Há um fantasma ...
Que continua a
esvoaçar no Ministério da Saúde
Ao longo dos anos as situações
contraditórias a nível das políticas governamentais de saúde têm-se sucedido,
assumindo muitas vezes formas inesperadas e até surpreendentes.
As organizações dos
profissionais de saúde, apesar das adversidades dos processos políticos e das
medidas altamente lesivas dos interesses laborais, têm conseguido, nos aspectos
essenciais, enfrentar com determinação essas políticas e esses círculos de
interesses que acabam sempre por se adaptar às novas situações e aos novos
actores do Poder político.
Depois de 4 anos de obsessão
privatizadora e neoliberal por parte do anterior governo, onde as políticas
sociais foram erigidas como inimigos a abater e em que o Estado Social foi
duramente golpeado, esperava-se que o novo ciclo político e governativo abrisse
uma janela de esperança e se apresentasse, de forma decidida, para romper com
as anteriores políticas e com os anteriores actores, designadamente na área da
Saúde.
A escolha do actual titular
ministerial desta área mereceu da minha parte um comentário público num jornal
diário, considerando-a uma opção infeliz, tanto mais que o actual governo se
apresentou como de esquerda e em ruptura com o passado governativo imediatamente
anterior.
Embora tenha sublinhado que a
minha opinião era de carácter exclusivamente pessoal e de a própria notícia ter
até salvaguardado esse aspecto, surge sempre alguém a considerar que sendo eu
um dirigente sindical é sempre difícil evitar que as declarações pessoais não
possam comprometer a organização sindical de que se é dirigente e que é sempre
difícil separar as opiniões pessoais das de dirigente.
É óbvio que um cidadão por ser
dirigente sindical não passa a estar impedido de emitir as suas opiniões
pessoais, relegado para uma cidadania de 2ª classe e a não poder exercer o
livre pensamento e crítica.
Ao contrário daquilo que
durante vários anos foi apregoado à falta de outros argumentos credíveis, a
FNAM sempre foi uma organização plural com diversas sensibilidades e uma firme
adversária do pensamento único.
Independentemente das posições
que os órgãos dirigentes da FNAM tomarem, nunca aceitarei estar inibido em
expressar livremente as minhas opiniões.
É neste contexto que não posso
deixar de abordar o recente discurso do Secretário de Estado Adjunto da Saúde,
Dr. Fernando Araújo, efectuado em 16/12/2015, na apresentação pública de 3
coordenadores para a reforma do SNS.
O discurso, não sendo extenso, contem diversas abordagens
habituais em quase todos os conteúdos programáticos de grande parte dos
governos, possui ideias genéricas sobre problemas há muito identificados e até
quantificados, mas existe um parágrafo que pela sua enorme gravidade
político-ideológica merece a elaboração deste artigo de opinião.
Ora, o referido parágrafo,
referindo uma das propostas ministeriais, diz o seguinte: “Um Sistema
Integrado de Gestão do Acesso, que facilite o acesso e a liberdade de escolha
dos utentes no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente no que diz respeito a
áreas onde a espera ainda é significativa, criando e estimulando um mercado
interno no Serviço Nacional de Saúde“.
Lendo isto, a surpresa é total,
desde logo por ter sido proferido pelo referido secretário de estado que eu não
julgava rendido a este tipo de ideologia e, por outro lado, porque há largos
anos que não havia uma equipa ministerial da saúde que se apresentasse, sem
subterfúgios, numa lógica de recuperação político-ideológica da tralha dos
conceitos neoliberais mais fundamentalistas e radicais que foram desenvolvidos
durante a década de 1980 por Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, para
desencadear a destruição do respectivo Serviço Nacional de Saúde (NHS).
Em 1989, o governo conservador
de Margaret Thatcher apresentou um documento orientador da reforma do sistema
de saúde com o título “Trabalhando para os doentes”. Este documento tornou-se
mais conhecido pela designação de “White Paper”.
Nas suas considerações gerais,
era afirmado que ele visava: o “fortalecimento do NHS”; “colocar o doente acima
de qualquer interesse”; “o governo mantém e não mudará os princípios sobre os
quais o NHS foi erigido”; o “NHS continuará aberto a todos e financiado pelas
contribuições fiscais”; e que “cada vez mais gente se dá conta de que nova
injecção de mais dinheiro não é, por si só, uma resposta”.
Como objectivos gerais foram
colocados os seguintes: “oferecer aos doentes, independentemente do seu lugar
de residência, melhores cuidados de saúde e maior possibilidade de escolha dos
serviços disponíveis”; “gerar maior satisfação e incentivos para os
profissionais do NHS que demonstrem responder satisfatoriamente às necessidades
e preferências dos doentes a seu cargo”.
Para permitir que os hospitais
que prestassem melhores serviços aos seus utentes tivessem acesso aos
investimentos financeiros de que necessitavam, o dinheiro para tratarem os
doentes poderia “cruzar” as então fronteiras administrativas entre os
distritos.
Nesse sentido, todos os
hospitais do NHS seriam livres de oferecer os seus serviços tanto ao sector
público como ao privado. Deste modo, o dinheiro acederia, diziam eles, com
maior fluidez onde fosse prestada a actividade assistencial e onde ela se
realizasse melhor (estas disposições definem o principio do “dinheiro que segue
o doente”).
Entretanto, foram criados os
chamados orçamentos para os “group practices”,justificados como uma forma de
ajudar os médicos clínicos gerais a melhorarem a prestação de serviços aos seus
utentes.
Os médicos clínicos gerais poderiam solicitar os seus
orçamentos ao NHS, que seriam por si administrados para comprarem directamente
aos hospitais que entendessem um pacote definido de serviços hospitalares para
os seus utentes.
O conceito nuclear deste “White
Paper” foi a separação das funções de prestador e financiador, nomeadamente
através da separação dos hospitais que prestam os serviços e das autoridades de
saúde e os clínicos gerais que lhes compravam esses serviços.
Em torno desta medida, foi
também argumentado que se os papéis estivessem separados, as agências
financiadoras teriam a possibilidade de efectuar um exame mais cuidadoso das
prioridades e necessidades dos doentes e das populações, e uma avaliação mais
cuidadosa e independente. Libertas das pressões imediatas de gerir hospitais e
das pressões políticas de interesses de grupos profissionais de saúde, poderiam
ser efectuadas avaliações mais críticas e tomadas decisões mais racionais.
Deste modo, e ainda segundo os
argumentos oficiais, as agências fornecedoras poderiam ficar aptas para
competirem umas com as outras pelos negócios das agências
financiadoras/compradoras.
No essencial, a separação entre
compra e prestação era parte do modelo de reforma assente no “mercado interno”
necessário para introduzir a atribuição de recursos baseada na competição entre
prestadores e formalizado através de contratos, em que essa atribuição estaria
ligada, cada vez mais, ao volume de actividade e aos custos e menos aos gastos
históricos .
O White Paper integrou todas as
concepções politicas e ideológicas da chamada “competição gerida” que é outro
dos chavões neoliberais da política privatizadora na saúde, num processo de
importação do modelo dos EUA. Aliás, é por demais elucidativo que o ideólogo da
competição gerida, o americano Alain Enthoven, intimamente ligado aos
interesses das HMO´s, tenha sido o responsável directo pela elaboração e
implementação do White Paper, acompanhado por uma numerosa equipa de largas
dezenas colaboradores do seu país.
As questões que acabo de
referir não são meras análises especulativas, mas trata-se da enumeração de
factos concretos da conhecida e dramática situação de destruição do NHS
britânico ao longo das últimas décadas.
Como vimos, todos os argumentos
publicitários para procurar dissimular os verdadeiros objectivos destruidores
do NHS por Thatcher e evitar uma imediata contestação da respectiva opinião
pública, começavam logo por afirmar de forma altissonante que o seu governo
iria manter e não mudaria os princípios sobre os quais o NHS tinha sido erigido
e passados poucos anos a “demolição” furiosa desse mesmo NHS tinha sido
desencadeada, atingindo os seus aspectos mais basilares.
Também por cá, os inimigos do
Serviço Nacional de Saúde vão soletrando abundantemente a sigla SNS para melhor
dissimular o seus objectivos inconfessáveis de o esvaziarem e finalmente
decretarem o seu óbito.
O que é chocante é que um governo que se tornou possível por
um largo entendimento entre as várias componentes da esquerda portuguesa venha
recuperar ao fim de três décadas um conjunto de conceitos e um modelo que foram
responsáveis por uma acção ideológica e de múltiplas medidas políticas que
conduziram ao desastre aquele que foi durante largo tempo considerado
internacionalmente como o melhor serviço público de saúde e dotado dos melhores
indicadores.
Vir falar da livre escolha dos
doentes em abstracto e da criação do famigerado “mercado interno” é desde logo
uma garantia de que o SNS continuará a ser fustigado por políticas adversas e
que as perspectivas que começam a vislumbrar-se só podem causar a mais viva
inquietação aqueles que têm dedicado a sua intervenção cívica na defesa
dinâmica deste insubstituível direito constitucional.
É que a defesa dinâmica do SNS
não é defender tudo o que está e como está, mas introduzir mecanismos concretos
e articulados para redinamizar a sua função social e humanista, encontrando
respostas sempre novas aos contínuos problemas novos que o vão desafiando na
sua missão civilizacional e de contributo para a coesão social.
Não será difícil adivinhar que
o “fantasma” da Thatcher que alguns governos anteriores, a começar pelo último,
tanto idolatraram conduzirá a muitos resultados possíveis, mas há um que
seguramente não visa assegurar: a defesa e a revitalização do SNS como
instrumento do direito geral, universal e tendencialmente gratuito à Saúde.
Resta saber como reagirão os
partidos e as organizações sociais à esquerda do actual governo, sendo certo
que com a existência já deste cartão de visita numa das áreas sociais mais
emblemáticas da nossa vida quotidiana não lhes será fácil coabitarem com a
negação das suas propostas na área da Saúde.
O “fantasma” neoliberal
continua a assombrar os corredores da Avª João Crisóstomo ?
Mário Jorge Neves, Médico e dirigente sindical
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