domingo, julho 05, 2009

HPP não sabe se é bom negócio

Parceria público-privada na gestão do Hospital de Cascais
O Estado deverá sair a ganhar com a primeira PPP na área da Saúde. Pela parte privada, a HPP ainda não tem a mesma certeza. O administrador, José Miguel Boquinhas, justifica a dúvida com a «imensa conflituosidade» originada pela ausência de uma série de indicadores no caderno de encargos.
A gestão privada no Hospital de Cascais, da rede pública, tem de seguir um caderno de encargos com cerca de quatro mil páginas. O modelo de parceria público-privada (PPP), por ser novo, apresenta «imensas dificuldades» e é «imensamente conflitual» com a esfera pública. As palavras, ouvidas no passado dia 25, em Lisboa, são de José Miguel Boquinhas, administrador da HPP Saúde, detida maioritariamente pela Caixa Geral de Depósitos e parceira do Estado na gestão da nova unidade hospitalar.
Apesar dos milhares de páginas que fazem a ponte entre os sectores público e privado, o também presidente do conselho de administração do Hospital dos Lusíadas aponta «uma série de indicadores que não foram previstos». Resultado: «Há imensa conflituosidade com o Estado.»
Tratando-se da primeira PPP na área da Saúde, o gestor privado aconselha «estudos sérios» à nova realidade. Mesmo sem essa avaliação, José Miguel Boquinhas tem uma certeza: «É um excelente negócio para o Estado.» Quanto ao grupo privado a que pertence, persiste a dúvida. «Não sei se será um excelente negócio para a HPP Saúde», assume.
O administrador falava durante o primeiro jantar-conferência promovido pela nova direcção da Markinfar (Associação Portuguesa de Marketing Farmacêutico), em que os «Desafios no futuro da gestão dos serviços de saúde» davam o mote. O presidente do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), Adalberto Campos Fernandes, revelou, ao microfone, a conversa mantida antes com o gestor da HPP e que sustentava a tese do bom negócio para o Estado.
«O dr. Boquinhas disse-me que, em Cascais, vai conseguir fazer a operação hospitalar com menos recursos. Naturalmente, alterando o modelo de organização, bem como o modelo de remuneração e de incentivos», fez saber o gestor público.
Não sendo propriamente um grande adepto das PPP, o presidente do CHLN reconhece pelo menos um aspecto positivo que os novos hospitais públicos com gestão privada podem trazer: «A introdução de um factor de competição dentro do sistema, fazendo com que os hospitais de gestão pública sejam estimulados a ir mais depressa.»
Mudanças na organização, com avaliação interna e externa, partilha do poder com os profissionais de saúde e responsabilização pelos resultados são algumas das evoluções preconizadas por Adalberto Campos Fernandes. Tudo em nome da eficiência, que ainda apresenta margem para ser melhorada. Ideias corroboradas por José Miguel Boquinhas que, sempre ao nível dos desafios futuros, prefere falar em gestão pública por objectivos, avaliação do desempenho e alteração do modelo de pagamento dos médicos, com uma componente salarial variável.

Conforto concorre com privado

A rede pública hospitalar apresta-se para alcançar a melhoria das suas instalações, com as novas unidades a serem o ponto de partida. «Todos os novos hospitais públicos, ao nível de instalações, vão ter modelos semelhantes ao Hospital de Cascais. Ou seja, terão quartos privados e quartos de duas camas. É um enorme avanço em termos de conforto», salienta José Miguel Boquinhas. Residirá aqui, aliás, «o maior factor de concorrência» que o sector privado terá.
Numa intervenção destinada a profissionais do marketing farmacêutico, Adalberto Campos Fernandes subscreveu, entretanto, uma observação feita no início do jantar-conferência por Nélson Ferreira Pires, presidente da Markinfar: «Concordo consigo no problema da despesa ineficiente. Ele não é tanto nos medicamentos. O problema da despesa ineficiente é de organização.»
De acordo com o presidente do CHLN, a despesa hospitalar em causa, que o Tribunal de Contas chegou a estimar em 25%, «está visível aos olhos de todos». E para concretizar, deixou no ar perguntas como as seguintes: «Porque temos ainda hospitais públicos cujos blocos operatórios só trabalham de manhã? Porque temos médicos nos hospitais com horários de 20 horas?»
Relativamente à entrada de medicamentos inovadores nos hospitais públicos, Adalberto Campos Fernandes defendeu uma «concertação estratégica plurianual» entre a Indústria Farmacêutica e o Estado. «Temos de contratualizar a entrada da inovação, trabalhando tudo e muito sobre a qualidade da prescrição», sugeriu.

Contas apanham gripe

O CHLN já está a trabalhar, adiantou Adalberto Campos Fernandes, sobre a «ameaça nova» colocada pela pandemia de gripe A. Será mais um desafio, neste caso num futuro bem próximo, para a gestão dos serviços de saúde. Os actuais constrangimentos económicos e restrições orçamentais ajudam a aumentar a preocupação do administrador hospitalar.
«O comportamento esperado da pandemia de gripe torna o próximo Inverno e o próximo ano previsivelmente muito negativos para o sistema de Saúde, com forte impacte na área económica e financeira», perspectivou o presidente do CHLN.
Conforme lembrou, estima-se que em Portugal o número de pessoas infectadas ultrapasse os dois milhões. Um cenário que escurece ainda mais o discurso. Particularmente quando o gestor público tem pela frente uma plateia constituída por especialistas em marketing farmacêutico.
«O risco de pandemia generalizada pode deprimir mais o nosso PIB, a nossa criação de riqueza -- em Portugal e no Mundo. O que agravará as conversas que vamos ter para o ano: nós do lado dos compradores e os senhores do lado dos vendedores», anteviu o presidente do CHLN.

«Estado pode empurrar doente para o privado»

José Miguel Boquinhas não tem certezas sobre o que acontecerá ao sector privado nos próximos anos. Mas já consegue pôr em equação as forças que estarão contra e a favor. Nestas últimas, inclui o facto de os governos irem ser confrontados com o aumento dos custos na Saúde. «Pode levar a perdas de regalias sociais e à procura de alternativas em sistemas complementares fora do sector público. Ou seja, o Estado pode ver-se obrigado a empurrar o doente para o sector privado», antecipa.
O administrador do grupo privado HPP fala igualmente na «pressão da opinião pública» sobre os governos para aumentar os níveis de prestação. «Se não conseguirem encontrar essas respostas no sector público, vão ter de as encontrar no sector privado», conclui. No presente, já há exemplos do referido tipo de pressão: «Era impensável, há poucos anos, que houvesse na procriação medicamente assistida uma contratualização com o sector privado tão forte como está a haver.» A obesidade mórbida também é mencionada.
«São dois exemplos típicos de como a opinião pública empurrou o Estado para a necessidade de fazer contratualizações com o sector privado», constata José Miguel Boquinhas.
Do lado das forças que estarão contra a prestação de cuidados privados, o gestor coloca os próprios governos, independentemente de estarem mais à esquerda ou direita. «Razões de continuidade histórica relativamente ao sector público», na sua óptica, servem de explicação para o facto de os executivos serem «conservadores» na área da Saúde.

Recessão agrava despesa com medicamentos

Há quem fale em «fatalidade histórica» relativamente à dinâmica de crescimento da despesa com medicamentos. É o caso de Adalberto Campos Fernandes, que traz consigo o «slide clássico», onde se vê tal crescimento, na Europa e mais ainda nos Estados Unidos da América, de forma previsível e estável: «Normalmente, dobra as dinâmicas da criação de riqueza dos países.»
Pelo menos era o que acontecia até aqui. «Estamos hoje numa circunstância que agrava esta dinâmica, uma vez que a generalidade dos países da Europa estão com crescimentos negativos em termos de PIB», alerta o presidente do conselho de administração do CHLN.
No caso português, a última estimativa aponta já para uma contracção acima dos 4%. «Significa que a dinâmica de crescimento dos medicamentos sobre a criação de riqueza se agravou muito», conclui, acrescentando: «Isto apesar dos abaixamentos de preços e do esforço de negociação e de concertação com a Indústria Farmacêutica.»

Sérgio Gouveia, Tempo de Medicina 06.07.09

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