segunda-feira, janeiro 04, 2010

“Não há verdadeira redução da despesa

sem privatização de serviços”
O ex-ministro da Economia diz o que pensa que tem de ser feito para corrigir o défice público, incluindo a privatização de escolas e hospitais

Daniel Bessa, actual director-geral da Cotec Portugal, diz que a retoma vai ser lenta e que é preciso começar a cortar o défice, com medidas mais ousadas do lado da despesa.

Em 2010, devemos preocupar-nos mais com o endividamento ou em garantir a retoma da economia?
A ideia mais consensual é a de que em períodos de recessão económica as contas públicas não são uma prioridade. É uma ideia muito keynesiana. A proposta de Keynes – e muita gente fala do senhor sem nunca ter lido uma linha – é a de um orçamento estruturalmente equilibrado que em períodos de má conjuntura pode ser deficitário, mas que em períodos de boas conjunturas deve ser excedentário. O problema é que, em Portugal, apenas quando temos a recessão é que as pessoas se lembram de Keynes. Ainda antes da recessão, já tínhamos um défice, e agora o que temos não é um défice qualquer. As finanças públicas deterioraram-se muito.

Surpreendeu-o o que aconteceu nos últimos meses?
Não sei se as contas se deterioram muito nos últimos meses, mas foi nos últimos meses que se ficou a saber mais sobre a sua deterioração. Acho que isso não acontece assim, de um mês para o outro. E é por isso que não há espaço para continuar a agravar o défice em 2010. Acho que já chega. Este ano tem de se dar sinais de uma recuperação nas contas públicas. E, se bem entendi, as últimas coisas que ouvi do lado do Governo apontam no sentido de ter de se fazer alguma coisa para reduzir o défice público já este ano.

Mas isso não reduz ainda mais a esperança numa retoma?
A esperança tem de vir de outro lado. A esperança não pode vir da despesa pública. Tem que vir da criação de empresas, do apoio ao investimento, muito mais privado do que público, da atracção do investimento directo estrangeiro.

Mas a verdade é que temos um problema de crescimento e emprego no curto prazo...
Mas não podemos fazer como aqueles que só se lembram da Santa Bárbara quando troveja. Estas políticas de promoção do investimento são realmente de longo prazo, mas temos de fazer alguma coisa por isso agora.

A curto prazo, temos de nos resignar com a expectativa de manutenção de um crescimento lento na economia portuguesa?
O problema é que a economia portuguesa deteriorou completamente as bases do seu crescimento a partir do início dos anos 90. Toda a década de 90 foi má. Numa conjuntura muito favorável foram dados sinais errados aos empresários: o aumento da despesa pública e a descida das taças de juro.
Durante dez anos, os empresários portugueses beneficiaram de um aumento da procura interna que os dispensou de procurar mercados externos. Deixámos subir muito os custos, as exportações portaram-se mal e as importações cresceram rapidamente. Quando o engenheiro Guterres falou no pântano, não era apenas o pântano político. Mais importante que isso era o pântano económico em que o país já estava.

Mas já passaram muitos anos...
A partir desse momento tem sido sempre a conter. E em relação às exportações, não é possível fazê-las subir de um momento para o outro. Não vejo outra solução que não seja aumentar o conteúdo tecnológico das exportações portuguesas. Por exemplo, a ideia dos pólos de competitividade, que o ministro Manuel Pinho promoveu, parece-me uma boa ideia. Não consigo estar em desacordo com ela. Fico é preocupado com o seu grau de execução.

Porquê?
Pergunto-me muitas vezes se já chegou um euro a um pólo de competitividade. E para dizer verdade, penso que em alguns deles não chegou mesmo.

Mas por ineficácia do Governo ou porque as empresas não apresentam projectos?
Acho que é também devido às empresas e ao associativismo empresarial. O associativismo empresarial envolve-se muitas vezes nestes programas como uma forma de se financiar. A capacidade de autofinanciamento dos privados, nomeadamente do associativismo empresarial, é muito baixa. Mas confrange-me que, por esta razão ou por outra qualquer, o grau de execução seja tão baixo. A Cotec esteve muito envolvida no pólo de competitividade da área florestal e seguimos de perto o cluster da área alimentar e eu pergunto: já veio algum dinheiro do Governo? Parece que não. Porquê? Porque estão todos à espera uns dos outros. O Estado está à espera que os privados gastem porque quer comparticipar a posteriori. Os privados dizem que não têm dinheiro e que precisam de dinheiro para fazer alguma coisa.

O que é que se pode fazer para resolver o problema?
Têm de se tomar medidas arrojadas. Provavelmente numa base de confiança e, depois, também de severidade para quem não cumprir. Quem anda nesse mundo dos projectos financiados pelo Estado sabe os dramas das empresas que começam a pedir aos fornecedores uma factura ainda antes de o equipamento e o serviço serem entregues porque precisam de uma factura para submeter ao QREN e assim receber o dinheiro para fazer efectivamente a compra. Isto denota um círculo vicioso que não se está a conseguir ultrapassar.

Não há também aversão ao risco das empresas portuguesas?
Não é só aversão ao risco. Muitas vezes há verdadeiros problemas financeiros. Uma linha de financiamento para esse tipo de situação pode fazer sentido. Porque Portugal tem financiamento.

Defende uma política de austeridade na despesa. Porquê?
Não tenho dúvidas de que será necessária porque a alternativa, por via fiscal, seria impossível.
Se eu quisesse resolver as coisas apenas através de um aumento do IVA, a taxa normal teria de ir para 35 por cento. Se quisesse resolver só com o IRS, a taxa máxima teria de subir até 87 por cento. Um pacote usando os dois impostos, dava um IVA de 23 por cento e um IRS de 52 por cento. São medidas muito violentas e portanto não há alternativa à redução da despesa.

Mas cortar onde?
Não há verdadeira redução da despesa que não passe pela privatização de alguns serviços.
Porque as outras alternativas é mandar funcionários públicos embora ou reduzir nominalmente os salários. Os países que enfrentaram esta questão de frente com bons resultados fizeram-no privatizando.

O quê concretamente?
Escolas e hospitais. As escolas continuariam de pé e os hospitais também, mas o Estado sai e os particulares vão ter de pagar, com políticas de apoio para os mais baixos rendimentos.

E a qualidade dos serviços não se ressentiria?
Não estou muito convencido disso. Tem efeitos reais no que diz respeito às pessoas. É evidente que custa menos mandar os filhos para os hospitais e escolas públicas.
Agora, não estou convencido de que a qualidade dos serviços públicos seja melhor.

Tem boa impressão das parcerias público-privadas realizadas na saúde?
Mas aí o Estado precisa de regular melhor. O Estado foi longe de mais na despesa, mas foi pouco longe na sua função reguladora. O Estado precisa de ganhar competências nessas áreas. Eu vi negociações de PPP em que os meios humanos com que o Estado avança estão completamente desconformes com os meios humanos, constituídos por juristas, economistas e financeiros, apresentados pelos privados.

E consegue imaginar uma privatização desses sectores em que o Estado não avançasse com essa desvantagem?
Percebo que o Estado esteja fragilizado, mas há consultoras internacionais que podem ser chamadas. Eu percebo as dificuldades todas: não se pode mexer no câmbio, não se vai despedir funcionários, não se vai reduzir os salários, não se vai subir o IRS, não se vai subir o IVA. E então? O que eu sei é que alguma coisa tem de ser feita, porque se não for, os credores resolvem o problema. Já estão a resolver pelo preço, mas podem resolver pelo volume. O dr. Soares uma vez chamou-me anjinho. Só um anjinho é que fala de privatizações, de reduzir os salários da função pública, de subir o IVA para valores elevados. Mas o que digo é que é preciso um anjinho para acreditar que tudo pode continuar na mesma.

Entrevista de Sérgio Aníbal, JP 04.01.10

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