quarta-feira, novembro 04, 2009

A oportunidade de Ana Jorge começa agora

Constantino Sakellarides diz que a reforma dos cuidados primários vai prejudicar o "sucesso" das unidades de saúde familiar se não acabar com modelos tradicionais

Estuda as políticas de saúde há dez anos. E, apesar de ter sido consultor do Governo para os cuidados primários, Constantino Sakellarides diz que há coisas que correram mal. Revertê-las, garante, é o maior desafio que se coloca ao Ministério da Saúde.
Diz que tem ouvido muitas asneiras ultimamente...
Nós que andamos nesta vida ficamos impressionados com as asneiras ditas por quem não sabe. E os nossos comentadores falam muitas vezes do que não sabem. Por exemplo, em relação à actual ministra da Saúde. Ela entrou a pouco mais de ano e meio de terminar o ciclo político. Ora, o ciclo tem uma importância tremenda – é o factor mais determinante em relação à evolução das políticas de saúde.
Como assim?
Numa legislatura, o primeiro ano é o único em que se pode iniciar um processo de mudança. No segundo ano, as mudanças podem ser desenvolvidas. Nos dois últimos, o máximo que se pode fazer é mantê-las, protegê-las, porque o clima social muda muito. No primeiro ano e, às vezes, no segundo, há um clima de tolerância, expectativa, de direito à dúvida. Ao passar o equador do ciclo político, muda completamente. Os actores sociais tornam-se mais agressivos e menos cooperantes para aproveitar o aproximar das eleições, ficam em compasso de espera, a atrasar políticas, tendo em conta uma mudança futura. E quem analisa sem ter isto em conta não sabe do que está a falar. Passei os últimos dez anos a estudar as políticas de saúde e um dos aspectos que encontro é precisamente este. Não podemos olhar para o futuro se dissermos que a ministra parou a reforma.

No seu entender, portanto, não parou...
Há ministros do núcleo duro e há ministros simpáticos para apaziguar o povo. E a ministra da Saúde faz parte destes. Às vezes acontece parar, mas não foi o caso. Tenho um grande respeito pelos ministros da Saúde, porque é uma vida terrível. É preciso muito amor à arte para enfrentar os problemas e as incompreensões a que são sujeitos. Poucos aceitam entrar no Governo a ano e meio do fim, porque é a parte fria do ciclo, está tudo alvoroçado e qualquer ministro fica altamente condicionado.
Mas Ana Jorge parou ou não as reformas?
Todas as reformas do Correia de Campos continuaram com um ritmo próprio da segunda parte do ciclo político. A única coisa alterada foi em relação ao encerramento de alguns serviços, porque foi preciso introduzir algum critério, esperar por alternativas. Para se fechar um serviço tem que se transformar antes. Na primeira parte do ciclo, as políticas tiveram alguns efeitos positivos, mas criaram algum desconforto.
Se Correia de Campos continuasse ministro...
Não teria havido alterações substanciais. Como não houve. E isso é importante para compreender o futuro. Tal como na segunda metade do ciclo político tem que se entender que não é possível iniciar novas reformas, também tem que se entender que se não forem iniciadas e reforçadas na primeira metade, também não o serão na segunda.
Em que é que isso influencia o que aí vem?
A ministra da Saúde tem agora a oportunidade de aproveitar a fase mais doce e susceptível à mudança que é o início do segundo mandato do Governo. É a grande oportunidade...
Enquanto não há programa de Governo, o programa do PS parece-lhe reflectir o agarrar dessa oportunidade?
… Parece-me demasiado vago. As políticas de saúde têm de ir para além do habitual – esgotar aspectos organizacionais e financeiros é um perspectiva muito redutora do que é a política de saúde. E nisto temos um défice crónico. Sabemos que a saúde dos portugueses é muito afectada pelos comportamentos e não se consegue alterar isto com melhor financiamento e organização dos serviços. Dou-lhe um exemplo: o stresse crónico que resulta de exposição a violência físicas e psicológicas e resulta em alterações de aprendizagem nos mais novos, piores condições de vida dos idosos. Lidar com estes factores é fundamental para a saúde dos portugueses e, até agora, a abordagem tem sido altamente insuficiente.
Mas como é que lida com estes fenómenos?
Criando intervenções aos vários níveis para prevenir e dar cuidados a quem sofre desse stresse crónico. Intervir na violência doméstica, sobre crianças, sobre idosos e criar, em conjunto com outros sectores de governação, abordagens multidisciplinares que se dirijam às causas dos problemas, criar novas capacidades e especializações nos serviços. O mesmo se passa em relação às dependências. Não são suficientemente focalizadas.
O programa do PS aponta um programa para o álcool...
Sim, mas estamos a falar de uma abordagem integrada. Não basta dizer que vamos fazer isto ou aquilo. Queremos saber que resultados nos propomos atingir. Temos que partir dos resultados que queremos para chegar às actividades. O mesmo se passa em relação aos cuidados de saúde – e estou a falar de problemas graves e malignos, onde é preciso ser muito mais objectivo.
É preciso dizer não só que as pessoas devem ter acesso rápido ao tratamento, mas também ao diagnóstico.
As medidas têm que ser priorizadas. Não podem ser 30, 40, 50 de uma vez. É preciso atacar as que são mais importantes e vulneráveis ao ataque. Um programa de Governo não pode ser um somatório corrido sem haver uma ordem. Depois, se olhar para programas anteriores, não encontra nenhuma avaliação no fim do mandato. E isto porque as medidas não são apresentadas de forma avaliável. É importante que os programas sejam apresentados de forma avaliável e que a avaliação não seja para encontrar culpados, mas para servir de aprendizagem. Mas os programas são qualitativos, listas de boas intenções. E isto permite que depois se diga que correu bem ou mal conforme se gosta ou não de um ministro.
Há algumas metas no programa do PS...
Também não espero que um programa seja um conjunto de metas quantitativas, mas sim que indique que vão aparecer. Mas a ênfase é muito organizacional.
No caso da reforma dos cuidados primários, a meta organizacional não é fundamental?
É um objectivo elogiável e é assim que tem que ser. O que se espera é que seja completada até ao final da legislatura. Agora isso implica que, no princípio desta nova legislatura, se faça uma reavaliação cuidadosa do ponto da situação da reforma. É preciso ser muito objectivo quanto ao que correu bem e ao que correu mal. E houve coisas que correram menos bem.
Quais?
A criação de unidades de saúde familiar (USF) foi um sucesso, porque implicou uma forma completamente diferente de estar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Agora, os agrupamentos de centros de saúde (ACES) não seguiram o mesmo método, seguiram o mais antigo. E as USF podem ser altamente prejudicadas por um ACES que não funcione. As USF nasceram fora do sistema. Ao serem envolvidas numa nova organização, ou partilham do mesmo princípio (viradas para resultados, autónomas, avaliáveis) ou tornam-se um obstáculo. Os ACES são como grandes empresas, que não contêm só USF – têm unidades de saúde pública, de cuidados na comunidade e outras coisas delicadas. São um empreendimento maior, para o qual é preciso mobilizar o melhor da capacidade de organização. Como nasceram no fim do ciclo político, não tiveram as condições necessárias para arrancar da melhor forma possível. Agora vão ter essa oportunidade: ver se esta reforma chega ao fim dos quatro anos com o sucesso das USF. É o desafio mais importante do Ministério da Saúde, porque os cuidados primários contaminam todo o sistema de saúde. O que as USF têm de extraordinário é que são um contraponto ao que há de mais ineficaz no sistema de saúde tradicional. E os ACES ou são da raça das USF, ou são da raça da administração pública da tradicional da saúde. E se forem desta, vão acabar por prejudicar as USF.
Há esse risco?
Acho que é o mais provável. A experiência mostra que estas aventuras extraordinárias como as USF são absorvidas pelo status quo. É preciso uma luta tremenda para que não aconteça, para que não envelheçam e se tornam como o resto. Costumo dizer que a criação das USF foi a reforma improvável. Só será possível não permitir a acomodação aos modelos tradicionais tendo plena consciência do enorme desafio que isso representa.
E como avalia a meta de antecipar três anos a conclusão da rede de cuidados continuados?
É uma rede que tem uma evolução sinceramente lenta e que não depende só da Saúde. As pessoas estão mais idosas, mais dependentes e precisam de um apoio integrado. É também uma questão social, que exige formas de financiamento diferentes. Não é esperado que o ritmo desta reforma seja tão rápido quanto nos cuidados primários.
A meta apresentada é de mais oito mil camas até 2013...
Acho que é razoável. Embora fique muito aquém do desejável.
Era a que estava desenhada no lançamento da reforma...
Temos que nos satisfazer com metas razoáveis. Mas apontar camas não é suficiente. Há todos os profissionais de saúde e todo o apoio social à volta e há formas de cuidados continuados que não implicam camas: os domiciliários. A meta das camas é uma pequena amostra. O importante é chegar primeiro às pessoas que mais precisam. E, depois, ter indicadores de qualidade.
Por que é que esta reforma parece mais silenciosa? ninguém se interessa muito, ninguém fala muito nela...
Porque é um problema demasiado complexo. Por isso é que digo que é importante avaliar resultados, saber de que forma se está a melhorar a qualidade de vida das pessoas dependentes. Temos muito o hábito de olhar para números e ficar muito contentes com isso, mas, depois, o aspecto qualitativo é mais difícil de contabilizar. E há a questão da equidade. Quem são os beneficiários? E quem fica de fora?
Este afigura-se um ano mais interessante para o próximo Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Sáude?
O segundo ano do ciclo político é mais. Porque o relatório surgirá ao fim de oito meses de legislatura. E os terceiro e quarto anos são sempre piores: (os governantes) sentem-se criticados, reagem pior – isto apesar de reagirem sempre mal (risos).

Os sucessivos relatórios têm abordado a deficiência da informação de Saúde...
Se há aspecto que precisa de uma revolução é esse. Se se quiser contratualizar objectivos com um centro de saúde, preciso de saber a evolução de desempenho e preciso, portanto, de informação de grande qualidade. Se não a tiver, contratualizo mal e gasto mais. O mesmo é válido para os hospitais. Não basta saber quantos atendimentos são feitos: tem que ser por especialidade, de que tipo de pessoas, quanto tempo esperaram, de onde vieram... Não é possível reformar o SNS sem reformar a informação de saúde. Está organizada por institutições e isso é passado. Hoje tem que estar centrada nas pessoas e tem que ser transportada quando as pessoas vão de um sítio para o outro.
Não é o que se pretende com o registo nacional do utente? A versão oficial é a de que se está a trabalhar nisso.
Pois, há já algum tempo! Precisamos de ficheiros electrónicos de saúde, portáteis. Há dez anos, não haver essa portabilidade era a vida. Hoje, tê-la é condição sine qua non. Por outro lado, eu, utente, também quero ter acesso à minha informação de saúde, ao meu gráfico de glicose, aos efeitos da minha medicação, para que eu próprio possa conduzir, fazer a gestão da minha saúde. Além disso, é preciso nova informação de gestão – sobre eficiência dos serviços, qualidade dos cuidados prestados, acesso –, transparente, conhecida não só dos gestores como do cidadão, que quer fazer o seu próprio juízo sobre a saúde. Depois, não há uma investigação de saúde relevante...
Que tipo de investigação?
Investigação para informar a reforma da saúde. Se não mobilizarmos a inteligência do país no sentido de compreender o que determina os factores de mudança, estamos a andar às cegas. Tardamos em investir na base de conhecimento necessária para fazer reformas, para nos enganarmos menos. Não será preciso comparar com a experiência internacional? E, daqui a dois anos, ver se estamos no caminho certo? A reforma não pode ser baseada na intuição e na opinião de peritos. Enquanto não investirmos parte dos recuros na investigação, não podemos esperar que a resposta seja tão inteligente quanto gostaríamos.
Resta abordar a sempiterna questão do financiamento da saúde. O programa do PS é vago...
O financiamento foi e será sempre um problema extremamente complexo. E os comentadores habituais esquecem-se ou não percebem que o orçamento da saúde é diferente de qualquer outro. Em todos os sectores há uma grande capacidade de previsibilidade. Excepto na saúde, porque aí o orçamento é induzido todos os dias em todos os pontos de prestação de cuidados. Tomam-se decisões que não são previsíveis, não são controláveis. Temos que aceitar estas regras. A política orçamental tem que ter quesitos que obriguem as pessoas a pensar em alternativas. A cultura que temos não tem permitido fazer isso com facilidade. Eu defendo que a discussão tem que ser por década, porque apresentam-me um orçamento todos os anos e eu não percebo, aquilo é intangível, um conjunto de números. O que eu gostaria era que se dissesse, por exemplo, no próximo ano, 20% da riqueza do país vai para a saúde e explicassem para onde exactamente. Se a discussão for 'são tantos milhões' e a oposição diz 'é pouco', ninguém percebe. É necessário que sejam claras as alternativas de distribuição.
Está a dizer que se deveriam desenhar várias hipótese e não um único orçamento?
Este ano já não vai a tempo. Mas que seja alguma vez que eu possa ver... Gostaria que fosse um momento de participação de cidadãos e políticos que percebam as alternativas. Se a discussão política é acharmos pouco ou acharmos muito, é um jogo que ninguém percebe. Porque se diz 'ponha lá mais' e, depois, o défice é grande e diz-se 'não pode ser, tem que cortar!'. Se querem pôr mais, ponham, digam de onde tiram e para onde vai e não venham dizer depois para cortar. É uma discussão de sombras que deixa as pessoas de fora.
A discussão actual está mais na fonte de financiamento do que no seu desenho...
A fonte faz parte da discussão. Qual a percentagem que queremos dar à saúde e onde vamos buscá-la? Aos impostos, seguros suplementares, aos co-pagamentos? Estes não estão de acordo com a nossa ordem constitucional. A saúde é pré-paga: descontamos quando estamos sãos e robustos para recebermos quando esivermos velhos e debilitados. Temos que saber se continuamos a aderir a este princípio ou se vamos aderir a outro – e saber quais as consequências disso. Estou disposto a pagar mais se for preciso, mas vamos conversar sobre garantias mais precisas. Mas esta discussão não terá lugar enquanto o Orçamento de Estado for apresentado de uma forma completamente opaca. Mesmo para que os agentes que provocam a despesa sejam solidários (e prescrevam genéricos, por exemplo), é preciso que compreendam. E o sector da saúde deve ser o primeiro a ter uma lógica que o defenda das incompreensões que decorrem das suas insuficiências, dos excessos de défice. Precisa de ser discutido de uma forma inteligente que não é a actual.

entrevista de Ivete Carneiro, JN 03.11.09

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