quinta-feira, abril 23, 2009

António Arnaut e o SNS


O Serviço Nacional de Saúde nasceu há trinta anos. O “pai” foi, como todos sabem, o advogado de Coimbra e ex-ministro socialista, António Arnaut. A GH não podia deixar passar o ano de 2009 – em que se comemora a efeméride – sem dar voz ao principal responsável pela transformação nacional que se registou na Saúde. De facto, se alguma coisa mudou em Portugal ao longo destas três décadas, foi a acessibilidade dos cidadãos aos serviços de Saúde. Foi esta mudança que deu origem a uma alteração radical na forma de olhar e de viver o sector. Na entrevista, referiu que por duas vezes teve medo que se estivesse a caminhar para o fim do SNS e deixa, ainda, recados ao sector privado. Muitos...
Gestão Hospitalar(GH)Passaram 30 anos sobre a criação do SNS. Quando delineou as bases do Serviço Nacional de Saúde esperava que, três décadas depois, ele estaria no caminho que está? Porquê?
António Arnaut (AA)
– A criação do SNS foi inscrita, como ponto de honra, no programa do II Governo Constitucional presidido por Mário Soares, no qual me coube a pasta dos Assuntos Sociais (Saúde e Segurança Social).
A sua apresentação foi feita na Assembleia da República em 9 de Fevereiro de 1978. Nessa altura eu acreditava, ingenuamente, que todos os partidos apoiariam o SNS, porque todos tinham votado o art. 64º da Constituição que previa a sua criação. Enganei-me, pois logo surgiram dificuldades e entraves por parte das forças de direita, especialmente do CDS, nosso parceiro no Governo. O Governo acabou por cair antes de aprovar a lei instituidora e, por isso, logo que regressei à Assembleia da República apresentei ali o projecto em nome do Partido Socialista. O Parlamento aprovou-o e a respectiva lei, nº 56/79, foi publicada no Diário da República em 15 de Setembro de 1979.
Trinta anos depois e apesar de algumas malfeitorias de que foi vítima, o SNS impôs-se ao apreço dos portugueses, e até os partidos de direita dizem apoiá-lo. Foi uma grande conquista social, a maior reforma do século XX português. Se compararmos os índices sanitários de há 30 anos com os de hoje compreenderemos como melhorou a qualidade de vida dos portugueses.
GHO que sente quando dizem que o é o “pai do SNS”?
AA
– Assumo patrioticamente a responsabilidade política pela criação do SNS. Mas a responsabilidade técnica do articulado legal é, sobretudo, dos Professores e médicos Mário Mendes, então Secretário de Estado da Saúde e Gonçalves Ferreira, o grande reformador do sector, que começou a delinear ou a esboçar o SNS com a criação dos Centros de Saúde em 1971.

GHÉ possível continuar a manter um SNS para todos e tendencialmente gratuito, ou as regras do jogo vão alterar-se tão profundamente, nos próximos anos, que vai ser impossível manter esta pretensão?
AA – É possível e desejável, desde que continuemos a considerar o direito à saúde como um verdadeiro direito de personalidade. Desta concepção humanista, perfilhada pela Constituição de República, deriva a obrigação do Estado de garantir, efectivamente, as correspondentes prestações de saúde. Porém, o SNS não é gratuito, porque é pago com os nossos impostos.
Os que mais têm, pagam para os que mais precisam. É esta cadeia de solidariedade que caracteriza e sustenta o SNS como um verdadeiro imperativo moral. Ninguém deve ser afectado por carência económica, no exercício de direito tão essencial, que respeita à própria dignidade humana. Se a igualdade é um valor ético-constitucional, é em situações de fragilidade, como a doença, que esse valor é mais imperioso e indeclinável. O SNS é a trave-mestra do Estado Social.

GHOs actores do sector da Saúde são muitos e há, em cada grupo, vontades e intenções diferentes. Acha que o corporativismo dos diferentes grupos é negativo ou positivo para o SNS?
AA – O corporativismo, entendido aqui como a defesa egoísta do interesse dos diversos grupos profissionais, é negativo para o SNS. Mas eu, sinceramente, não vejo que esses profissionais queiram prejudicar o SNS. Pelo contrário, penso que a grande maioria deseja defendê-lo e dignificá-lo. Quando a Ordem e os Sindicatos vêm a terreiro defender as carreiras profissionais eu dou-lhes razão. A recente reforma da função pública acabou, praticamente, com as carreiras, precarizando e até proletarizando médicos e enfermeiros. Ora, as carreiras são um dos pilares do SNS. Sem estabilidade, reconhecimento do mérito e remuneração condigna de todos os profissionais, o SNS corre grave perigo de degradação.

GHAo longo destes 30 anos, houve algum período em que teve medo que o SNS não fosse sobreviver? Quando e porquê?
AA – Em 1982, quando o Governo de Pinto Balsemão publicou um Decreto revogando, praticamente, a Lei 56/79. Valeu então o Tribunal Constitucional que impediu esse grave atropelo à Constituição da República.
Outra arremetida foi cometida pela Lei 48/90, do Governo de Cavaco Silva, por substituir a lei instituidora do SNS e alterar a sua filosofia. Contudo, o SNS já estava implantado tanto em todo o país, como no coração dos portugueses, e conseguiu resistir ao assédio dos seus adversários, que o queriam destruir para abrir espaço às multinacionais, aos negociantes da saúde.

GHSe lhe pedissem para reformular o actual SNS quais as principais medidas que tomava?
AA – O SNS foi pensado para uma determinada conjuntura e a Lei 56/79 limitou-se, no essencial, a corporizar o modelo consagrado na Constituição. Os tempos e as circunstâncias são outros e o SNS tem que acompanhar e responder às novas necessidades e às novas técnicas. Eu, porém, não discuto o aspecto técnico do SNS porque não sou especialista nessa matéria. Defendo os seus princípios fundamentais, no plano ético-jurídico: o SNS deve conservar a sua marca matricial e ser universal, geral e gratuito, isto é, deve prestar a todos, sem discriminação e em tempo útil, o mesmo tipo de cuidados de saúde, sem qualquer pagamento directo do utente, salvo as taxas moderadoras para os não isentos.

GHAcha que a chave para a reforma está nos Cuidados Primários e nos Cuidados Continuados?
AA – As diferentes valências e patamares do SNS devem ser vistos como um todo complementar e funcionar articuladamente. Esta é a chave para tornar o SNS mais eficiente e humanizado. Contudo, os Cuidados Primários devem merecer uma atenção especial, como está a acontecer, porque respondem a 80% das necessidades em saúde. Os Cuidados Continuados, criados pelo actual Governo, representam um salto qualitativo, que deve ser valorizado.

GHQue análise faz ao crescimento do sector privado da Saúde? Acha que os actuais
grupos se vão manter?

AA – O sector privado deve ter um papel complementar do sector público. Deve ser fiscalizado pelo Estado e articulado com o SNS, segundo a própria Constituição.
A verdade é que nos últimos anos verificou-se um alargamento do sector privado à custa do SNS. Este governo também contribuiu para tal situação ao contratar com grupos privados os tratamentos hospitalares dos funcionários públicos (ADSE), em vez de o fazer com o SNS. Aliás, em bom rigor, não se compreende a existência de sub-sistemas públicos de saúde.
As continuadas tentativas de descaracterizar e debilitar o SNS são inspiradas pelo sector privado. Quanto pior funcionar o SNS mais “clientes” procurarão esse sector. Estão em jogo largos milhões de euros, pois o SNS absorve 1/6 do Orçamento do Estado (OE).
Eu não sou contra as actividades privadas e até reconheço que podem ter um papel social, se elas se pautarem por certas regras.
Porém, a sua motivação é o lucro. O lucro a qualquer preço. Ora, o nosso dever patriótico é defender o sector público, ou seja, o SNS, porque só ele pode garantir o direito fundamental à saúde de todos os portugueses. Não é uma questão ideológica. É uma questão moral e de cidadania. De defesa da dignidade humana.
Quanto à última parte da pergunta responderei: alguns grupos privados vão manter-se e não vejo mal nisso, embora tenha que dizer que a maior parte dos seguros – e há hoje cerca de 2 milhões de apólices – são uma fraude. O que qualquer português sensível e solidário não pode admitir é que esses grupos prosperem à custa do definhamento do SNS. Mas isso não vai acontecer.
As ideias justas e generosas acabam sempre por resistir e triunfar.

GH O crescente peso dos economistas e dos gestores na Saúde é positivo ou negativo?
AA – A Saúde tem de ser bem gerida, porque é paga com os nossos impostos. Uma boa medida de gestão seria, desde já, tentar evitar o desperdício de 25% do seu orçamento, conforme verificou recentemente o Tribunal de Contas.
Outra medida a pôr em prática passaria por obrigar todos os profissionais a cumprir o seu horário e a rentabilizar os equipamentos, evitando, por exemplo, que alguns blocos operatórios estejam a trabalhar a um terço da sua capacidade...
É também preciso saber que gerir o SNS não é uma econometria, mas um humanismo. Por isso, não deve ser administrado apenas por economistas, mas também pelos seus profissionais. Sobretudo, tem de ser gerido por pessoas que o defendam e não por quem o queira destruir.

GHHá quem diga que este SNS só sobrevive se houver uma classe média disposta a aguentar o sistema. Concorda?
AA
– O SNS consome hoje mais de 10% do PIB, o que o coloca, neste campo, acima da média europeia. No entanto, a nossa despesa em saúde, per capita, é das mais baixas da Europa. Isto significa que precisamos de produzir mais para termos melhor saúde, pois o orçamento do SNS deve corresponder a uma justa repartição dos nossos meios financeiros, tendo em conta as necessidades de outros sectores, como a Educação e a Segurança Social.
Neste sentido, é a classe média que dá o maior contributo para a sua sustentabilidade. Mas poderá ser necessário lançar um imposto especial consignado ao SNS sobre rendimentos superiores a certo montante. É o princípio elementar da solidariedade: dos que mais podem aos que precisam.

GHAcha que o SNS é o reflexo do país actual?
AA – O SNS dignifica o país, porque, apesar de algumas deficiências, é o melhor serviço público português. Compare-o com a Educação ou a Justiça…
Tendo em conta a filosofia humanista que o inspira e o seu contributo para a qualidade de vida, é mais do que um “reflexo” do Portugal moderno. É um “amplexo” do 25 de Abril.

GHQue recado deixa para quem hoje dirige o sector da Saúde?
AA – As minhas recomendações estão implícitas nas respostas anteriores. Em todo o caso, espero que o Partido Socialista, autor do SNS, não deixe tocar no art. 64º da Constituição da República.

Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 42

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