto. Aliás, isso significa para mim, pelo menos no plano afectivo, ficar ligado à instituição e poder ajudar, participar no seu desenvolvimento e acompanhar coisas muito interessante que estamos a fazer e, estou certo, ainda este ano vão acontecer. Como seja, por exemplo, a instalação do ciclotrão para produção de radiofármacos; a construção do centro de Medicina Nuclear; grande alargamento da Unidade de Radioterapia com instalação de novos aceleradores lineares. Dando assim ao CHLN uma dimensão tecnológica de primeiro nível no País no diagnóstico e no tratamento do cancro, também com a instalação da unidade de diagnóstico e tratamento integrado do cancro da mama. Além daquilo que estamos a fazer na área da Imagiologia, que é o reequipamento. Era uma área muito deficitária, com baixo nível de diferenciação tecnológica e, até ao Verão, o CHLN ficará com uma dotação tecnológica na área da Imagiologia que é também de primeiro nível.
Avaliação de tecnologias «séria e independente»
«TM» — Em concreto, quais poderão vir a ser os maiores problemas no futuro próximo do CHLN? O aumento do consumo de medicamentos, por exemplo?
ACF — Gostaria de falar muito menos daquilo que são as obrigações do dr. Correia da Cunha, que tem o direito a exercer o seu mandato com total liberdade e com total abertura de espírito. Mas posso sugerir-lhe, num aspecto mais macro, aquilo que possam ser algumas manifestações de vontade que eu tenho para o futuro. Em relação ao consumo de medicamentos, este não pode ser controlado de forma duradoura e sustentada no ponto de utilização. Ou seja, não é no momento da decisão médica de prescrever um medicamento que esse controlo deve ser exercido. Quando se diz que o hospital A ou B têm uma meta de crescimento de despesa de «xis» por cento está a dar-se uma meta indicativa e está a actuar-se ao nível mais difícil do controlo dessa meta, porque não se presume que os médicos prescrevam os medicamentos nos hospitais por livre arbítrio; prescrevem-nos seguramente na sequência de um processo de decisão clínica. Isto não significa que os hospitais não devam organizar-se investindo nos modelos de governação clínica mais avançados; que não haja reflexão sobre os actos e procedimentos e as decisões que se tomam; que não haja uma apreensão do significado do custo dos medicamentos, de todos eles e também de outros dispositivos biomédicos pelo forte impacte que eles têm na utilização de recursos. Mas o trabalho principal deverá ser feito a montante. Terá de ser feito, em primeiro lugar, através de uma atitude distanciada do doente e também a nível nacional sobre, por exemplo, como nós gerimos a inovação. Deveremos gerir a inovação através de barreiras burocráticas ou administrativas? Deveremos gerir a inovação através de vetos de gaveta? Deveremos gerir a inovação através de manobras de retardamento da entrada dos fármacos? Ou deveremos afrontar o problema da inovação, não sacrificando o interesse dos doentes e tendo uma abordagem muito mais ligada à apreciação da custo-efectividade da inovação? Não é pelo facto de os medicamentos inovadores se chamarem assim que são todos melhores do que aqueles que já existem ou que venham a assumir, em termos de valor acrescentado para o próprio doente, uma importância muito significativa.
Então, deveríamos rapidamente seguir o caminho que está a ser concretizado em países como Canadá, Austrália, do Norte da Europa, e devíamos dar o passo que falta dar que é imprimir uma avaliação de tecnologias de saúde que seja séria, independente, distanciada dos diferentes interesses em presença, que seja feita em nome do interesse geral e salvaguardando, primeiro que tudo, o interesse dos doentes a terem acesso às melhores terapêuticas. Mas também o interesse dos cidadãos que, enquanto contribuintes, vêem que hoje já não chega a totalidade do IRS que pagam para que possam ter níveis de protecção adequados no sistema de Saúde. Portanto, este balanço entre uma boa utilização dos recursos que são escassos e a salvaguarda imperativa dos interesses do doente é um exercício difícil que tem de ser feito com serenidade, com distanciamento do momento de utilização do fármaco e deve ser feito, naturalmente, com uma base científica, com uma base suportada na melhor evidência e que possa em cada momento dizer se o custo alternativo de uma decisão que eu tomo é melhor ou pior do que aquela que eu estou a tomar.
Apelo à integração
«TM» — Disse que defende um «SNS moderno, bem gerido e com visão estratégica». É isso que está a acontecer actualmente?
ACF — Quero acreditar que sim. Porque, como eu dizia há pouco, o investimento em saúde, seja ele público ou privado, é de elevado retorno social. Nós hoje temos páginas que nos enchem de orgulho, como são os indicadores da área materno-infantil, que nos colocam em posições únicas no contexto dos países desenvolvidos e até quase únicos, porque não temos outros indicadores tão expressivos e de tão elevada diferenciação. E tudo aquilo que tem sido o desenvolvimento do sistema de Saúde no seu conjunto, desde a fundação do SNS mas ainda anteriormente a isso, tem sido um caminho de bons resultados. Nós hoje temos uma cobertura do País que em termos europeus, em termos de proximidade da rede, é de muito boa qualidade; temos uma Medicina e uma prestação de cuidados também de elevada qualidade. Daquilo que é a leitura macro do sistema, temos uma história muito positiva para contar.
Naturalmente que existem algumas disfunções que temos de ir corrigindo todos os dias. Primeiro: somos fracos no planeamento estratégico, estamos agora a procurar corrigir alguns erros do passado, nomeadamente a concentração de hospitais sem um racional demográfico nem populacional adequado; naquilo que tem que ver com a carta de equipamentos pesados, não temos ainda explícita a forma como os investimentos devem ser feitos, e isto penaliza tanto os cidadãos ao nível do investimento público como penaliza os próprios operadores privados, uma vez que a repartição de equipamentos pesados pelo País é relativamente mal ponderada. Portanto, o planeamento estratégico para as infra-estruturas é fundamental.
Por outro lado, temos de ter também processos de articulação bem definidos. Dentro do sistema público é preciso fazer mais na ligação dos cuidados de saúde primários com os cuidados hospitalares e com os cuidados continuados integrados. É preciso insistir muito nesta ideia-chave da integração.
«TM» — Maria de Belém desafiou-o a criar uma unidade local de saúde…
ACF — Exactamente. Aliás, nem é um desafio, porque era uma vontade nossa de há muito tempo.
«TM» — Então porque é que não se concretizou?
ACF — Neste momento não estão reunidas as condições, uma vez que houve a criação dos Aces. Além de que, num primeiro tempo, os Aces que foram criados estavam desarticulados com os hospitais. Por exemplo, metade de alguns Aces trabalhavam com o Hospital de Santa Maria e com o Hospital de Pulido Valente e nesse mesmo Aces a outra metade trabalhava com o Hospital de Curry Cabral… mas a integração é um processo difícil. Porque para pôr o cidadão no centro do sistema temos de fazer várias coisas. Temos de ter, por exemplo, desmaterialização de processos; processo clínico electrónico e evoluir esse processo rapidamente; organizar o sistema de modo a servir o cidadão de uma forma compreensiva e intuitiva; fazer do médico de família o pilar prioritário na gestão de cuidados a nível de cada família; e promover uma integração funcional de tal maneira que o doente quando vai ao centro de saúde e tem necessidade de uma consulta de especialidade hospitalar ou cirurgia, é rapidamente encaminhado sem perdas de tempo, sem repetições de telefonemas e sem deslocações. E quando sai do hospital já tem preparado o seu destino, seja uma alta para o domicílio, seja para a reabilitação ou para integração na RNCCI. Portanto, o caminho da integração tem que ver com a organização e tem que ver com a referenciação dentro do sistema público e também na articulação do sistema público com outros actores, nomeadamente o sector social e privado.
Andreia Vieira, Tempo de Medicina 08.02.10
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