segunda-feira, maio 18, 2009

Se Portugal fosse um país a sério...

Os pobres não vão assaltar bancos, bombas de gasolina, ourivesarias e caixas Multibanco, para comprar roupa de marca

... muita coisa que se faz não se poderia fazer.

Se Portugal fosse um país a sério não permitiria que um alto funcionário, seu representante numa instância internacional, sujeito a um processo disciplinar muito delicado, que o envolve, justa ou injustamente não sabemos, numa interferência abusiva num processo de corrupção que envolve o nome do primeiro-ministro, continue a gozar da confiança política que o cargo exige. Nós sabemos que foi um corpo idóneo da justiça e um inquérito prévio que entenderam haver sérias suspeitas que justificam o processo e sabemos que o cargo implica confiança política num magistrado que também tem carreira política, e que fez parte de um governo do PS. Convém lembrar que a representação no Eurojust, uma agência europeia, é dependente dos Estados-membros que nomeiam os seus membros, e não da hierarquia da Procuradoria-Geral da República portuguesa. Por isso, existe um acto de cobertura política na manutenção desse funcionário.

Se Portugal fosse um país a sério reagiria com veemência ao anúncio do primeiro-ministro de ir à Madeira distribuir 200 computadores Magalhães, num acto de pura propaganda política, que transmite todas as mensagens erradas sobre a apropriação partidária e pessoal do Estado por um homem e por um partido. Esta noção patrimonial do Estado, que é "deles", que "eles" oferecem ao sabor das conveniências, das compras dos votos, é a do país das "cunhas", dos "pedidos", dos "favores", da corrupção, do partidarismo, das clientelas, o mesmo Portugal de sempre de que não nos livramos nunca, o do Senhor Joãozinho das Perdizes e a sua fila submissa de eleitores paga a copos de vinho. Ao lado de Sócrates, atacar Valentim Loureiro, que dava electrodomésticos em campanha, é pura hipocrisia. Valentim dava os seus próprios electrodomésticos, pagos com o seu dinheiro, Sócrates dá os computadores, pagos com o nosso dinheiro, a que só falta colocar um emblema do PS, como certamente Elisa Ferreira quereria, ela que disse que Rui Rio pintou os bairros sociais do Porto, "mas esqueceu-se de vos dizer que o dinheiro é do Estado, é do PS". É do Estado, logo é do PS.

Se Portugal fosse um país a sério, não deixaria sequer um político balbuciar (como fazem no Bloco de Esquerda), face aos acontecimentos no Bairro da Bela Vista, que se trata de uma "questão social". Que a Igreja o diga, ainda se percebe, porque o seu Reino não é cá na Terra, e a caridade com o bom e o mau ladrão faz parte da sua missão. Mas a caridade não é a missão do Estado. A missão de Estado é garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades.
É inaceitável que tal se diga como explicação, argumento, desculpa, hesitação, em vez de dizer-se claramente que os pobres não fazem carjacking, não se armam com uma caçadeira e não vão assaltar bancos, bombas de gasolina, ourives e ourivesarias, e caixas multibanco, para comprar roupa de marca. A subcultura da violência que se instalou nalguns bairros de Lisboa, Setúbal e no Porto, com todas as variantes que vão da violência do futebol e das claques (já todos estão esquecidos do rap dos Ultras da Ribeira) aos gangs organizados, é, como todas as coisas, "social", mas é, primeiro e antes de tudo, criminal. É mais próxima das organizações mafiosas e camorristas, com os seus códigos de honra que servem como factor de identidade e de defesa contra a polícia, do fascismo e da violência terrorista. Que o diga a maioria dos habitantes desses bairros, gente pacífica e, essa sim, atingida pela pobreza e pela exclusão, mas que ainda arranja forças para ir trabalhar nas limpezas de escritórios às seis da manhã, ou para a construção civil nas carrinhas dos subempreiteiros. Essa sabe muito bem a violência de que é vítima pelos mesmos que, nos momentos cruciais, os jornais e comunicação social hesitam em dizer a cor e a tribo, porque não é politicamente correcto, hesitam em nomear como gangster, ou em tratar... como criminoso. Aparecessem eles de mão ao alto e cabeça rapada, com tatuagens com cruzes gamadas, em vez de ouvirem o kuduro, serem cool niggers, e muito SOS Racismo, e haveria um coro repressivo de mata e esfola. Assim é um "problema social" que eles, coitados, resolvem a tiro e a cocktail Molotov, e a duzentos à hora, porque não têm emprego nas obras.

Se Portugal fosse um país a sério, nós olharíamos para o Bloco de Esquerda como ele realmente é, a face do comunismo na sua roupagem actual, que nos cartazes por todo o lado, na sua súbita riqueza propagandística, propõe soluções só possíveis em sociedades totalitárias e não democráticas. Não se excitem que é mesmo assim. Como é possível, sem expropriação da propriedade privada e sem destruir o essencial da economia empresarial e de mercado, propor a proibição de despedir quando há lucros? Na Venezuela "chavista" é o que se começa a fazer, para tapar o desastre económico a que o socialismo populista de Chávez condena o país. Claro que isto só se pode fazer fechando pouco a pouco todos os órgãos de comunicação social independentes, e colocando milícias de camisa vermelha nas ruas a espancar todos os que se colocam do lado dos "ricos". Como é possível não perceber que se a energia "é de todos", por que razão não o é a água, a terra, as minas, as casas e por aí adiante?
Na verdade, como já o disse, o BE acha mesmo que tudo é de todos, a mais clássica fórmula do comunismo, mesmo que, também como acontece em todos os comunismos reais e no caminho para eles, muitas "pequenas" excepções são aparentemente permitidas. Se lhes perguntarem se querem abolir a propriedade privada, jurarão que não. Mas experimentem continuar a perguntar, entrando naqueles terrenos de precisão ideológica e política que muito pouca gente trilha na comunicação social diante do BE, com receio de passarem a "direitistas" ou "provocadores", e verão como certos adjectivos começarão a ser colados aos substantivos, como democracia, empresa, mercado, propriedade, que começam a ter baias e limites em nome de "todos", dos "pobres", da "responsabilidade social", da "justiça" e acima de tudo da moral, a épica noção que faz Louçã revirar os olhos das palavras.
Até neste uso apocalíptico e justiceiro da moral se vai na melhor tradição comunista. Vejam os cartazes e a retórica, mas tenham a noção de que votar no BE hoje está muito para além de ser uma inócua maneira de manifestar uma zanga com o governo. É votar numa velha ideia antidemocrática, iliberal, "orgânica", populista, cujos estragos em mortes, sofrimento, atraso, violência, nos últimos cem anos, deixam a actual crise como uma brincadeira de bebé.

Se Portugal fosse um país a sério, restar-lhe-ia como última esperança de sanidade que o Presidente da República vetasse a lei do financiamento partidário. Eu compreendo muito bem aquele voto unânime numa lei de interesse próprio, mas não é preciso ser uma águia do pensamento para perceber até que ponto tudo é errado, a lei, o que permite, a oportunidade e a... unanimidade. Não percebo de todo por que razão um partido como o PSD, que quer ser alternativo ao poder existente, cuja direcção política deve perceber melhor do que ninguém as perversidades que a lei contém, a votou.

Se Portugal fosse um país a sério, teria mais respeito por si próprio e mais vontade de mudar. Sem isso, continua como está.
Pacheco Pereira, JP 16.05.09