Sakellarides
Constantino Sakellarides, quer
ajudar o ministro da Saúde a «manter o foco»
«Tempo Medicina» («TM») – Porque foi chamado para consultor do ministro para as questões
estratégicas?
Constantino Sakellarides (CS) - Gostaria de fazer um apontamento prévio
para dizer que habitualmente há um Programa do Governo (PG) feito muito à
pressa e por pessoas que depois não são chamadas a executá-lo, o que é, à
partida, uma das causas de disfunção da nossa governação da Saúde.
Mas, desta vez, o Prof. Adalberto Campos Fernandes foi o coordenador do
Programa do Partido Socialista para a Saúde e, desta forma, este é o seu
programa.
Depois, salientar que o Senhor ministro da Saúde é uma pessoa muito focada na
implementação e nos tempos e, portanto, é um fazedor por natureza.
Estamos, por isso, numa preocupação invulgar de implementar aquilo que está
escrito e prometido.
Não vamos olhar para as medidas de forma isolada, mas sim explicitar e realizar
um modelo de governação que articule as medidas nos seus diferentes níveis.
E se esta é uma preocupação do ministro, é natural que peça apoio técnico às
pessoas mobilizadas para o efeito.
«TM»
- Quais as áreas a que será chamado, ou já foi, a dar conselhos. O que lhe pede
o ministro da Saúde?
CS - Primeiro, que tenha uma atenção muito particular aos chamados programas
horizontais, como a literacia e autocuidados e a gestão da doença crónica.
Sabemos hoje que nas sociedades modernas o sistema só funciona se as pessoas
estiverem informadas e capacitadas para tomar decisões inteligentes em relação
à saúde e à forma como utilizam os serviços.
A minha função é assegurar, por exemplo, que o programa de literacia para a
saúde, que está a ser desenhado e que vai ser apresentado em breve, é feito com
a cumplicidade e articulação dos outros elementos do PG e não é uma aventura
desgarrada, o que acontece habitualmente.
Se este não estiver intimamente relacionado com os centros de saúde ou
hospitais, com o espaço de atendimento dos utentes ou com as pessoas que não
têm acesso à tecnologia mais avançada na net, não vale a pena tê-lo.
Assegurar que é um programa real é uma operação complexa, mas a sua boa
execução e acompanhamento depende da qualidade estratégia, muita conversa e
inter-relação, foco e acompanhamento dos resultados.
E isso tem que ser feito com competência, com alguém que conheça o sistema e as
pessoas para garantir que essas ligações são feitas.
«TM»
- E em relação à gestão da doença crónica?
CS – Esse é outro programa com muita visibilidade no PG, pois os sistemas de
saúde tradicionalmente foram muito pensados em função da doença aguda. E a
verdade é que este não pode ser um programa vertical e paralelo ao resto.
Pretendemos criar transversalidade e assegurar que os programas de gestão de
doença crónica ou de literacia ajudam, dão rodas e impulsionam o
desenvolvimento de outras linhas. É isso que se chama consultoria
estratégica.
Outro aspeto, mais simples e instrumental, é assegurar que em relação aos
programas verticais e aos seus instrumentos, como o Portal da Saúde e os
sistemas de informação, haja um mecanismo interno que coordene a informação
antes de ela chegar ao topo, ao ministro e aos secretários de Estado, pois uma
decisão ótima precisa de uma informação cruzada.
«TM»
- A que tipo de mecanismo se refere?
CS – Temos de criar um caminho simples que assegure que os passos dados nesses
programas verticais são conhecidos pelos decisores verticais na tutela, de
forma a saberem exatamente o que está a acontecer e poderem fazer uma
interpretação informada dos dados.
Este é um mecanismo que se chama de suporte de análise estratégica. É uma
função complexa, com muito ruído, que exige paciência, conhecer as pessoas,
ouvi-las, de forma a ajudar o ministro a manter o foco.
«As pessoas querem circular com
facilidade no SNS»
«TM»
- Que outros instrumentos permitem não perder o foco?
CS - Esse foco é dado em grande parte pelo modelo de governação da saúde que
tem que ser atualizado em função dos conhecimentos e instrumentos de governação
atuais.
Queremos, por exemplo, olhar pela primeira vez para o processo de vida das
pessoas, em vez de olharmos de uma forma segmentada para os vários grupos
etários.
Se concentrarmos a nossa atenção no idoso, perdemos o processo de
envelhecimento e, se interessa apoiar a pessoa quando está mais frágil,
interessa também perceber como é que pode lá chegar melhor.
O segundo aspeto é perceber que as pessoas querem circular com facilidade nos
vários tipos de cuidados do SNS e que os resultados no fim sejam bons.
E, por vezes, os utentes passam calvários, especialmente em situações de doença
prolongada, em que esse trajeto é feito com grande incomodidade. A isto
chama-se cadeia de valor dos cuidados de saúde.
E se há 20 anos não tínhamos instrumentos, hoje gerir o trajeto dos pacientes é
uma questão de organização virtual.
Já existem alguns instrumentos, como a Linha Saúde 24, as vias verdes, ou o
processo de saúde eletrónico que quando estiver implementado vai permitir que
acedam à minha informação clínica em qualquer ponto do País.
O terceiro aspeto do modelo de governação da saúde é olhar para as tecnologias
de diagnóstico e tratamento vicejante.
Se essa tecnologia traz vantagens, também traz alguns problemas, como o seu
custo muitas vezes indevido.
Se podemos antecipar com três anos de antecedência a sua cadeia de valor e não
o fazemos, o conflito em relação ao seu financiamento e utilização é muito
maior.
Hoje não há razão nenhuma para não termos, em relação às tecnologias da saúde,
a sua cadeia explícita, ou seja, saber como é que se formou o preço, como é que
se financia, se a formação do preço e financiamento é justo, como é utilizada e
qual o impacto que tem na saúde das pessoas e como pode ser reavaliada.
E este é um aspeto que estamos a caminho de desenvolver.
Por fim, o modelo deverá ter em conta o tipo de pessoas que somos (não somos
dinamarqueses) que condicionam o tipo de relações que podemos ter, o que
constrange ou favorece o trabalho das profissões da saúde.
Por exemplo, com a reforma dos CSP conseguimos uma organização avançada no
sistema público porque é um sistema centralizado, as pessoas têm acesso e
porque os profissionais se sentem bem.
Mas ainda é uma ilha e não funcionará se a nossa literacia não aumentar.
«TM»
- E como será feita toda a gestão deste processo de mudança de modelo de
governação?
CS – A forma de lidar com o mundo de hoje é conhecer bem o que existe.
Temos por exemplo uma plétora de informações e aplicações para a educação para
a Saúde.
Estão na net, nos telemóveis e nos livros.
Mas não podemos acrescentar mais sem fazer um repositório do que existe,
trabalhar o que existe e depois, em termos estratégicos, inteligentemente e sem
gastar dinheiro, acrescentar três ou quatro elementos que possam ajudar tudo a
funcionar melhor.
Será esta a lógica do programa de literacia e de gestão crónica da
doença.
«TM»
- Quer dar alguns exemplos concretos?
CS – O foco será, por exemplo, encontrar forma de atingir as pessoas que não
têm acesso à internet.
É possível passar mensagens importantes às pessoas idosas que estão sentadas
numa sala de espera do centro de saúde, tais como as formas de prevenir as
quedas, que são um problema muito comum nos idosos.
Em suma, estamos a tentar construir um modelo de governação da Saúde que permite
uma implementação mais eficaz do PG, através de uma visão do sistema de Saúde
que é atual e integradora, e num processo de mudança que é sensato, inovador
mas que não inventa aquilo que não é preciso inventar.
«TM»
- Mas é também um modelo que vai ser muito trabalhoso e que vai precisar de
pessoas com muito empenho, vontade de fazer e autonomia nas lideranças.
CS - Evidente.
É um modelo trabalhoso e sensível porque, no fundo, esta função “mete o nariz”
em tudo e tem que ser executada com muita sensatez. Para além disso não deve
ter grande protagonismo, mas ser sim de apoio, de análise e suporte
estratégico. Exemplo disso é o PG que pela primeira vez quer «uma nova ambição»
para a Saúde Pública.
No entanto, por trás, tem de existir uma figura muito importante como são os
planos locais de saúde.
«Há Planos Locais de Saúde que são um
horror»
«TM»
- Vão olhar para os programas do Ministério da Saúde de uma forma diferente?
CS - Sim, claro.
Se formos à internet vemos que há Planos Locais de Saúde (PLS) razoáveis e
outros que são um horror.
Mas não há nada ou ninguém que diga que os planos não se fazem assim. Um
programa e um plano não podem ser feitos “à vontade do freguês”.
Têm que obedecer a uma regra de boa prática e escolher os aspetos que são fundamentais
numa determinada zona. Depois, têm que ser conhecido pelas pessoas, porque de
outra forma são só um papel.
Temos que sair do papel para uma coisa que exista, que faça diferença na vida
das pessoas e seja avaliável como tal.
«TM»
- E como vão fazê-lo?
CS - Há formas de assegurar que os planos e os programas obedecem a normas
certificadas.
Se a Direção-Geral da Saúde emite um conjunto de normas sobre a forma de
utilizar medicamentos, porque é que não há normas para se aplicarem aos
programas para assegurar que têm impacto na realidade?
Claro que é uma tarefa difícil mas há um caminho a percorrer.
E o percorrer bem significa que se eu tiver um bom PLS da Região de Lisboa e
articulado com a Câmara Municipal, a literacia e a gestão das doenças crónicas
são aspetos que vão funcionar melhor.
Esse caminho só se pode fazer com um modelo explícito e bem oleado e cuidado de
governação da Saúde.
Por seu turno, o mecanismo de contratualização não pode ser igualmente de um
papel que eu envio, é assinado e reenviado sem qualquer expetativa real do que
realmente se passa.
Em suma, em os PLS têm de ser elaborados com base em normas para que seja
introduzido rigor no processo de contratualização.
O modelo de governação não é uma coisa abstrata.
É evidente que temos a resistência da nossa cultura, hábitos, ignorâncias,
dificuldades, ruídos, mas não podemos pensar no vazio.
A intenção é que o PG não seja um esquema, mas tenha alguma coisa de
real.
«TM»
- O Governo vai manter os programas prioritários para a Saúde com os mesmos
objetivos ou vai mudar a sua estratégia em algumas áreas? Sabemos que falhou,
por exemplo, a transição dos cuidados de saúde mental para a comunidade.
CS - Essa é uma pergunta que terá de fazer ao Senhor ministro da Saúde.
«TM»
Mas, terá uma opinião…
CS – Claro.
Há muitas coisas boas nos programas prioritários, no entanto, não são feitos de
forma a serem facilmente avaliados o que é uma contradição.
A lógica inerente é que sejam avaliáveis e de várias formas para podermos
aprender com eles.
Mas como não o são podemos ter várias opiniões, sem poder documentar qual a
mais válida.
O primeiro pressuposto de um programa é que vai ter impacto em alguma coisa bem
definida para saber como funcionou e não basta publicar estatísticas ou números
sem juízo.
O que é que correu mal na desinstitucionalização dos doentes mentais para a
comunidade?
Precisamos de saber o que foi realmente e ter a garantia que nos próximos dois
anos vamos ter melhores resultados.
Soubemos, por exemplo, que a depressão aumentou durante a crise, mas soubemos
disso muito tarde, até porque era previsível que acontecesse.
O que foi feito para o prever e evitar são perguntas simples com respostas
simples.
Existirem normas de boas práticas no planeamento significa que os documentos
deixam de passar de folhas de intenções e que não são avaliáveis nem respondem
às perguntas essenciais.
Sem colocar em causa tudo o que de bom é feito, os planos e os programas têm
que passar a ser verdadeiros planos e programas e penso que o Senhor ministro
também pensa assim.
Liberdade de escolha foi abandonada «por
simplicidade»
«TM»
- Outro imperativo do Programa do Governo para a Saúde é trazer verdadeiramente
o cidadão para o centro do sistema, dando-lhe liberdade de escolha.
É um objetivo muito ambicioso pois terão de mudar as regras da contratualização
e as mentalidades. Como será posto em prática este conceito?
CS - O Senhor ministro não disse que é fácil e por isso devemos começar a
experimentar com projetos-piloto, mas a liberdade de escolha é algo muito
importante porque é um princípio inscrito na lógica do SNS e que foi abandonado
por simplicidade.
E se o sistema se deforma pela comodidade da gestão e não das pessoas que o
frequentam isso tem que ser tratado.
Isto quer dizer que as instituições devem ir atrás do fluxo das pessoas e não o
contrário.
Se eu trabalho em Lisboa o dia inteiro prefiro ir ao centro de saúde mais próximo
do meu local de trabalho.
É óbvio que se nos concentramos nos fluxos naturais das pessoas, nessa altura
temos que ter mecanismos de compensação. Ou seja o fluxo deve acompanhar os
recursos.
Já outro mecanismo mais complexo é o acesso à informação, assegurando que está
disponível em qualquer local.
Há um conjunto de instrumento que têm de ser apurados para permitir isso.
«TM»
- Como pensa ser possível resolver o axioma que existe na Saúde Pública que diz
que o único casamento que não se dissolve é o casamento entre a pobreza e a
doença, quando sabemos que o País não será mais rico?
CS - Quando alguém desenha um programa de ajustamento externa e internamente, e
aqui a Europa tem enormes responsabilidades, fica obrigado a prever as
consequências na saúde das pessoas.
Vamos continuar a ter dificuldades e vamos ter que prever qual será o estado de
saúde dos portugueses em função disso. Faz parte desse modelo de governação
explícito.
«TM»
- O Prof. Constantino Sakellarides afirmou, durante uma reunião da Fundação
para a Saúde SNS, que «é difícil encontrar uma empresa de grandes dimensões que
dê menos importância ao seu capital humano que o SNS» e que «há uma indiferença
perante o facto de os melhores quadros saírem para o estrangeiro ou para o
setor privado, manifestando desencanto em relação às oportunidades e condições
de trabalho».
O que vai poder este Governo fazer neste
aspeto?
CS - Neste momento as minhas funções não me permitem responder pois é uma
matéria que não é da minha responsabilidade. Se o fizesse usurpava o papel do
Senhor ministro.
«TM»
- Mas para um bom e forte modelo de governação tem que haver uma valorização
dos profissionais de saúde, certo?
CS - Sei apenas que o Senhor ministro comunga desta preocupação.
«TM»
- O Ministério da Saúde já disse que está a «ensaiar modelos que incentivem a
fixação dos jovens médicos no interior, já este ano», tendo explicado que
poderá ser aplicado o incentivo da progressão da carreira mais rápida nesses
casos.
Não teme que os outros profissionais, sindicatos e mesmo a OM contestem a
medida?
CS - É um aspeto da política de saúde que eu não acompanho, mas posso responder
ao argumento, sem me meter na política dos recursos humanos, que foi o mesmo
utilizado na reforma dos CSP, quando as pessoas escolheram evoluir do modelo de
USF A para o modelo B. É uma opção.
Sabemos que certas profissões são mais bem remuneradas, que trabalhar no
sector privado representa algumas diferenças, que uma pessoa da Saúde Pública
ou um cirurgião ganham de forma diferente e eu não me posso queixar por não ter
sido cirurgião.
«TM»
- Foi difundida a ideia da intenção do Ministério da Saúde em assinar com os
principais parceiros um compromisso para a sustentabilidade e desenvolvimento
do SNS para três anos.
De que compromisso falamos, de um pacto para a Saúde?
CS – Essa é uma questão puramente política.
«TM»
- Mas que tem em vista uma estratégia de governação…
CS – O que posso dizer é que a ideia é que só podemos melhorar se houver
convergência.
Há interesses divergentes entre os atores sociais, mas procuramos os que são
convergentes para conseguir melhorar. É isso que o ministro procura.
«TM»
- Como espera encontrar o setor da Saúde daqui a quatro anos?
CS - Espero que esteja diferente e melhor.
Como já disse, o ministro é muito focado, tem metas a atingir em várias fases
e, portanto, se esse foco for suportado por um bom modelo de governação que
potencie e faça articular em vez de competir e chocar os vários programas da
saúde, então vamos ter algum sucesso. Se não acreditássemos não estávamos
aqui.
«Se a reforma dos CSP não for acelerada
é evidente que não há solução para nada»
«TM» - Fala-se muito na transferência dos cuidados hospitalares para os
cuidados de saúde primários. Como fazê-lo, sabendo que no interior do País se
fecharam serviços, se reduziram horários e os médicos continuam a não querer ir
mesmo com incentivos?
CS – Se a reforma dos CSP não for acelerada para compensar o que foi atrasada,
é evidente que não há solução para nada.
O fundamental é que o médico de família agarre os seus doentes e os referencie
quando precise.
Enquanto esse aspeto não atingir um certo nível em todo o território o sistema
é disfuncional.
O que era para acontecer em oito anos, está em pouco mais de metade do País.
Depois, é evidente que em certos meios faz sentido que sejam determinadas
especialidades a deslocarem-se ao centro de saúde em vez do utente ao hospital.
Não faz sentido ter um cardiologista no centro de saúde a tempo inteiro, mas
pode dar consultas.
Há muitas coisas que podem ser melhoradas, mas se não tivermos um bom sistema
de USF difundido por todo o País não há uma boa resposta boa para o resto.
Ministro «tem a intenção firme de
avançar com o Conselho Nacional de Saúde»
«TM» - Como olha para a sugestão já feita de criar O Conselho Nacional de
Saúde, que deve englobar grupos de todos os sectores da sociedade, uma «figura»
que está, aliás, consagrada na Lei de Bases da Saúde.
CS - Não posso entrar em detalhes, mas sei que o Senhor ministro tem a intenção
firme de avançar com o Conselho Nacional de Saúde.
O Portal do SNS pode ter um papel muito importante na transparência, mas o Conselho
Nacional, um órgão de difícil gestão, é uma experiência que tem de se aprender
a fazer.
Tempo de Medicina 31.02.16
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