domingo, maio 31, 2009

Reforma dos CSP

Tertúlias do Alto debatem reforma. Criação dos Aces é um «desafio extraordi nariamente difícil»
Num debate onde as USF foram muito discutidas, Ana Jorge, Luís Pisco e Ana Ferrão defenderam os virtuosismos do modelo e Isabel Caixeiro deu voz às desigualdades criadas pela reforma. Da plateia, muitos apoiaram ambas as visões, mas sobressaíram as intervenções dos comentadores, Constantino Sakellarides e António Rodrigues, que lançaram alertas para o próximo passo: a implementação dos Aces.
É quase unânime que as reformas da Saúde feitas no passado não trouxeram mudanças significativas e, porventura, os cuidados de saúde primários (CSP) são disso o maior exemplo. Isso mesmo lembrou Constantino Sakellarides, director da Escola Nacional de Saúde Pública e coordenador do Grupo Consultivo para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, que interveio como comentador nas «Tertúlias do Alto», realizadas no passado dia 26.
Mas não foi por aquele caminho que trilhou a reforma dos CSP em curso, em que se apostou na «autonomia» e na «responsabilidade» dos profissionais, princípios-base das unidades de saúde familiar (USF). Essa foi, para Constantino Sakellarides, a base do «grande sucesso» de uma reforma «genuína», onde «o que está escrito tem estado a acontecer».
Não obstante, o professor advertiu que se avizinha «um desafio extraordinariamente difícil» com o enquadramento organizacional desta reforma, isto é, a criação das restantes unidades funcionais dos agrupamentos de centros de saúde (Aces). Nessa matéria, é fundamental assegurar que o enquadramento «não resulte numa dinâmica centrífuga», onde funciona «cada um [unidade funcional] por si, sem a articulação horizontal» que assegure cuidados de saúde.
«O grande desafio — concluiu Constantino Sakellarides — é beber do sucesso da reforma e criar, a partir daí, a base social de apoio necessária para enfrentar o próximo desafio: criar agrupamentos de centros de saúde que sejam novas organizações capazes de viver com a marca desta autonomia com responsabilidade.»
Mais preocupado com a criação dos Aces mostrou-se o outro comentador destas Tertúlias dedicadas aos CSP, António Rodrigues. O médico do Centro de Saúde de Eiras, que fez parte da primeira equipa da Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), reconheceu que, até ao momento, faz «uma avaliação fortemente positiva» do processo de criação das USF, mas em relação aos agrupamentos aconselhou: «Há que pensar seriamente se a dimensão eleita para os Aces foi a mais adequada.» Afinal, em média, cada agrupamento tem 387 profissionais e 155 mil habitantes, uma dimensão que, ao médico, parece «muito elevada».
Entre outras lacunas encontradas por António Rodrigues, está a falta de um contrato-programa tipo para os vários agrupamentos, que devia ter sido «acautelado aquando do lançamento dos Aces» e que é, na opinião do médico, o motivo das discussões sobre o poder efectivo dos Aces, onde uns puxam por «lógicas muito autonómicas» e outros defendem «uma versão muito redutora» que tem a ver com delegação de competências ou fundo de maneio.

«Défice de orientação estratégica»

As questões ainda por resolver criam a «necessidade de uma estrutura estrategicamente bem colocada, empreendedora e pró-activa», características que António Rodrigues não reconhece na actual MCSP. Aliás, a voz do antigo membro da equipa foi, no debate, das mais críticas à actuação do grupo coordenado por Luís Pisco. «Parece haver um défice de orientação estratégica neste momento em relação à reforma», desabafou o médico, para quem, «nos últimos meses, a Missão tem revelado alguma debilidade de intervenção».
«Há que ter um novo impulso», pediu António Rodrigues, para criar os Aces e respeitar as orientações do relatório dos cuidados de saúde primários.
Quem se juntou nas críticas à equipa de Luís Pisco foi outro ex-membro da MCSP, João Rodrigues. O médico da USF Serra da Lousã pediu «mais transparência em relação à visão, à estratégia e às metas a atingir», pois considera que só assim se faz com que a «administração colabore» com a reforma e que «o processo não estagne no que falta fazer». Foi nesse sentido que João Rodrigues questionou o coordenador da MCSP: «Quando é que conhecemos os objectivos e as metas para a reforma do próximo ano?»
Luís Pisco respondeu, lembrando que a equipa foi «reconduzida há muito pouco tempo», mas na primeira reunião geral da Missão «foi estabelecido um plano de acção» que brevemente será dado a conhecer.
Os motivos para um novo mandato da MCSP mereceram, por sua vez, explicações por parte de Ana Jorge e Luís Pisco. Embora o recém-reconduzido coordenador esteja convencido de que a equipa anterior tinha «feito um bom trabalho», estava preparada para sair de cena e que «não teria acontecido mal nenhum» se tal tivesse acontecido, a ministra da Saúde considerou importante manter a estrutura para fazer «o acompanhamento do que já está feito e reforçar» o trabalho de criar no terreno os Aces e as unidades funcionais que os compõem.

Olhares sobre a reforma

Porém, o debate não se centrou só no futuro. Antes pelo contrário. Muitos foram os que analisaram os objectivos já alcançados pela reforma, sempre com as USF em pano de fundo. Coube a Ana Jorge abrir a discussão, garantindo que só teremos «saúde para todos se tivermos os cuidados de saúde organizados», lembrando, novamente, que a reforma continua a ser uma das prioridades do Governo. «Agora, a reforma só se consolida quando forem constituídas todas as unidades [dos Aces]», frisou a governante.
Luís Pisco lembrou a contabilidade das USF. São 170 as unidades em funcionamento, 3000 profissionais envolvidos, dos quais 1200 são médicos, e 20% da população abrangida, com um ganho de 230 mil utentes que passaram a ter médico de família. Perante o cenário, o coordenador da MCSP assegurou que, neste momento, «há condições» para atingir o objectivo para 2009: chegar ao fim do ano com 250 USF em funcionamento.
Ana Ferrão, coordenadora da USF Marginal, esteve no debate para dar a perspectiva de quem tenta, no terreno, concretizar a reforma. A médica contou como, em 2006, a sua USF estava isolada no Centro de Saúde de Cascais. Passados dois anos, os restantes profissionais do centro de saúde «viram as vantagens» do novo modelo e já se mostram interessados em avançar com candidaturas.
Um movimento que António Rodrigues denominou de push and pull, importante para o sucesso da reforma, em que quem está integrado em USF mostra aos profissionais das UCSP as vantagens do novo modelo organizativo e os incentiva a avançar com as candidaturas.
Contudo, ainda há aperfeiçoamentos a fazer. Ana Ferrão salientou a necessidade de «melhorar» a monitorização da actividade, o que é fundamental para a atribuição de incentivos. E, apesar dos atrasos nos pagamentos, a médica mostrou-se optimista: «Acreditamos que as coisas vão acontecer.»
No que respeita à contratualização, a coordenadora concorda com controlo e metas «exigentes», mas estas têm de ser «exequíveis» e ter em conta o «contexto» em que se insere a USF.
Nesta matéria, António Alvim, coordenador da USF Rodrigues Miguéis, alertou para o perigo de as unidades passarem a «trabalhar em função de indicadores e não em função dos utentes». O médico disse ainda ter a sensação de que os indicadores se centram demasiado nos «aspectos preventivos» e «pouco na Medicina curativa e na relação de proximidade com o utente».
As críticas vieram do lado da Ordem dos Médicos, representada pela presidente do Conselho Regional do Sul (CRS), Isabel Caixeiro. A médica de família reconheceu que a maior preocupação gerada pela reforma é a «desigualdade de acesso» entre os utentes que têm a «sorte» de estar integrados numa USF e os restantes, à qual se juntam as condições «completamente distintas» entre quem trabalha numa USF e quem está no modelo antigo.
Uma opinião secundada por outro membro do CRS, José Luís Gomes, que lembrou as condições de alguns centros de saúde tradicionais: «São autênticos pardieiros.»
Com um olhar optimista, Constantino Sakellarides admitiu que a reforma trouxe «desigualdade» no acesso aos cuidados e nas condições de trabalho, que até considera «obrigatória nesta fase de transição», mas deixou um alerta: «Julgo importante que os poderes políticos estabeleçam um limite temporal para essa desigualdade. É importante dizer que é aceitável no período de transição e que faz parte integrante da dinâmica da reforma, mas que tem um limite, não pode ser para sempre.»

Rita Vassal, Tempo de Medicina 01.06.09

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