domingo, junho 28, 2009

Henrique de Barros


“Os jovens não são o alvo das preocupações do plano nacional contra a SIDA em Portugal”

É ele que trava a luta contra o VIH/SIDA, em Portugal, e, segundo médicos e associações de doentes, tem feito um “bom trabalho”. Falamos de Henrique de Barros que, apesar de não corresponder ao perfil a que estamos habituados para um coordenador nacional da luta contra o VIH/SIDA, tem provado que as suas ideias têm fundamento. A gratuitidade do rastreio foi uma conquista sua. Agora quer que os médicos, nos centros de saúde e nas urgências, peçam às pessoas que façam o teste. Só assim se podem definir as políticas a levar a cabo.

Gestão HospitalarA Igreja é um mau elemento no que se refere à protecção contra o VIH/Sida?
Henrique de Barros – É interessante a forma como coloca a questão pois, como sabe, há várias Igrejas, não só no sentido de várias confissões mas também pelo facto de a mesma Igreja ter atitudes diferenciadas em diferentes países. Em todo o caso, a resposta à sua pergunta é: “Em geral não!”. A Igreja tem tido um papel muito importante, nomeadamente a Igreja Católica Portuguesa, no apoio às
pessoas que vivem com a infecção, particularmente as mais vulneráveis.

GHApesar de haver muitas Igrejas e de uma mesma Igreja ter atitudes diferentes, é importante saber se houve parcerias entre a Igreja e a Coordenação, em que áreas e que formas assumiram…
HB – Houve e há. Existe um grupo de trabalho que tem realizado reuniões, de uma forma ecuménica nas quais se discutem mensagens de incentivo à aprendizagem e à prevenção do VIH/Sida nas escolas…

GHEntão, o que podemos depreender das suas palavras é que a Igreja tem uma atitude na teoria e outra na prática?
HB – Não direi isso. A Igreja tem, naturalmente, atitudes e discursos com base nos seus princípios e tem um discurso da realidade – que não foge dos seus princípios – assente na vida.

GHO preservativo continua a ser importante?
HB – O preservativo é a única medida que temos, ainda hoje, eficaz e viável – do ponto de vista psicológico, social, comum – para enfrentar a epidemia. Dir-me-á que isto não corresponde a toda a verdade, mas a grande medida de prevenção actual é tratar tão bem as pessoas que elas não fiquem numa situação que possam transmitir a infecção, apesar de não estarem curadas. Reconheço que, por enquanto, isto ainda pode ser entendido como uma utopia.
Nesse mundo não existem recursos financeiros para pagar todos os tratamentos porque, infelizmente, no caso do VIH/SIDA, são tratamentos para o resto da vida. No programa português dizia-se que a nossa visão era optimista. Eu digo, não importa o tempo que demoramos a atingir o objectivo. Se o organismo tem que ser desta dimensão também deve ser temperado com a razão, que é o que fomos capazes de fazer com a tuberculose. A tuberculose é uma doença que mata extraordinariamente, que é conhecida há muito mais tempo e para a qual temos uma vacina, apesar de não ser uma grande vacina. Para a SIDA não temos uma cura…

GHMas a tuberculose não está associada à questão sexual e é aí que não se tem conseguido resolver o problema.
HB – Na questão do sexo concordo. Há 30 ou 40 anos, o sexo não tinha a valorização que tem hoje, o que veio trazer mais interrogações para a forma como se está a trabalhar a prevenção. Podemos estar preocupados quando olhamos para a problemática da SIDA, para a qual temos tratamentos, o que é extraordinário, mas o que iremos fazer no futuro?

GHO que aconteceu nos últimos 30 anos com a SIDA? O que se descobriu? Como explica que as pessoas continuem a fazer sexo ocasional sem preservativo, por exemplo?
HB – As infecções têm momentos diferentes e é preciso entender essa verdade. Veja a realidade africana onde a atitude a ter, relativamente à prevenção, tem de ser diferente da do resto do mundo. A prevenção no VIH/SIDA, na Europa, por seu lado, tem estado sobretudo ligada às drogas e não à transmissão por via sexual.
Por outro lado, há um aspecto interessante a ter em conta: ao longo da História habituámo-nos a ver que as epidemias conduziam à segregação entre as pessoas e, com esta doença, a situação não tem andado muito longe desta realidade.

GHO que me está a dizer é que as pessoas têm medo…
HB – Este mundo, em que vivemos, é melhor do que o que existia há 200 anos atrás e a noção dos Direitos Humanos, o direito à dignidade humana, foi mais forte do que a racionalidade do medo. E o que se fez foi simples: mostrar a realidade. Não se começou a escavar a partir do zero. De início, os medicamentos começaram a ser vendidos a preços muito caros e não havia o direito de isto acontecer, mas mais importante do que isto é que se começou a perceber, com o grande esforço da investigação, que a comunidade científica estava preparada para responder às questões. E, assim, foi possível criar moléculas que foram cobrindo as várias fases da infecção. Se pensarmos bem, ainda não temos um medicamento que actue sobre o vírus. O que temos actua sobre a ligação do vírus na célula; actua dentro da célula do hospedeiro em várias fases e actua na fase em que o vírus sai da célula. O que era necessário era encontrar um medicamento que actuasse como os antibióticos.

GH O que alguns especialistas dizem é que nos próximos anos não vai aparecer nada de novo para combater o VIH/Sida. Acha que uma vacina está mais distante?
HB – Ninguém consegue prever isso. Há coisas que nos fazem pensar e o ponto aqui nem é tanto o conhecimento científico. Não basta pôr todo o dinheiro que temos neste domínio para se ter a certeza de que nascerá uma boa ideia ou se encontrará uma boa solução. Temos que ser frios e perceber que, enquanto sociedade, investimos muito menos na procura de uma vacina do que na procura de um fármaco.

GH Aí a culpa é da Indústria?
HB – Não…

GHDeixe-me recolocar a pergunta; a Indústria Farmacêutica tem trabalhado bem?
HB – Também é difícil responder a isso. No que se refere à descoberta da vacina eu nunca culparia a Indústria. Obviamente que a pressão que se tem colocado vai no sentido de diminuir a mortalidade, logo, a questão não se coloca no sentido de deixar morrer milhões de pessoas à procura de uma vacina.

GHE a prevenção?
HB – Tem sido feita prevenção, agora o que se pode questionar é se foi suficiente. Dou-lhe um exemplo: em 2007, o programa de educação sexual nas escolas públicas, na Europa, fez 50 anos. Em 2007, em Portugal, ainda não havia uma lei para esta situação. O que é que isto diz? Que estamos em momentos e fases muito diferentes de evolução. Há uma coisa muito clara que já se percebeu: é que as campanhas dos media, rádio, televisão, são inequivocamente boas, mesmo que não estejam muito bem realizadas. Na prática, a informação passa. O que não se consegue, objectivamente, é mudar as atitudes. Porque é que a SIDA nos aterroriza tanto? Porque a doença estava associada à morte imediata. A partir do momento em que se percebeu que, afinal, já estávamos perante uma história longa, modificou-se completamente a atitude em relação ao medo.

GH O que o assusta em Portugal neste domínio? Que sectores ou que faixas sociais?
HB – A história das campanhas coloca-nos o problema de saber se os jovens são, ou não, um alvo preferencial. E aqui está o primeiro equívoco, na minha opinião. Os jovens não são um alvo das preocupações do plano nacional de Sida em Portugal; os jovens são um problema para a educação sexual, para a educação cívica e para a promoção da saúde. Temos que colocar o esforço onde o problema
realmente existe. A infecção, em Portugal, está centrada essencialmente nas pessoas que usam drogas; nas pessoas que tem sexo comercial; nas pessoas que estão nas prisões; nos homens que têm sexo com homens e, ainda, nas pessoas que vêm de países em que a epidemia é complicada. Estes são os alvos fundamentais.

GHQual desses grupos se acentua mais?
HB – O risco é maior no grupo de pessoas que usam drogas injectáveis. Isto está relacionado com os programas de trocas de seringas e de prevenção de material contaminado que estão hoje longe de atingir o valor desejável. Isto é, cada seringa usada devia corresponder a uma nova seringa o que não acontece. Pode ser que o grande problema não passe por este problema, mas sim pela primeira injecção que, muitas vezes, é partilhada com alguém que é preciso controlar E é essa primeira vez que, em muitos casos, é fatal. E aí entra a questão do reconhecimento dos sintomas, mesmo do ponto de vista médico e clínico. Temos de estar muito atentos, principalmente pessoas que lidam e trabalham nestas áreas. É que um doente que se infecte desta forma, vai sofrer uma infecção passadas duas a três semanas, vai sentir-se doente e vai, seguramente, procurar alguém sobre a gravidade dos sintomas. O que temos que explicar às pessoas é que determinados sintomas, aparentemente banais, no contexto de comportamento de risco podem necessitar de outro género de intervenção e de ajuda. A todos aqueles que estão ligados aos cuidados de saúde, é bom lembrar também que os sintomas banais devem sempre ser inquiridos no contexto numa possível exposição de risco. Se agirmos assim as coisas melhoram.

GHOs portugueses não fazem rastreio?
HB – Fazem…

GHA ideia que temos é que os portugueses não fazem rastreio e não usam preservativo. Apesar de terem medo não querem saber.
HB – Há vários medos. Medo da infecção, que é compreensível, pois quando temos uma infecção temos medo do que os outros vão pensar deles. Há que fazer uma medição, concreta e abrangente, sobre o impacto do problema no meio laboral, ou seja, o que acontece às pessoas, nos seus trabalhos, quando descobrem que têm uma infecção. A informação que temos, neste âmbito, que não é científica nem qualificável é um esboço. Preocupa-nos muito este problema, pois parece que são as próprias pessoas que interiorizam a discriminação e, em muitos casos, para não serem despedidas, despedem-se.
Nas questões da informação verificámos que o problema principal é uma consciência incorrecta do risco. Isto coloca um peso grande na pró-actividade dos serviços de saúde.
Num inquérito que realizámos, concluímos que a maioria das pessoas que se submeteram ao teste foram indicadas por um prestador de cuidados de saúde (ou porque estava grávida, ou porque foi ao hospital com uma queixa, ou porque teve uma conversa e o médico lhe propôs o teste). São poucas as pessoas que dizem: “posso ter estado em risco acrescido de infecção e tenho que pedir que me façam o exame” ou “vou a um centro anónimo e faço o teste”. Ora bem, se existe este tipo de diagnóstico temos que induzir os profissionais de saúde a serem os grandes promotores do rastreio.

GH A Coordenação tem interesse em saber, de facto, quantos portugueses estão infectados? Ou já sabe?
HB – Não temos a noção à unidade ou ao milhar. Do ponto de vista político, como sabe, não há medições perfeitas, há estimativas.

GH Há 30 mil portugueses infectados?
HB – Assumindo que 30% de pessoas tenham a infecção sem saberem e que durante anos se lutou contra a tal sub notificação, terão havido em Portugal, na pior das hipóteses, umas 50 mil pessoas infectadas. Entre 1993 e 1995 – e mesmo
nos anos seguintes a mortalidade foi brutal.
Há momentos e há tempos… e neste momento penso que conhecemos muito melhor a realidade. Hoje haverá 25 mil pessoas infectadas.

GH Nos hospitais os médicos portugueses têm tratado bem os doentes com SIDA?
HB – De início, o sistema de Saúde português não terá respondido à infecção como devia e a mortalidade devido à SIDA demorou muito mais tempo a baixar em Portugal do que noutros países. Com o dinheiro que hoje dispomos para tratar os doentes, enquanto sociedade, acredito que vamos conseguir chegar à diminuição de 25% em 2010. Isso significa, não que os médicos estejam a tratar melhor os doentes – porque isso sempre foi feito – mas que estão a tratar muito mais gente. E há sobretudo a preocupação de diminuir desigualdades. Daí o esforço realizado nos procedimentos dos diagnósticos, dos tratamentos, dos procedimentos de enfermagem, dos procedimentos de farmácia, etc.

GH O que acha que fez que valeu a pena e o que fez que não valeu a pena? O que lhe falta ainda fazer?
HB – As boas ideias estão ligadas à contratualização, que ainda não está a dar todos os frutos que pode. Depois, o esforço imenso do ponto de financeiro, para se conseguir conhecer a realidade. Não é fácil garantir que sejam testadas 20 mil pessoas que usam drogas.
A avaliação constante do que se faz, por exemplo, quer por parte de organizações internacionais ou por parte da sociedade civil portuguesa é também muito importante, assim como a transparência do trabalho que se está a realizar; o conhecimento exacto dos limites e das vantagens e das desvantagens. As medidas que estão em curso, que foram anunciadas pela ministra da Saúde no dia 1 de Dezembro – Dia Mundial Contra a Sida – são igualmente muito importantes, pois vão desde os Direitos Humanos a questões relacionadas com a auto-estima e qualidade de vida, passando pela diminuição das barreiras financeiras, com a gratuitidade do teste.

GHO teste gratuito foi uma vitória sua?
HB – Era uma coisa que fazia sentido. Inquirimos as pessoas sobre a utilização do preservativo e se a preocupação fosse grande a questão do preço seria ultrapassada. Se, pelo contrário, a preocupação fosse pequena então não valeria a pena avançar nesse sentido.

GHPerdeu uma guerra com os médicos, ou pelo menos ainda não a ganhou: a obrigatoriedade da declaração da doença…
HB – Os meus colegas médicos estão muito simpáticos e cada vez declaram mais a doença. Mas agora, com o programa informático que faz a declaração a partir do laboratório, tudo vai estar mais facilitado. Penso que o mais difícil é encontrar um modelo equilibrado que garanta a existência de profissionais de grande qualidade, capaz de responder em áreas-chave.

GH Ainda não o conseguiu?
HB – Falamos muito sobre a necessidade de formar pessoas – médicos, trabalhadores dos hospitais, dos centros de saúde – mas também é importante formar um conjunto de pessoas que transmitam a memória do conhecimento e do pensamento sobre essas coisas e que nos representem, dentro e fora do país. E é um modelo fundamental. Outro ponto que falta também, prende-se com o facto de não estarmos a produzir conhecimento na área da infecção.

GH Só estamos a tratar…
HB – Estamos a tratar, a tratar, a tratar, com o pensamento sobre as coisas, mas fazemos pouco. Não podemos estar satisfeitos com o que fazemos. O que está a ser feito é bem feito e é bom que se faça, mas é demasiado pouco para aquilo que era preciso fazer. Fiquei muito contente por a senhora ministra ter facilitado um suporte financeiro bastante interessante para a investigação.

GH Pode acontecer em breve que o Estado deixe de comparticipar os doentes com Sida ou acha que isso é uma coisa que está muito longe?
HB – Isso não faz sentido nenhum. O que faz sentido, e isso vamos ter que o fazer, é repensar os preços da medicação. O facto de, em determinado momento, e porque a sociedade foi capaz de crescer economicamente, o problema ter ficado mais controlado, ou melhor, mais estabilizado, foi muito bom. Diminuir os cuidados é muito perigoso e o tratamento é uma grande medida de prevenção. Não nos podemos distrair. Temos que discutir com a Indústria Farmacêutica a forma de agir… e a necessidade de diminuir o preço dos medicamentos

GH A Industria está disponível para isso?
HB – A Indústria estará seguramente disponível para isso por diversas razões. A primeira é porque o papel da Indústria Farmacêutica é ajudar as pessoas a viver e não a morrer. O segundo aspecto é porque os lucros da Indústria são suficientemente razoáveis para permitir discutir margens de manobra. E, finalmente, porque estamos a falar de medicamentos que são claramente caros de mais e razoavelmente pagos. Se a infecção começar a explodir, a indústria, mais tarde ou mais cedo, também é afectada por isso. Marina Caldas GH
entrevista de marina caldas, GH n.º 43

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