sábado, dezembro 24, 2016

ACF, entrevista expresso 24.12.16

Diz ser dos poucos médicos que lê assiduamente os jornais económicos e por isso gosta de números. As contas que faz permitem-lhe garantir como ministro da Saúde que o remédio para os males da Saúde portuguesa não é injectar mais dinheiro, mas sim optar pela organização cirúrgica do sistema, aquela que o seu antecessor, que admira, não fez. Quase no fim do ano, revela que as contas vão bater certo com o que estava previsto e que a partir de 2017 os portugueses vão ter mais e melhor cuidados: desde novas instalações, exames atempados até médicos onde fazem falta.
O Tribunal de Contas concluiu que o Hospital de Braga, gerido por privados, travou assistência a doentes por restrições orçamentais, fazendo aumentar a lista de espera. É admissível?
Quando se fazem parcerias público-privadas (PPP) parte-se do princípio que há uma partilha de risco. Se o operador entende que sempre que há alterações das condições de procura esse risco tem de ser reapreciado, então o Estado não beneficia nada com a partilha de risco. É importante que os hospitais em regime de PPP tenham a noção de que os termos dos contratos têm de ser assegurados, nomeadamente em tempos de espera e em gestão de listas de acesso.
O relatório dá argumentos para renovar o acordo?
Temos de ser muito rigorosos e sensatos. Não estamos neste momento a analisar a PPP de Braga, só o contrato que se está aproximar do fim e que é a PPP em Cascais. A realidade de Braga daqui por um ano, quando a avaliação externa for feita, poderá ser diferente e até melhor do que aquela que é hoje.
Já disse informalmente à Lusíadas Saúde que iria abrir novo concurso para Cascais?
Transmiti informalmente ao presidente do grupo que não estava no horizonte do Governo fazer negociação direta. Será agora feita a notificação formal. Ao Governo caberá até ao final do ano tomar uma decisão sobre se segue a recomendação do Ministério das Finanças de concurso público ou se opta pela reintegração no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Entre abrir concurso ou passar para gestão para o SNS há uma grande distância. O que vai pesar mais na hora de decidir, a pressão dos parceiros (BE), do PR ou a questão ideológica?
Está escrito no programa do Governo que decidiríamos de acordo com a melhor evidência técnica, económica e clínica e é isso que vamos fazer. Naturalmente, que teremos em conta aquilo que são as opiniões políticas dos partidos que apoiam atualmente o Governo e a opinião que tem o PR.
O próprio primeiro-ministro disse ao Presidente que não tencionava acabar com as PPP na Saúde.
Vi isso no jornal, mas não estou presente nas conversas do senhor primeiro-ministro com o senhor PR e nem me atreveria a qualquer comentário.
O BE insiste muito no excesso de rendas na Saúde e tem vindo a exigir poupanças. Partilha a ideia de que há contratualização excessiva?
É nossa linha de orientação política reforçar o SNS na sua substância e em 2017 vamos criar os primeiros centros de responsabilidade integrada, alterando profundamente os modelos de gestão intermédia dos hospitais. No início de 2017 iremos lançar o primeiro Centro Integrado de Diagnóstico e Terapêutica — um serviço com multivalências que responderá pela plenitude de meios de diagnóstico e terapêutica e que visa o caminho progressivo de menor dependência do SNS do exterior e de uma internalização virtuosa. Vamos criar o primeiro centro no Hospital Pulido Valente, para responder internamente à procura dos hospitais de Lisboa, e outros, e dos centros de saúde, para que não estejam dependentes do serviço externo. Há também o aumento da resolutividade dos centros de saúde, com a introdução de saúde visual, oral...
Como é que se faz quando os hospitais dizem não ter equipamentos e médicos?
Desde que o Governo tomou posse, foram feitas mais de 800 linhas de investimento. A ideia de que há falta de recursos e de investimento tem razão de ser em muitos aspetos, mas tem de ser contrabalançada com a realidade de que fecharemos o ano com mais de 3200 novos profissionais no SNS. Em relação aos equipamentos, temos feito um esforço grande e temos em pré-lançamento o maior investimento em hospitais novos e em reabilitação e construção de centros de saúde.
Falhou o objetivo de reduzir a procura às Urgências.
Não reduzimos como queríamos e temos de investir mais na requalificação dos centros de saúde. Mas é paradoxal: fechamos o ano com o maior número de médicos de família colocados de que há memória e com a redução dos utentes sem médico.
O despacho publicado sobre o recurso prioritário ao Instituto Português do Sangue e da Transplantação é uma questão de princípio? Sabe-se que não tem capacidade para responder a todas as necessidades.
O despacho é claramente uma questão de princípio, de defesa do Estado de direito. É um gesto de grande determinação de investir no instituto, inclusivamente na sua modernização, para que no ano que vem possa assegurar o seu papel de regulador ativo, participante e atenuar as dependências excessivas do Estado de agentes privados e também ajudar a regular o mercado, à semelhança do que acontece em muitos outros países da Europa. No despacho está dito que isto é também uma matéria de segurança nacional e de soberania e além dos princípios há uma fortíssima determinação de pôr cobro a esta fragilidade da relação dos privados com o Estado.
O PS apresentou uma proposta no âmbito do OE para impor um desconto aos fornecedores do SNS que depois não avançou. Acompanhou-a?
Estava a ser difícil estabelecer acordos com os fornecedores do SNS e apercebemo-nos que havia abertura para uma negociação bilateral. Estamos muito satisfeitos porque ainda este mês teremos assinado vários acordos, por exemplo com a União das Misericórdias e com a Associação de Análises Clínicas. A proposta terá contribuído para que todos tenhamos percebido que o diálogo é talvez a arma mais inteligente em qualquer negociação. Surgiu um caminho melhor e só não recua quem não é inteligente.
O reequipamento pesado do SNS vai começar por onde?
Pedimos às Administrações Regionais de Saúde que fizessem até ao final do ano o levantamento das prioridades. Uma parte dos investimentos será feita pela dotação dos hospitais, em muitos casos com fundos comunitários e parcerias com as autarquias, no caso dos centros de saúde. Será nas mais variadas áreas, mas sobretudo em tecnologia: equipamentos de bloco operatório, TAC, ressonância, ecografia. E tudo com a novidade de os contratos-programa para 2017 serem assinados em 2016 [sorriso]. Estamos contentes porque é um processo de normalidade processual e de funcionamento das instituições.
Deixe-nos contestá-lo sobre o regresso à normalidade, a dívida aumentou.
Tem de analisar-se a dívida que é gerada no próprio ano e os encargos que resultam do carry over. O Governo anterior tinha a expectativa de encerrar o ano com menos €30 milhões e encerrou com menos €372 milhões, e agora estamos, com o Ministério das Finanças, a fazer um exercício para que a execução orçamental se aproxime das metas anunciadas às instâncias internacionais.
Mas qual foi a dívida gerada pela sua governação?
Estamos quase a chegar ao fim do ano e recomendo alguma resistência na ansiedade. Posso, no entanto, adiantar que vai estar dentro do que estava previsto.
Um efeito do despacho que publicou para travar a despesa?
O despacho foi uma ‘tempestade num copo de água’, semelhante a outros de outros anos para recomendar que não deve haver assunção de encargos desnecessários. Estamos a chegar ao final do ano e o despacho que em setembro foi anunciado como a hecatombe hoje já não é notícia.
Elogiou o anterior ministro mas disse que foi uma oportunidade perdida.
Estão a confundir a apreciação de políticas com a apreciação de pessoas. Conheço o dr. Paulo Macedo há muitos anos e estará na Caixa Geral de Depósitos (CGD) provavelmente muito melhor do que esteve na Saúde, porque é onde as suas competências se realizam melhor. É um homem muito sério e responsável e o país ganha muito em tê-lo neste momento difícil da CGD como presidente. Enquanto português, desejo-lhe o maior dos sucessos e a maior das felicidades e, numa linguagem mais coloquial, creio que a CGD é mais a praia dele.
Porquê?
Ele fez tudo o que pôde, fez algumas escolhas com que não estive de acordo e não estou do ponto de vista das políticas, mas imaginem o que seria eu como presidente da Galp ou das Finanças... Um desastre. Sobre as políticas, as críticas que fiz, faço e mantenho. Sobre a pessoa, é de grande qualidade, fará um excelente trabalho e servirá muito bem o país como tem feito em outras ocasiões, nomeadamente na Direção-Geral dos Impostos, onde sentimos todos os dias na nossa carteira a eficácia do seu trabalho [risos].
Quantos precários existem na Saúde?
Talvez 10% do efetivo, cerca de 13 mil pessoas, incluindo profissionais de saúde.
Qual é a previsão de entrada?
Face à dimensão de empregos que geramos, cerca de 130 mil profissionais, não somos o pior sector. Sempre que os hospitais têm necessidades permanentes e justificadas no seu quadro, a orientação que está a ser dada é que façam os contratos a termo, porque os médicos e os enfermeiros fazem falta ao sistema.
A bastonária dos enfermeiros afirmou conhecer uma unidade onde a falta de enfermeiros obrigou doentes a ficarem sem comida e medicamentos durante dois dias.
Percebo que a senhora bastonária tenha a legítima preocupação de fazer empregar mais enfermeiros, que fazem muita falta ao SNS. Quanto ao caso concreto, tem de o transmitir de imediato às entidades, porque não sabemos onde foi.
Os bastonários da Saúde pediram na semana passada ao Presidente da República (PR) uma lei de investimentos plurianual. É uma boa ideia?
Em abstrato, era uma boa ideia, mas era importante que tivéssemos um discurso sensato. No conjunto da legislatura, vamos assistir ao maior investimento na Saúde desde sempre: maior vaga de remodelação e construção de centros de saúde, lançamento e construção de várias unidades hospitalares; o maior investimento no lançamento e abertura de camas de cuidados continuados integrados, além de investirmos fortemente nos recursos humanos. Portanto, não podemos alimentar mitos e é um mito que os problemas da Saúde se resolvem com mais dinheiro. 2016 era importante para a consolidação orçamental. À medida que os anos se forem sucedendo essas questões vão perdendo sentido.
Iria acabar, por exemplo, com casos de centros de saúde onde chove e outras condições inaceitáveis.
No domínio da apreciação dos factos e da boa fé, podemos dizer que aquele caso em 330 centros de saúde é irrelevante. Em todas as instalações, sobretudo se são precárias, é natural que possa entrar água quando chove muito. Mas uma coisa é verdade, não fomos nós que construímos aquela instalação precária, que estamos a reparar, e vamos construir um novo centro de saúde.
É atrativo desafiar os detratores da ‘geringonça’”
Tem na frase “na política é preciso ter nervos de aço” um dos seus lemas para governar a Saúde e confessa que a coincidência de pensamento com os partidos, sobretudo à esquerda, sobre a defesa do Serviço Nacional de Saúde, tem-lhe facilitado a tarefa. Adalberto Campos Fernandes garante que “se alguma vez existir uma rutura na sociedade portuguesa, não será na Saúde”. Ainda assim, não resiste a deixar um recado aos opositores: que contrariar o prognóstico de morte da ‘geringonça’ é um estímulo diário. Para o médico e gestor, mais do que anunciar a vinda do Diabo, a direita deve  dizer o que faria para evitar que o demónio venha.
Que matérias têm sido mais difíceis de dialogar à esquerda?
Tem sido relativamente fácil porque há uma identidade grande. O PS é o partido fundador do SNS e é um ativo ao qual está relacionado e que em nenhuma circunstância se quer demarcar. Portanto, o BE, PCP e os Verdes têm em relação ao SNS posições que são, na sua esmagadora maioria, coincidentes com as do PS. As parcerias público-privadas são um ponto de eventual divergência, nas taxas moderadoras o PCP tem uma ideia mais ambiciosa...
Se o Governo fosse só PS as medidas seriam diferentes?
Fui um dos redatores principais do programa eleitoral do PS e depois do Programa do Governo, com outras pessoas, nomeadamente com o professor Correia de Campos; e quando estávamos a fazê-lo não tínhamos ideia de qual seria o resultado das eleições. A resposta está dada, se tivéssemos de reescrever o programa da Saúde (sem PCP, BE e Verdes), iríamos escrever exatamente o mesmo.
E no próximo vai voltar a baixar as taxas moderadoras?
Vale a pena avaliar. Temos o maior número de cidadãos isentos, vamos ver. Cada orçamento é uma realidade e há muitas mais coisas em benefício das pessoas do que baixar taxas. Quando discutimos isto não podemos isolar a questão da procura dos cuidados privados e da relação de custooportunidade que o cidadão tem com a Saúde. Tem pouco tempo e vai a uma Urgência, incluindo no privado, que também tido crescimentos brutais. É one stop shopping.
Quando tomou posse, pensou que um ano depois ainda estaria aqui?
[Risos] Essa é a pergunta a que respondo sempre da mesma maneira. Quando entrámos, fomos confrontados com uma realidade que tinha riscos porque era inédita e que foi exposta a uma barragem política de que não há memória em Portugal, e não é fácil governar nestas condições. Por um lado, temos de transmitir aos cidadãos confiança, solidez e responsabilidade, e por outro debatemo-nos com uma crítica política permanente que, sendo legítima, nalguns casos não é razoável. No final deste ano, as piores previsões não se verificam e há um maior alinhamento entre o Governo e a opinião pública, que não está a ser capturada pelos arautos da desgraça, que continuam a falar cada vez mais sozinhos. Na política é preciso ter nervos de aço e isto significa ser fiel aos princípios. Temos de ser muito verdadeiros com as pessoas. Precisamos de tempo para chegar ao final da legislatura e para, na Saúde, deixar o SNS melhor. As pessoas estão cansadas e o ruído paga pouco.
Fala com dirigentes do PSD e do CDS?
Falamos no Parlamento sempre que necessário e informalmente. Não há nada estruturado mas muitas vezes há iniciativas que são partilhadas e até votadas em conjunto. Se alguma vez vier a existir uma rutura na sociedade portuguesa, não será na Saúde. E também não será pela Saúde que o Diabo aparecerá [risos].
E fala com os partidos da ‘geringonça’?
As vezes necessárias. Quando há um acordo político e incidência parlamentar, o normal é que nos momentos-chave haja conversas entre os partidos.
No Parlamento ou aqui no Ministério da Saúde?
No Parlamento, que é o local certo para essas conversas.
Há algum risco de o Diabo aparecer?
Como tem dito o Presidente da República, podemos olhar para os tempos que temos pela frente pelo lado do dark side ou do brigth side of the moon e ter uma aproximação à realidade baseada num otimismo voluntarista irresponsável ou num ceticismo negativista e deprimente. Nenhuma coisa é boa. O Diabo no mundo poderá aparecer a qualquer instante e mais do que anunciar a sua vinda, é importante que os atores políticos digam o que fariam para evitar que o Diabo viesse.
Mas não sente que há um otimismo voluntarista?
Não sinto.
Nem no episódio da Caixa Geral de Depósitos (CGD)?
Recomendo um exercício que um amigo economista fez há pouco tempo, revisitar as previsões macroeconómicas desde que o Governo foi eleito até ao dia de hoje. Estamos a falar de crescimentos negativos, de défices que se aproximavam dos 4% ou até a impossibilidade de os compromissos internacionais serem assegurados. E, agora, vemos o FMI a rever posições, os economistas da Bloomberg a fazerem reavaliações... Efetivamente, valia a pena acreditar numa trajetória sustentável porque os sinais iam no sentido de que os objetivos iam ser atingidos.
Mas as previsões dos conselhos macroeconómicos foram reavaliadas em baixo.
Muito bem, mas no fundamental chegámos ao final do ano com Portugal a cumprir, pela primeira vez desde há 42 anos, a meta do défice. Para o sucesso do país vai contar a provável, e quase certa, saída do procedimento por défice excessivo, a evolução do desemprego, que até a nós surpreendeu; o crescimento do turismo...
E a economia?
Não foi tão boa como gostaríamos mas os economistas da Bloomberg já falam em 1,3%, que é acima do previsto. É fundamental que nos concentremos no essencial: a estabilização do sector financeiro. Mais do que as questões processuais, complexas e que podiam ter sido evitadas, é importante saber se o sistema financeiro português, a começar pela CGD, entra numa fase de estabilização. É importante para o financiamento da economia.
O PCP diz que os €8,5 mil milhões que gastamos com a dívida chegariam para financiar o SNS. Partilha desta ideia?
Partilho que €8,5 mil milhões é quase o orçamento do Serviço Nacional de Saúde.
Não partilha que seja feita uma renegociação da dívida?
Creio que é uma matéria demasiado sensível para que um país com a dimensão de Portugal possa tomar fora de um quadro que tem de ser europeu. Temos responsabilidades que não se esgotam numa legislatura e os governos têm de ponderar sobre essa matéria.
Quando olha para 2017, a ‘geringonça’ é uma ‘bomba-relógio’ que pode rebentar a qualquer momento?
Lembro-me da “crise do irrevogável”. Qualquer solução política em qualquer parte do mundo é suscetível de romper, basta que haja sobre matérias concretas uma diferença. Mas é esse o atrativo de soluções como esta. É todos os dias desafiar os detratores da ‘geringonça’ de que ela funciona. A questão não é conservar o poder, Portugal não se pode é dar ao luxo de não ter soluções de quatro anos.
Um bom ministro da Saúde precisa de ser mais gestor ou saber de medicina (no seu caso tem ambas as competências)?
Precisa de ter bom senso, humildade e também alguma intuição política.
Utiliza o serviço privado?
Não utilizo nem o privado nem o público, porque felizmente não tenho tido necessidade nem tempo. A minha família utiliza o SNS e pontualmente o sector privado.
E tem seguro de saúde?
Não. A minha mulher trabalha numa Unidade de Saúde Familiar e acaba por existir mais facilidade...
À portuguesa.
Sim, mas tudo dentro da legalidade [risos]. Mas se tiver de utilizar um hospital privado ou social, faço-o sem qualquer constrangimento. Não é aí que se vê a fidelidade de uma pessoa ou de um político aos princípios, porque é sua obrigação defender o serviço público.
Semanário Expresso, 24.12.16


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