ACF, entrevista expresso 19.03.16
“Não
queremos um SNS para os pobres”
Conhecido como o “eterno ministeriável” na Saúde,
Adalberto Campos Fernandes chegou ao cargo. Promete melhorar o Serviço Nacional
de Saúde (SNS) para tratar todos os portugueses e não apenas quem não pode
pagar assistência privada. O médico é armativo no diagnóstico sobre o que faz
falta nos cuidados, mas cauteloso no prognóstico de tratamento: prometer a
sustentabilidade do SNS é “imprudente”.
Sucede a um dos melhores ministros do anterior
governo. Sente esse peso?
Não. As circunstâncias e o contexto político que o Dr
Paulo Macedo teve de enfrentar e viveu são totalmente diferentes dos que estou
a viver.
Era
o contexto melhor?
Não, era um contexto diferente. A existência à época de
um acorde de assistência internacional – que permitia que o governo pudesse
aplicar medidas de grande restrição financeira com elevada aceitabilidade
social – torna o contexto diferente daquele em que procuramos iniciar a saída
da crise.
O
anterior ministro era considerado de ‘boas contas’ , mas o défice foi superior
ao previsto. Era
exagerada a imagem de bom gestor?
Não vim para a política para comentar a imagem dos meus
colegas.
Mas
ficou admirado com o défice de €229 milhões acima do previsto?
Não fiquei admirado, fiquei preocupado. Reforcei a
minha convicção de que quando algum titular de um cargo político na Saúde
anuncia a sustentabilidade do SNS está a ser imprudente.
O
SNS é insustentável?
O SNS será insustentável ou não em função daquilo que
forem as condições da economia do país e as opções políticas do Governo. E as
escolhas são sempre mais difíceis quando o contexto orçamental é restritivo.
Outra coisa é saber se a insustentabilidade do SNS é justicada, porque há um
bem maior que é o serviço às pessoas.
Ter
um ‘buraco’ maior do que era esperado obrigou-o a mudar o quê?
Obriga-nos a uma exigência redobrada em relação ao ciclo
político anterior.
É
por isso que no orçamento da Saúde está prevista uma redução dos custos com
fornecimentos e serviços externos de €71 milhões?
Podemos sempre pôr mais recursos, mas se não cuidarmos da
organização e dos modelos de gestão e de eciência estamos a prestar um pior
serviço com mais gastos. O nosso enfoque vai para medidas de organização
inovadoras, como a desmaterialização de processos, a receita sem papel, a
centralização das compras ou o registo de saúde eletrónico para evitar
duplicação de exames...
Muitas
dessas medidas já existem.
Tudo o que existir e estiver bem feito deve ser
aprofundado. Não entendo que a herança política, ou a distinção da qualidade
das políticas, se faz pela armação de que o que estava feito até ao dia em que
entrei estava mal.
O
que é que estava bem feito?
Há duas áreas que devem ser prosseguidas. A luta contra
fraude e a maior exigência na negociação com os fornecedores, não apenas
naquilo que tem que ver com descontos nos preços mas também na forma como
compramos, a negociação e aquisição centralizadas.
O
orçamento da Saúde derrapa muito devido à inovação, sobretudo em medicamentos.
Vai poupar nesta área?
Uma das falhas do anterior governo foi ter levado longe
demais a compressão sobre a inovação terapêutica e ter de decidir em estado de
necessidade, perante a pressão dos doentes e da opinião pública. Temos de ter
uma estratégia para a inovação de qualidade, paga por ganhos de eciência e de
margem, e ser mais agressivos nos genéricos.
O
que significa ser mais agressivo?
Signica que a taxa de mercado tem de aumentar. Criar
mecanismos do lado do cidadão para exigir na farmácia o medicamento mais
barato. Assinámos um compromisso com o sector para garantir estabilidade
jurídica e regulamentar e para alertar para a necessidade de que a
sustentabilidade do SNS não seja um problema só do Estado.
Muda
o pagamento às farmácias?
Estamos a trabalhar para criar mecanismos que reabilitem
o sector. Muitas farmácias estão em grandes diculdades. Temos de as olhar como
um sector estratégico e encontrar um modelo que, salvaguardando a estabilidade
orçamental, crie mecanismos para que não quem tão dependentes da margem e
tenham outros lucros relacionados com a prestação do serviço ou até com o
aviamento de receitas médicas.
E quando é que isso avança?
Até ao final de Abril.
É
um problema difícil : O estado e o utente querem pagar menos e a farmácia quer receber
mais.
O que a farmácia quer é uma estabilidade mínima que
permita manter a subsistência da atividade. Estamos em processo negocial, mas
um dos mecanismos pode ser uma parte do pagamento pelos serviços e menor
dependência da margem.
E quem é que paga?
O modelo pode ser repartido entre o consumidor e o
Estado.
Em
dezembro os hospitais do SNS deviam às farmacêuticas €695 milhões...
As dívidas a fornecedores são um problema histórico que
resulta do subnanciamento endémico do SNS. Nunca os governos tiveram
capacidade de fazer uma dotação orçamental adequada. Como a despesa em Saúde
tem uma natureza moral mais aceitável, torna-se politicamente mais fácil um orçamento
reticativo. Estamos a ensaiar como deslocar o epicentro da doença para a
Saúde.
Este
ano quer menos 225 mil urgências. Porquê este número?
Muitos doentes recorrem à Urgência por falta de respostas
e poderiam ser bem atendidos pelo médico de família. Com o reforço da aposta
nos cuidados primários, mais médicos de família, a vinda de aposentados e o
reforço da Linha Saúde 24, conseguiremos reter nos cuidados primários uma
população que hoje não tem alternativa.
Como
é que vai dar médico a todos?
Este ano sairão 369 jovens especialistas e esperamos que
se reformem cerca de 180 médicos, ou seja, pela primeira vez temos um saldo
positivo. Juntamente com os reformados que aceitem regressar ao SNS,
acreditamos poder iniciar o caminho de reversão.
Como
é que se explica que não haja médicos que queiram ir para Sintra?
É incompreensível, de facto. No Interior entendemos que o
Estado tem de ser mais criativo nos incentivos e que podem ser de carreira,
nomeadamente créditos que permitam chegar ao grau seguinte mais depressa. É uma
matéria que tem de ser discutida com os sindicatos e que gostaríamos de fazer.
Foi
criada uma lista de centros de referência. Não são incompatíveis com a
descentralização?
Não há soluções ótimas. Qualquer solução que vise a diferenciação e que
introduza, como desejamos, competição no SNS pela qualidade pode criar
desiquilibrios. Ninguém gostaria de ser operado a um tumor maligno raro por uma
equipa que num ano fez um caso
Nessa
lista está a Cruz Vermelha Portuguesa , um privado ...
Um dos pré-requisitos que impus foi que nem o ministro
nem o secretário de Estado tivessem interferência sobre o juízo técnico. Isso
seria o princípio do m deste modelo. A lista denida não é matéria política, é
matéria técnica e cientíca e todos os centros e cidadãos têm direito ao
escrutínio público. Também está a CUF e a Luz. Ninguém duvida de que este
ministério e este Governo têm como primado essencial e prioritário a defesa do
SNS e perceber que a sua qualicação passa por avaliação externa, competição e
transparência. Nenhum governo ousou fazer o que zemos com o portal do SNS, em
que estamos totalmente expostos àquilo que é o desempenho clínico, económico e
financeiro.
Mas
não vai levar ao desinvestimento nos outros hospitais?
Estamos a falar de situações que têm uma baixa frequência
e algumas são mesmo raras. É nossa obrigação informar os cidadãos que um
centro, pelo seu desempenho, qualicações, experiência e características, tem
condições para ser uma referência. O que não signica que outros deixem de o
fazer. Temos de partilhar recursos, ciência e competência. Os meios são
exíguos, os recursos são escassos.
A
liberdade de escolha de hospitais avança em abril?
Chamar-lhe-ia livre acesso e circulação dentro do SNS.
Vamos dar a possibilidade de os médicos de família terem o leque de hospitais
da região com as melhores condições para oferecerem a consulta. Em regiões de
fronteira, trabalharemos para o utente poder ir a um hospital de outra
Administração Regional de Saúde. Os portugueses pagam o SNS através do seu
esforço fiscal e têm direito a ter as melhores respostas. Somos pobres , temos
escassez de meios e temos de partilhar os recursos.
Os
Portugueses já suportam 32% dos custos directos . Vai reduzir este número?
Sim. A começar pela redução das taxas moderadoras. Será
dinheiro a menos que as famílias terão de pagar directamente do seu bolso. Uma
lista de espera inapropriada faz duas coisas igualmente graves: os pobres com a
doença não se tratam e os que são remediados procuram recorrer a uma prestação
privada. Isto é socialmente inaceitável e há claramente uma diferença
ideológica entre governos. É bom para a democracia, mas um ministro da Saúde
não é um contabilista da Saúde, é alguém que dene políticas e aplica-as.
Não
concorda que quem pode deve pagar a utilização do SNS?
Geraria a maior das iniquidades. Portugal tem um modelo
de pré-pagamento fiscal. Grande parte dos portugueses não paga IRS, portanto
há uma parte que é solidária na contribuição antecipatória. A única coisa que
entendemos adequado é que no momento da utilização haja uma taxa igual para
todos, que não seja uma barreira. Quando um doente entra num hospital,
independentemente de ser muito rico ou muito pobre, é um doente.
Em
2015 os privados fizeram um milhão de consultas e de urgências. Melhorando o
acesso ao SNS será possível evitar a fuga de quem pode pagar?
Isso ilustra a opção do anterior governo: alguma
consolidação orçamental, restrição nanceira, controlo da despesa e, com isso,
a saída de médicos muito qualicados para o sector privado. E os médicos levam
os doentes. Não foi por acaso que no ano passado o sector privado teve o maior
crescimento em financiamento, seguros e prestação, com uma explosão do número
de unidades abertas e de investimento. Não temos nada contra o desenvolvimento
do sector privado, o que temos contra é que exista uma relação entre público e
privado que é predadora do SNS. Vivemos em diculdades para conseguir reter já
não só os médicos diferenciados mas também alguns mais jovens que, frustrados
com as expectativas, a indiferenciação tecnológica e a degradação das condições
de trabalho; optam pelo privado. Tem de ser reposto o equilíbrio. Queremos
fazer a viagem ao contrário.
O
privado rege-se pela oferta e pela procura. Se fornece é porque as pessoas
procuram.
Não queremos um SNS para os pobres. Quando olhamos para o
mapeamento da oferta privada, não vemos grandes investimentos em
Trás-os-Montes, no Alentejo... Não quero um SNS pago pelos portugueses, com os
seus impostos, que obedeça a regras do mercado, porque é imperfeito . O SNS tem
uma dimensão nacional de equidade e cidadania e os privados uma dimensão que
visa o lucro e mais valias.
Vai
avaliar as *arcerias Público-Privadas?
Está em curso, porque a primeira parceria público-privada,
Cascais, termina no final de 2018. Não haverá negociação direta. Estão a ser
feitos os trabalhos para demonstrar se o interesse público foi bem defendido.
Se tiver sido poderá ser equacionado um novo concurso público internacional,
senão caberá ao Estado equacionar a possibilidade de atuar.
Quem
vai fazer essa avaliação independente?
A Entidade Reguladora da Saúde.
O
que é a rede de cuidadores informais anunciada para 2017?
Estamos a envelhecer mais depressa do que a média dos
países da Europa e a ter problemas como o abandono de idosos nos hospitais, a
falta de suporte familiar, sobretudo nos centros urbanos, e a incapacidade de
as famílias suportarem a dependência. É importante a reposição de rendimentos,
para que os idosos comprem medicamentos e cuidem da alimentação, e os centros
de saúde têm de ter maior presença no domicílio. Para o ano gostaríamos de
estabelecer incentivos à condição de cuidador informal.
Que
tipo de incentivos?
Podem ser incentivos de natureza fiscal. É ilusório
pensar que se resolve o problema da dependência com a institucionalização,
muitas vezes não é desejável. Trata-se de densificar uma rede que já existe,
que nalguns pontos do país é escassa e frágil.
Ficou
surpreendido com as suspeitas de eutanásia no SNS?
Fiquei surpreendido como pessoa e como ministro. Mesmo as
pessoas que em Portugal desejam que se legalize a eutanásia não ficariam
tranquilas se pensassem que, por absurdo, à margem total da lei e da ética
profissional se praticavam atos que não deviam ser praticados. Há um caminho a
fazer e que deve ser feito com elevação, serenidade e bom senso.
Como
votaria num referendo?
Naturalmente que não vou dizer. Estaria a prestar um mau
serviço público. Tenho uma grande expectativa em conhecer as razões e em
assistir ao debate
O
programa do Governo fala na prevenção, por exemplo para a alimentação saudável.
O que vai ser feito?
Há já um protocolo com as indústrias do açúcar para
promover a redução do tamanho dos pacotes. É uma medida que sinaliza a
importância de fazermos escolhas adequadas. A saúde de cada um está muito nas
nossas mãos e esse investimento é muito custo-efetivo e começa pelos mais
novos. Vivemos tanto como os nórdicos, mas últimos dez anos são muito
determinados pela carga da doença. Não defendo uma sociedade proibicionista,
assética e isenta de liberdade individual, mas defendo uma sociedade
responsável e capaz de informar os riscos associados às escolhas.
Se
não tivesse qualquer constrangimento, o que mudaria na Saúde?
Faria tudo para que os portugueses considerassem a saúde
não apenas como um dever do Estado, mas como uma obrigação individual. Tornaria
os cidadãos muito mais exigentes com as respostas que nós atribuímos. Não
permitiria que em Portugal houvesse uma única pessoa, com indicação para aceder
a um qualquer nível de cuidados, que tivesse de estar à espera por não ter
rendimento.
Que
avaliação está a ser feita ao subsistema da ADSE?
A ADSE gera muita paixão política, muita notícia e
comentários. O Governo fará aquilo que está no seu programa para poder dizer se
continua.
E
continua?
Não vejo como não continuar. É paga pelas quotizações dos
próprios, o Estado já não tem nenhuma comparticipação e os sindicatos desejam
que continue. A partir do momento em que foi criado o SNS, deixou de ter
sentido um subsistema público a conviver com o sistema nacional e universal.
AADSE deveria ter terminado em 1979. Dizia-se que os privados eram financiados
pelo Estado indiretamente e essa questão deixou de existir, porque hoje os
fundos são exclusivamente quotizações dos trabalhadores. AADSE tem de ter
capacidade para uma estratégia de sustentabilidade e perceber que há fundos de
reserva a ser constituídos para prevenir o futuro, porque é, em certa medida,
um seguro público muito aberto, sem exclusões. AADSE é muita generosa na
amplitude das coberturas...
Não
reduzirá as contribuições se continuar a dar lucro?
Isso tem de ser discutido com os sindicatos, que têm um
papel determinante na definição das escolhas. Deve haver uma evolução
progressiva para uma associação mutualista, no sentido de que a ADSE tem fundos
exclusivamente dos trabalhadores, e o Estado não deve ter participação ativa.
Estamos na fase de avaliação e qualquer decisão será tomada em concertação com
o interesse dos próprios
trabalhadores.
Faz sentido dar
benefícios a cônjuges e filhos até 30 anos?
É discutível. É uma proposta que decorre de estudos
atuariais produzidos pela ADSE por entender que tem que alargar a base de
quotizados. Na última década, a idade média agravou-se em oito anos e isso
significa mais encargos e menos sustentabilidade. Nós só temos uma preocupação:
garantir que há condições técnicas para a sustentabilidade, que os
trabalhadores têm uma palavra determinante no futuro da ADSE e que o Estado
português não financia através dos impostos duplas coberturas.
Os
privados podem utilizar tratamentos inovadores, por exemplo para o cancro,
aprovados só na Europa e os hospitais públicos têm de esperar pela aprovação do
Infarmed.
É verdade e é uma das causas que podem levar à
insustentabilidade da ADSE. Estamos a criar condições para que haja um padrão
nacional, que a ADSE deve equacionar em vez de utilizar fármacos sem o
custo-efetividade demonstrado. Até ao final de junho haverá novidades sobre os
padrões de prescrição e as recomendações terapêuticas.
João Vieira Pereira e Vera Lúcia Arreigoso, expresso 19.03.16
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