sábado, janeiro 23, 2016

Fernando Araújo, entrevista

Dar um médico de família a cada português é uma promessa que os cidadãos já se habituaram a ouvir da boca de sucessivos ministros da Saúde e a constatar que, afinal, não pode ser cumprida. Numa altura em que ainda há mais de um milhão de pessoas sem médico de família, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, acredita que é possível, em quatro anos, dar uma equipa de família (não só médico, mas também enfermeiro e secretário clínico) aos portugueses. A ideia central é tirar pessoas e despesa dos hospitais para investir mais nos centros de saúde, onde avançam nos próximos meses experiência-piloto com oftalmologistas e dentistas. Tudo com quase o mesmo orçamento porque o buraco financeiro encontrado no SNS é grande. Mas os cuidadores formais de idosos dependentes em casa poderão vir a receber incentivos financeiros.

- Todos os ministros têm prometido dar um médico de família a cada português. Este Governo vai conseguir cumprir esta promessa?
Não gostaria de me comprometer com uma data, mas dentro da legislatura é nosso objectivo dar uma equipa de família à generalidade dos portugueses.

- Mas isso não é querer ir muito além quando há tanta gente ainda sem médico de família?
Temos um milhão e quarenta mil utentes sem médico de família. Há várias formas diferentes para tentar ultrapassar [este problema] e uma está relacionada com a colocação rápida de médicos de família depois do exame final. Neste momento os médicos que terminam a especialidade têm de se candidatar a um ou mais concursos. Isso significa um enorme atraso no processo. Por exemplo, os que fizeram exame no ano passado em Outubro ainda não estão colocados nos centros de saúde.

- O que se pretende fazer, então?
Queremos fazer um concurso único a nível nacional em que conte apenas a nota final do exame. Os médicos que realizem o exame com aproveitamento serão colocados logo no mês a seguir. 

- Os médicos do Norte podem vir a ser colocados no Sul?
Nos cuidados primários isso começará a ser mais frequente, já que no Norte temos 98% da população coberta. As regiões mais problemáticas são Lisboa e o Algarve, com mais de 20% de pessoas sem médico de família. Vamos é desenvolver mecanismos de mobilidade.

- Mas também temos o problema dos médicos aposentados e dos emigrados.
Neste ano o que está previsto é que possam ir a exame final de especialidade 379 médicos de família, mas prevê-se que, pela idade, se reformem 230. Este ano e o próximo são os mais críticos, depois deve estabilizar, é a altura de inversão do ciclo. Até lá é muito importante sensibilizarmos estes médicos aposentados. Vamos fazer uma proposta que seja suficientemente atractiva. Estamos actualmente a dialogar com as Finanças um novo modelo, que esperamos possa ser incluído no Orcamento de Estado de 2016.

- Mas isso significa pagar mais, metade, a totalidade?
Ainda estamos a discutir com as Finanças. Se contratarmos metade destes 230 médicos aposentados, poderíamos dar cobertura a cerca de 200 mil utentes. Já era um impulso enorme.

- Afinal, os médicos ganham pouco, muito ou mais ou menos?
Há aqui uma parte que também é mito. Os médicos que trabalham na privada e ganham muito são casos pontuais. Na maior parte dos casos, mesmo na privada, os ordenados são mais baixos, o preço por hora hoje está muito mais barato. No final, em média, os profissionais, para a responsabilidade que possuem e o trabalho que desempenham, deviam ganhar mais.

- Ter mais médicos de família não significa que as pessoas deixem de ir às urgências. Aliás, os dados mostram que as pessoas estão a usar menos os centros de saúde. Como se inverte esta situação?
É preciso irmos para além dos médicos e dos enfermeiros. O modelo de USF [Unidade de Saúde Familiar] é fundamental. Quando um médico está fora, o utente sabe que terá lá outro profissional para o atender. Também queremos dar novas valências. Já há nutricionistas, psicólogos, higienistas orais, fisioterapeutas, nos centros de saúde, mas não em quantidade suficiente. Vamos tentar aumentar o número de profissionais. A ideia é abrir a outras áreas diferentes como a saúde oral, com o médico dentista. O cheque-dentista foi excelente, mas não é suficiente.

- Isso não vai implicar uma despesa enorme?
A ideia é começar por um projecto-piloto. A estratégia passa por seleccionarmos um conjunto de centros de saúde no Alentejo e Lisboa e fazermos com a OMD [Ordem dos Médicos Dentistas] a selecção dos médicos e locais, os serviços a prestar e os utentes abrangidos. Estamos muito voltados para os utentes mais vulneráveis, com insuficiência económica e com patologias crónicas como a oncológica e cardiovascular, a diabetes, por exemplo. Queremos locais com higienistas orais porque, mais do que fazer tratamentos, pretendemos apostar na prevenção. A ideia é mais do que tratar as cáries. Esperamos que neste primeiro semestre possa arrancar.

- É para ser alargado a todo o país?
Isso já depende das condições económicas. Estamos a falar das populações mais vulneráveis e em que as infecções da cavidade oral acabam por ter uma repercussão na sua doença crónica. Também temos em cima da mesa um projecto na área da saúde visual.

- Já está estruturado como na saúde oral?
Até pode ser mais rápido de implementar porque não tem tanto impacto do ponto de vista económico. Vamos explorar duas questões. Aproveitar o rastreio da retinopatia diabética que já realizamos em várias regiões e utilizar o mesmo processo para efectuar o rastreio da doença macular e do glaucoma. A outra área que nos motivou inicialmente foi a das crianças, com a ambliopia. A ideia é começar aos dois anos de idade.

- Prometeram também baixar as taxas moderadoras. O que vai mudar e quando?
As taxas moderadoras vão reduzir-se de uma forma expressiva. O mais fácil era reduzir uma percentagem igual em todas as linhas mas isso acabaria por desvirtuar a questão da moderação do consumo inapropriado.

- Mas se as pessoas vão pouco aos centros de saúde faz sentido moderar esse consumo?
Temos de reduzir também de acordo com as condições económicas de que dispomos. Estamos apostados em anular todos os casos que são referenciados, por doença aguda, pela Linha Saúde 24 e pelos centros de saúde, onde nos cuidados hospitalares os doentes pagavam os meios complementares de diagnóstico que podiam ir até 50 euros. A ideia é que se o doente for orientado, por uma causa urgente, a partir da Linha Saúde 24, não paga a taxa moderadora. Fica mesmo a custo zero.

- Mas em geral, então, as pessoas vão continuar a pagar taxa moderadora nos centros de saúde e hospitais?
As taxas vão baixar. Na primeira consulta hospitalar está previsto que o doente deixe de pagar. Se o médico de família enviou o doente para o hospital, então este não paga. Nas seguintes já paga. A taxa moderadora será mais económica no médico de família, 4,5 euros [actualmente é 5 euros] do que no hospital, 7 euros [actualmente a taxa para consulta de especialidade é de 7,75 euros] para ajudar nesta orientação. No hospital de dia não se paga taxa no acto mas paga-se nos exames de diagnóstico (até 25 euros) e a ideia é isentar completamente esta linha. Também os dadores de sangue e os bombeiros ficarão isentos. Prevemos que tudo entre em vigor em Abril.

- Esta diminuição é muito pouco expressiva, sobretudo nos centros de saúde, onde baixa apenas 50 cêntimos.
No global, vai representar este ano uma redução de entre 35 a 40 milhões de euros, cerca de 20 a 25% do valor total das taxas moderadoras. Nas urgências polivalentes, baixa-se de 20,6 euros para 18 euros e, nas médico-cirúgicas, de 18 para 16 euros. Nas urgências básicas, a diminuição é de 15,45 para 14 euros.

- E quanto ao transporte de doentes, em que o anterior ministro cortou um terço das verbas, o que querem rever?
O objectivo é ter mudanças até Abril, mas ainda estão a ser estudadas algumas questões técnicas. Queremos fazer um alargamento dos doentes que têm isenção do transporte, através de um diploma próprio, porque passa por alterar mesmo o regulamento.

- Os hospitais vão ter o mesmo orçamento este ano, como disse Luís Marques Mendes?
O orçamento será igual mas com um reforço para compensar as necessidades decorrentes das alterações dos vencimentos e da questão das 35 horas. Mas nós pretendemos é passar parte das atribuições dos hospitais para fora e trabalhar para um aumento da eficiência. O que queremos demonstrar é que é possível, apesar de tudo, melhorar os cuidados de saúde com rigor e exigência económica. A ideia é tentar governar de forma diferente.

- Mas isso de cortar nas gorduras foi o que ouvimos ao longo dos últimos quatro anos.
Vamos provar que é possível fazer diferente. Comprimiu-se muito na área do medicamento – e bem – e vamos manter isso e alargar mais, se possível. Não queremos diminuir o esforço da indústria farmacêutica, que é relevante. De resto, as alterações que foram feitas [pelo anterior Governo] foram na redução dos ordenados, não são alterações estruturais. A questão das 35 horas vai levar a um aumento de despesa nos salários e por isso vamos mesmo ter de fazer as reformas estruturais há muito exigidas. Os hospitais irão ter um reforço económico por causa da passagem das 40 para as 35 horas e da alteração dos impostos. O problema maior está nos hospitais que têm turnos contínuos e onde isto implica, por exemplo, ter mais um em cada sete [enfermeiros e auxiliares].

- Quantos enfermeiros vai ser necessário contratar?
Estão a ser feitos estudos. Nalguns casos, poderá haver aumento das horas extra. 

- Qual é o plano para as urgências ?
Achamos que não deve haver um modelo único. Sou muito favorável a modelos mistos, com profissionais dedicados, com melhor remuneração pela penosidade, complementados com outros médicos. O professor António Ferreira tem um modelo muito interessante no [hospital] São João, em que o modelo é quase todo dedicado [médicos que trabalham só na urgência].

- Mas a Ordem dos Médicos diz que eles ficam em burnont.
Conheço muitos colegas que gostam e que querem continuar a fazer só urgências. Alguns dos quatro ou cinco novos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) que pretendemos abrir este ano podem ser em serviços de urgência, com prémios de desempenho. A ideia é que os médicos estejam em dedicação plena nos CRI, que serão metástases benignas no SNS, como diz o ministro. 

- Este Inverno, já há serviços de urgência em Lisboa em que os doentes com pulseira amarela têm de esperar 12 horas.
Existe um plano de Inverno que já foi posto à prova no final de Dezembro e que reconhecemos que nem sempre respondeu da melhor forma. O problema é que em Lisboa foram fechadas muitas camas hospitalares, a redução terá sido superior à que devia, para optimizar as questões económicas. 

- Há muitas pessoas que dizem que foi um erro encerrar a maior parte dos Serviços de Atendimento Permanentes (SAP) nos centros de saúde. Concorda?
Onde os SAP fecharam, a resposta é melhor. Há duas ou três explicações para isto: no Norte há uma grande cobertura de médicos de família, uma rede de cuidados continuados que começa a ser interessante e uma grande resposta dos cuidados familiares; em Lisboa, há uma grande percentagem de utentes sem médico de família, cuidados continuados menos desenvolvidos e a primeira porta aberta é no hospital. Em Lisboa, também a questão do exercício privado (há mais na capital) acaba por levar que mais recursos saiam.

- Dizem que querem apostar nos cuidados continuados e apoiar os cuidadores informais. O que pretendem fazer em concreto?
Temos actualmente 7700 camas de cuidados continuados, ligeiramente mais de metade do que era suposto (14 mil). Este ano, calculamos abrir mais 700. Agora, muito mais do que abrir camas, queremos apostar nas equipas que vão ao domicílio, discutir a figura do cuidador informal com a Segurança Social, iniciar contactos para formar equipas conjuntas. Pretendemos ainda, nalguns casos, ajudar a formar os cuidadores, levar enfermeiros e funcionários da Segurança Social a casa das pessoas.

- A ideia é dar apoio e formação. E  incentivos de outro tipo?
Eventualmente apoio financeiro, mas também outro tipo de respostas, para haver mais abertura da família a ter as pessoas no seu lar e não se sentirem abandonados. Na ligação aos cuidados continuados, o processo ainda é muito moroso e burocrático e também teremos de intervir.

- Que tipo de reformas vão avançar nos próximos anos?
Queremos ver se reduzimos em 10% as urgências hospitalares, nesta legislatura. São 600 mil episódios de urgência e pagamos por cada um, em média, cerca de 80 euros. Serão 48 milhões por ano que iremos usar para apostar nos cuidados de saúde primários.

- E a reforma hospitalar? Todos os ministros dizem que vão fazer uma reforma hospitalar, mas isso implica medidas polémicas.
Certamente haverá medidas que não agradarão a todos. Veja-se aquele despacho do Governo anterior que foi muito contestado [da reforma da rede hospitalar, que implicava o fecho de vários serviços e desencadeou grande polémica]. É um diploma que faz uma reforma estrutural, mas está no papel, nada aconteceu, penso que funcionou apenas para a troika. Temos que pegar nisso e discutir com cada hospital, o que poderá também levar à redução da despesa. Poderá implicar fecho de serviços e abertura noutros locais. Como prioridades, temos a oncologia e a rede cardiovascular.

- Mas vai ou não haver encerramento dasurgências e blocos de partos, como no tempo do professor Correia de Campos? Ele foi muito contestado por isso.
Tanto tinha razão que o que ele fechou não se voltou a abrir. As pessoas reconhecem que a mudança foi para melhor. São reformas que na altura podem ser polémicas mas depois acabam por ter reconhecidas.

- O que vão fazer para diminuir os tempos de espera?
No dia 1 de Fevereiro deve ser apresentado o novo portal do SNS, com dados clínicos (como tempos de espera) e dados económicos. O médico de família,  quando for marcar consulta, poderá ver com o doente se tem uma consulta de dermatologia daqui a um mês numa instituição hospitalar, ou daqui a três meses noutra, de forma a escolherem a que sirva melhor o interesse do utente e o financiamento acompanhará o processo.

- Querem, portanto, transpor para o SNS a ideia de que o doente é um cliente e a ideia da liberdade de escolha?´
Sim, temos de aproveitar a capacidade do SNS. A nossa diferença [em relação ao Governo anterior] é que queremos liberdade de escolha mas dentro do SNS, enquanto antes se pretendia privilegiar os sectores privado e social. A nossa estratégia poderá levar a que uma parte do dinheiro gasto actualmente com convencionados, e esta despesa andará no total por volta dos 800 milhões de euros, fique no SNS. Há áreas em que o SNS tem capacidade de aumentar em muito a sua resposta.

- Todas estas ideias implicam um aumento da despesa. Como está ó défice e a dívida do SNS?
Isso será anunciado na próxima semana.

- O professor Correia de Campos chegou a dizer que a dívida deverá ascender a 1,5 mil milhões de euros.
O que posso dizer é que os números que encontrámos no final de 2015 mostram não o “milagre” de que falava o anterior Governo, mas valores longe do que tinha sido previsto e orçamentado. O défice da saúde é muito superior ao que tem sido divulgado, disparou. A estabilidade económica tão propalada não corresponde à realidade.

- Por que razão é que decidiram travar o processo de entrega de hospitais às misericórdias?
As misericórdias têm uma história antiga com o SNS que queremos preservar. Nos casos dos hospitais de Santo Tirso e de São João da Madeira, o que não encontramos foi justificação da necessidade efectiva da transferência. A segunda questão é que o preço de cada acto contratualizado foi o mesmo, portanto, como é que resulta em menos 25% da despesa? Apenas devido à redução dos actos. Quando entramos em funções, verificamos que os acordos tinham sido homologados já com o Governo em gestão, sem nenhuma justificação. Consideramos, pois, que esta é uma decisão nula.

- E os outros três casos dos hospitais que já foram transferidos?
Decidimos, com a União das Misericórdias, que nestes três casos vamos activar a comissão de acompanhamento prevista, mas que ainda não tinha funcionado, e vamos avaliar de forma transparente o que foi realizado.

- O caso do Centro de Reabilitação de Gaia, que foi entregue à Misericórdia do  Porto, como vai ficar?
Vamos abrir um concurso público, que era o que estava previsto.


JP, 23.01.16

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