quarta-feira, agosto 19, 2009

Tem havido muito alarido


O que é bom para que todos fiquem esclarecidos

Gestão Hospitalar (GH): Esta pandemia é pior do que as outras que têm aparecido ao longo dos anos?
Meliço Silvestre (MS):
Penso que não. É mais uma. Ainda é cedo para fazermos um balanço da situação, mas podemos analisar outras situações para percebermos diferenças. A SIDA, por exemplo, em poucos anos apareceu, desenvolveu-se, explodiu e agora está na parte da cronicidade. Surge esta agora. Já tinha ameaçado. De 10 em 10 anos, regra geral, há um surto, uma ameaça. Recentemente houve até uma ameaça nova na Holanda, mas não vingou. Este vírus – adenovirus - já vive há milhares de anos connosco; se calhar tem mais direito de cá continuar do que nós, Homens, nós é que não nos convencemos disso. Às vezes há vírus que nos dão jeito e que nos são úteis…

GH: Não é o caso deste?
MS: Não é o caso deste! Neste caso é um vírus que muda e essas mudanças tornam-se patogénicas. Há sempre dois processos adaptativos: a pressão das circunstâncias - uma mutação adaptativa - e as estirpes - transferências de pequenas partículas víricas que alteram o vírus.

GH: Este vírus pode vir a transformar-se, de facto, num vírus muito perigoso? Porque neste momento não é!
MS: Neste momento não é. Há uma circunstância interessante que tem a ver com o facto de aparecer principalmente em gente mais nova…

GH: Mas não se percebe muito bem porquê…
MS: Penso que possa ter a ver com uma pandemia mais frustre que tenha passado que gerou anticorpos neste domínio. É como o problema da varíola em relação aos nossos jovens: a varíola acabou no mundo – não sabemos se os antigos dirigentes da URSS ficaram com ela armazenada ou não, esperemos que não – mas se houvesse agora uma nova vaga de varíola, quem iria sofrer mais eram os jovens.

GH: Então professor, podemos dizer que neste momento a Gripe A não é grave, mas pode vir a tornar-se na pandemia problemática?
MS: Pode, mas também pode tornar-se na menos grave. Pode até ser um floop. Se houver uma mutação que der para tocar em certos pontos vitais do homem pode ser grave. Muito grave mesmo. Se não acontecer, não há grande perigo…

GH: Algo nos diz que este vírus pode tocar em alguns pontos vitais do homem e dar origem a uma mutação complexa?
MS: Não… nada aponta nesse sentido!

GH: Então como se explica todo o alarido feito à volta desta gripe – OMS, organismos nacionais e internacionais, etc?
MS: É bom que haja alarido, para que as pessoas fiquem esclarecidas. Sejam esclarecidas. Por outro lado, e deixe-me que lhe diga, há a situação de nós, por cá, termos muita sorte, uma vez que a gripe chegou quando cá estava bom tempo. Era já Verão. Nos países quentes o vírus propaga-se menos. Com o caminhar, agora, para o Outono e com o aparecimento da gripe clássica juntamente com esta, a situação pode ser mais complicada. Não sabemos o que vai ser a propagação disso, mas pode vir a ser uma coisa mais potencializadora; pode haver mudanças radicais e totais e, como tal, não podemos meter a cabeça debaixo da areia. Mas também pode cair um meteorito e morrermos todos, não é?

GH: A proximidade que pode haver entre estes dois vírus pode ser complicada. É isso que os está a dizer?
MS: Não convém que eles se aproximem, porque se isso acontecer eles trocam partículas entre si e ao trocarem partículas podem surgir factores patogénicos mais fortes.

GH: O vírus da gripe A já tem partículas diferenciadas…
MS: Tem partículas suínas, aviarias e humanas. Temos de ter atenção e não facilitar, mas também convém não alarmar. Devemos conversar, como estamos a fazer agora, e tentar aprender cada vez mais, mas temos que ter calma.

GH: Professor, mas a verdade é que tem havido muito alarme…
MS: Claro que tem. Quando ouvi falar daquela criança que ficou isolada, num hospital, isso incomodou-me, como é lógico. Há que passar a informação de uma forma correcta e transparente. As pessoas têm de ser esclarecidas sobre os factos. Tem de se passar a informação de uma forma correcta. Se assim não for, vai ser muito complicado.

GH: Esse é outro ponto para análise: a possibilidade destes doentes poderem ser estigmatizados, como foram (são) os do VIH/SIDA, tuberculose, etc…
MS: Penso que esta pandemia será mais limitada no tempo, uma vez que a SIDA é uma doença crónica… é lógico que as pessoas, infectadas pela Gripe A, podem ser estigmatizadas e é importante também que se analise correctamente essa situação. Os profissionais de saúde, por exemplo têm de estar preparados para não serem eles o fio condutor do estigma. Isto é muito importante! Neste momento, como se sabe, há hospitais de referência, pois nem todos os hospitais estão preparados para esta circunstância – e nem todos são obrigados a ter essas respostas. Isto deixa-nos relativamente tranquilos, uma vez que sentimos que, ao nível do apoio clínico e logístico, as coisas estão estruturadas e estão a funcionar.

GH: No caso da gripe A se tornar um caso mais grave o que está estruturado, a nível hospitalar, é suficiente?
MS: Se a situação piorar os hospitais estão ultrapassados. O que quero dizer é o seguinte: as situações mais graves – pneumonias e outras – logicamente que serão encaminhadas para os hospitais de referência e afins e os restantes doentes devem ficar em casa para serem tratados através de apoio domiciliário. O hospital não pode funcionar se houver uma situação de calamidade total, como é lógico. O primeiro objectivo é impedir a propagação da doença e, depois, minimizar os riscos.

GH: Mas como é que as pessoas se vão tratar em casa?
MS:
Terão de ser criadas condições para tal, através dos serviços domiciliários, e contando com os profissionais terão de ir a casa dos doentes. Quanto a mim, não há nenhuma circunstância que fuja desta regra. Neste caso, todos os profissionais de saúde terão de encontrar um meio para trabalharem em conjunto…

GH: Temos médicos e enfermeiros suficientes?
MS: Temos, claro que sim! Há muita coisa que está a ser feita, mesmo que não se saiba. Foram reavaliados os planos de contingência; criados hospitais de referência e outros de apoio; foi criada a linha telefónica para atendimento de doentes, numa primeira fase. Dou-lhe um exemplo, a Universidade de Coimbra – não o Hospital – pediu-me já para ir coordenar um plano de contingência da instituição, com a colaboração de alunos de Medicina e outros. E as coisas funcionam. O que eu não gosto é que compliquem as coisas. Eu vim agora à Fundação Calouste Gulbenkian e fui à toilette, e as normas que estavam afixadas para a lavagem das mãos eram, quanto a mim, complexas demais. Só de ler aqueles pontos todos ficamos cansdos. Digo-lhe que fiquei incomodado, enão me parece que seja o comportamento ideal face às circunstâncias. Se se disser à população para lavar as mãos bem lavadas, isso chega!

GH: A vacina está a ser desenvolvida e testada e não há certeza nenhuma de que ela possa funcionar…
MS: É verdade… não se sabe!

GH: Vamos partir do principio que sim. Deve chegar a Portugal em Dezembro, o que significa que passamos o Outono sem vacina e sem protecção. O que é que isso pode significar?
MS: Uma pandemia! Temos que ter a consciência disso. Não há nada que se possa fazer. A OMS já fala de uma pandemia, pelos nossos critérios ainda não chegámos lá… estamos a caminho. Se no Outono isso acontecer, a parte complicada – já não estou a falar das mortes e da doença – vai ser a parte económica: indústrias fechadas, escolas fechadas, comercio fechado, etc, mas pode ser que nada aconteça, não é ?

GH: A Alemanha já determinou quem é que vai vacinar numa primeira fase. Ou seja, vai vacinar grávidas, crianças, profissionais de saúde e da protecção civil. Nós ainda não fizemos essa selecção.
MS: Olhe que está feito, porque muitas dessas atitudes e acções já tinham sido estudadas, aquando da gripe aviaria – a H5N1 – agora o que temos é de adaptar as regras criadas às circunstâncias que forem acontecendo.

GH: Falemos agora da fobia das máscaras… A máscara protege, de facto?
MS: Depende da máscara. A que nós, profissionais de saúde, usamos lá dentro – nos hospitais de referência –essa protege. Mas a máscara normal, que anda por aí à venda, não serve de grande coisa… digamos que é melhor que nada, mas não tem protecção total!

GH: As viagens de avião, são um factor de contaminação?
MS:
São. Com o Metropolitano também é. E depois há casos e casos. Eu tenho um filho que está nos Estados Unidos, a fazer um pós graduação em Estomatologia. No sector dele ninguém facilita e não trabalham sem máscara, o queé ompreensível. Mas em muitas situações, usar máscara só serve para alarmar e não tem lógica. Tem que haver bom senso em toda esta questão.

GH: Vamos falar agora daqueles doentes que podem estar mais vulneráveis. Estou a lembrar-me dos infectados pelo VIH/SIDA, mesmo os co-infectados, e os doentes crónicos, no geral. Aqueles que apanharem esta gripe, como ficam?
MS: Podem ficar mal! Tudo o que seja a parte imunitária alterada, pode ser grave, depende do grau de imunidade. Temos algumas células que actuam sobre a parte vírica, e temos que ficar alerta. Mas nada é certo a 100 por cento.

GH: Quem deve estar na linha da frente para ser tratado?
MS: Os asmáticos, por exemplo, assim como os diabéticos, pelo menos era isso que eu fazia.
Depois temos de saber de que vírus se trata para se saber como é que a vacina deve ser aplicada e a quem. Nem sempre uma vacina pode ser administrada a toda a gente. Não sei, por exemplo, se posso vacinar os doentes vítimas de Sida com esta vacina. Depende do vírus.

GH: Os cientistas que estão ligados à descoberta da vacina para a Gripe A, estão no bom caminho?
MS: Espero que sim, e eles também devem esperar, pois só têm a ganhar!

GH: Está a falar de dinheiro?
MS:
Não estava a pensar nisso, mas se formos por aí também se vai ganhar muito dinheiro com a nova vacina.

GH: Voltemos ao que tem acontecido e que não tem explicação. Consegue dizer-me porque é que as pessoas saudáveis, que são infectadas com este vírus, morrem em dois ou três dias? Teria mais lógica que isso acontecesse com pessoas com mais idade, ou com o sistema imunitário mais fraco.
MS: Aí, pode haver patologias associadas, nomeadamente, pneumonias e sépcias, entre outras.

GH: Professor, com o aparecimento da gripe A, deixou de se falar – já se falava pouco e agora ainda menos – de problemas que são também complicados. Estou a lembrar-me da tuberculose, em Portugal, que apesar de ter havido alguma contenção, continua a ter taxas altas, comparativamente com os restantes países da Europa.
MS: Portugal nesse domínio está mal. Neste momento temos tudo preparado para a gripe, mas temos também de ter em atenção que os outros doentes não podem ser deixados de lado, ou para trás. E se a coisa for muito complicada e rebentar pelas costuras, ao nível de internamento, temos que ter respostas para os pacientes com tuberculose, por exemplo, que necessitam de ficar isolados e com todo o apoio possível. Há a gripe, mas também há as outras coisas, e há que ter em atenção o que fazer em situações de crise. Quem internar primeiro ? É que as camas de isolamento estão cheias e sabemos que a situação pode piorar. Acho que as autoridades em Portugal estão atentas. A senhora ministra da Saúde tem sido muito ponderada, muito correcta, tem feito as coisas sem alarme e sabe lidar com as crianças que somos todos nós, nestas circunstâncias. Nesta fase era necessária esta postura. Considero, aliás, que a equipa em si, no domínio da gripe A, tem trabalhado bem até comparativamente com o que se tem feito a nível internacional.

GH: Mudando de tema. Recentemente houve algma polémica relativamente ao facto de os homossexuais estarem excluídos de dar sangue. Como analisa a questão ?
MS: É um absurdo total! Ao fim destes anos todos; ao fim de tudo o que se sabe sobre o assunto é dramático que ainda se pense assim. O que as pessoas têm de fazer é testes, após os testes feitos e se der negativo qualquer pessoa pode dar sangue, qual é o problema! Não há lógica nenhuma nisso, nem vale a pena estarmos a perder tempo com isso.

GH: Outra questão. Recentemente veio a lume a notícia de que os idosos infectados com VIH/SIDA estavam a ser impedidos de irem para lares da terceira idade. Mais uma vez a discriminação e o estigma. E a pergunta que lhe deixo acaba por ser mais geral: que sociedade é esta em que a partir de questões de saúde e de doença se fazem exclusões? Como é que isto se combate?
MS: De facto a sociedade que estamos a deixar para os nossos filhos não é melhor do que a que os nossos pais nos deixaram. Mas sabe, eu tenho muita confiança nos jovens do futuro. Acho que são excepcionais, ao nível de qualidade e do empenho que põem nas coisas que fazem. Agora nós, que somos pais e responsáveis, estamos a formá-los mal, com base num egocentrismo brutal.

GH: Passaram 30 anos após a implementação do SNS. Que análise faz?
MS: Quando conseguimos que Portugal fosse cotado em 12.º lugar no nível de indicadores de saúde, segundo critérios da OMS, acho que devemos começar a pensar noutras coisas. Eu acho que temos de analisar as coisas numa perspectiva global, relativamente aos profissionais. Eles têm de ser bem pagos; devem ter condições de trabalho. Os doentes devem ter as respostas de que precisam e nada disto é imposição para que não exista um serviço privado de saúde bom. Agora, temos no SNS profissionais de grande qualidade e pratica-se uma óptima Medicina. Eu, se estiver doente quero ir para o serviço público. Não tenho qualquer dúvida disso!

GH: O que é que o motiva ?
MS: Os grupos de trabalho. Aquela sensação de dizer: “Estou cansado, vou deixar isto”, e haver quem diga: “Professor não vá que faz cá falta”. Isto é gratificante. Eu confio muito na palavra das pessoas. Isso para mim é muito importante, embora já tenha tido dissabores. É assim que deve ser. Eu pelo menos penso assim. E depois estou numa fase muito boa da minha vida, em que posso dizer e fazer o que me apetece.

Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 44

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