domingo, novembro 22, 2009

Ana Jorge, entrevista 22.11.09


Sobre a Gripe A, não há respostas completas para dar. Há incertezas.
Todos os dias há escolas que param por causa da Gripe A. Todos os dias há pais em pânico por causa da vacina contra a Gripe A. Todos os dias desesperamos porque não se fala de outra coisa senão da Gripe A. E agora? Agora fomos falar com a ministra da Saúde.

O que é que Ana Jorge tem? Ela é a mulher que sabe ouvir. Também lhe chamam a ministra-estrela do Governo de Sócrates.
Escutar, fazer, talvez falar são os seus verbos. Não por acaso, na entrevista, há pausas entre as perguntas e as respostas. Uma pausa de segundos, de quem ouve atentamente, de quem não responde maquinalmente. Não, isto não é chapa cinco.
É raro um governante expor-se assim, sem filtros. Que conte que cresceu e aprendeu muito fazendo psicoterapia. Que não esconda a insegurança e a timidez. Que assuma as incertezas e que o que diz agora pode não ser verdadeiro amanhã.
O que é que esta entrevista permite? Conhecer Ana Jorge e aceder a um Portugal rural onde as raparigas não passavam do quinto ano do liceu. E tinham confrontos com a autoridade paterna na adolescência. E que aprenderam, assim, a lidar com o conflito. Vulgarmente esquecemos que o que somos e sabemos vem de algum lado… E ela lida, hoje, com o conflito de uma maneira particular.
A entrevista também permite equacionar o que são as mulheres no espaço político. O seu modo de fazer, dialogar, conseguir. Talvez elas, ou ela, não estejam interessadas num jogo de ganhar ou perder. Talvez não seja disso que se trate. Do que é então? Ela responde.
A vida de Ana Jorge seria outra se não fosse a sua professora primária. A vida de mulheres no Alentejo seria outra se não fossem as consultas na área do planeamento familiar em que Ana Jorge participou. No início da trajectória, nada diria que ela seria ministra da Saúde. Mas é, e popular. No início da trajectória, o que ela quis foi ser pessoa.
Ana Jorge tem 60 anos, um filho rapaz e duas filhas gémeas. Tem netos. É divorciada. Aqui ficam algumas memórias de uma menina bem comportada.

É pediatra porquê?
É uma pergunta difícil. Fiz a opção por Pediatria a meio do percurso do internato geral. Primeiro, foi a escolha para Medicina que não foi fácil. Só a escolhi no sétimo ano do liceu. Antes disso, inclinava-me para as engenharias ou para as matemáticas. Desisti porque achei que não tinha a ver comigo. Não tinha pessoas com quem lidar. Optei por uma coisa que implicava uma relação humana. Entre a Medicina Interna e a Pediatria, estive relutante. Entretanto, aconteceu o 25 de Abril. Eu estava a fazer estágio com uma pessoa que era pediatra, e que me disse: “Tens de ir substituir-me, que agora vou trabalhar para a revolução!” Foi assim que comecei a trabalhar, em Alenquer, num dispensário materno-infantil. Ganhei o gosto.

Queria voltar ao momento do liceu em que percebe que a sua vida, como a queria, passava por estar com pessoas. Porquê isso?
Eu tinha trabalho comunitário, enquanto jovem, na minha terra, Lourinhã. Pertencia a organizações católicas. Senti que gostaria mais de trabalhar com as pessoas e não confinada a um laboratório.

Qual era o background familiar?
Não tinha ninguém licenciado, não tinha médicos nem ninguém dessa área. O meu pai era comerciante, tinha uma pequena, média empresa. Marcou-me muito a minha professora primária. Era casada com um homem com o qual não podia viver, porque Salazar não deixava. Era muito lutadora, algarvia; vivia na mesma rua que eu. Quando não estava na escola, ia muito para casa dela. Ajudou-me a crescer, a ter acesso a revistas. A um meio diferente do da Lourinhã, que era muito mais fechado.

Impressionava-a o romantismo e heroísmo dela? Como é que se chamava?
Emília Pessanha. Teve de criar três fi lhos sozinha. Heroísmo, de alguma forma. Estamos a falar dos anos 50 — fui para a escola em 54/55. Tinha uma pedagogia diferente do que era o tradicional. Foi um estímulo. Mesmo nos primeiros anos de liceu, houve um apoio, nomeadamente nas escolhas. De ir para o liceu ou para a escola industrial.

Se tivesse ido para a escola industrial, o seu destino seria diferente.
Completamente diferente.

Ela adoptou-a?
Não. Era uma mulher muito dura, defensora das suas causas. O que senti foi que tive nela um apoio. Sou a mais velha de um casal com dois filhos. O percurso não era fácil. O meu pai tinha altos e baixos do ponto de vista financeiro. Com nove anos, fiz exame de admissão ao liceu, à escola industrial e exame na catequese. Esta mulher era a que dizia: “Vale a pena fazer, vai!” Fui primeiro para uma escola industrial, estive quatro meses em Peniche, e concluí que não gostava de estar ali. Saía de casa às nove da manhã e havia dias em que regressava às nove da noite. Tinha dez anos. Sozinha. Uma violência. Reuniu-se uma espécie de comité familiar em que a professora entrou e decidiu-se que eu iria para o colégio da Lourinhã. Privado, do Patriarcado. Entrei a meio do ano, e ela ajudou-me.

Conte-me a sua relação com o catolicismo. Acreditava piamente?
Tive uma educação católica e cristã. Tive influências familiares. Mas por minha opção, aos 10, 11 anos, entrei para o Movimento Católico da Lourinhã. Fui militante muito activa.

Era uma via de socialização? O que é que a cativava no catolicismo?
Eu tinha prática religiosa, e convicta. Estive envolvida em grupos de jovens, em retiros, em discussões, em campos de férias. Para desenvolver os ideais traçados pela Igreja católica, para uma sociedade mais justa, mais humana, mais judaico cristã. O que me marcou, obviamente.

Queria saber o que persiste disso.
Há coisas que aprendi aí e que mantenho. Fui dirigente nacional da Juventude Acção Católica. Tive compromissos quer no liceu, na JEC [Juventude Escolar Católica], quer na JUC [Juventude Universitária Católica]. Marcou. No respeito pelo outros, pelos ideais, por aquilo que é o ser humano. Afastei-me em 1971. Não houve uma ruptura abrupta, mas um afastamento progressivo. Alguma desilusão em relação a coisas que existiam à volta da Igreja, não em relação aos ideais.

Percebeu com clareza o que queria fazer com a sua vida. Não tem um percurso titubeante, depois logo se vê. O que revela alguma certeza e conhecimento de si.
Como é que eu era? Voltando ao colégio, ou seja, à minha adolescência: era um meio muito pequeno. Os interesses: a escola. Estava no quadro de honra. Fui catequista anos. Aproveitávamos o aniversário do colégio para fazer uma festa, no Carnaval outra festa. Todos os anos tínhamos um almoço num pinhal, íamos passar um dia às Berlengas. Duas ou três pessoas eram as cabeças disto, nas quais eu me incluía. Durante muito tempo era considerada uma menina bem comportada. Era da idade das outras pessoas e as mães diziam: “Se ela vai, tu podes ir.”

A sua mãe devia ter orgulho.
Sim. Mas cobrava. Ela não teve a filha que gostava de ter: gostava que eu tivesse sido professora. Ela achava que as professoras tinham uma vida mais certinha do que as médicas. Sem urgências, com fins-de-semana, um horário normal, mais férias. Aprendi tudo o que as meninas aprendem. Só não conseguiu ensinar-me a cozinhar. Sempre gostei de arrumar gavetas. Aprendi a bordar, a fazer tricot, crochet, costura. As coisas que as pessoas aprendiam no meu tempo. Pelo menos na Lourinhã, toda a gente sabia os lavores femininos. E isso era ser bem comportadinha.

Ser obediente e poupada: eram características que se esperavam das meninas?
Eu não tinha muito por onde gastar, por isso tinha de ser poupada. Obediente era um pouco. Era muito reivindicativa em casa. Na escola, não era um cordeirinho. Sempre tentei manifestar a minha vontade. Não era conflituosa. Não sou, nunca fui. Em casa, tive confrontos sérios com o meu pai.

O que é que os motivava?
Embora achasse que eu podia fazer o curso, contrariamente à minha mãe, o meu pai achava que as mulheres não podiam fazer certas coisas. Portanto, eu não podia sair à noite, andar com determinadas companhias, ir passear para a avenida.

Como é que aprendeu a lidar com o conflito? Tem uma maneira particular de lidar com situações conflituosas ou potencialmente conflituosas. Vê-se, hoje.
Sempre vivi mal com o conflito. Tive experiências de grande conflito, muito jovem. É difícil falar nisso, aqui. No segundo ano da faculdade, comecei a fazer grupanálise. Na verdade, primeiro fiz uma experiência na faculdade, depois fiz dez anos de grupanálise, e depois cinco anos de psicanálise. A experiência de viver e lidar, em grupo, os conflitos e os afectos ajuda a perceber como é que nós somos, como é que lidamos com os nossos afectos.

O que é que aprendeu aí?
A conhecer-me melhor, a saber como é que reajo, a saber como é que as pessoas reagem. Em grupo, aprende-se muito sobre o modo como as pessoas reagem: em situação de crise, conflito, tristeza, alegria. Foi uma experiência de vida muito grande.

É um desafio diferente fazer psicanálise. Está-se de um para um, e a pessoa fi ca mais enfiada em si, em quem é. Foi difícil a exposição que a grupanálise implica?
Não. Fazer grupanálise teve a ver com a minha dificuldade de relacionamento com as pessoas. A vinda para Lisboa, sozinha, para casa de umas pessoas conhecidas, para fazer o sexto e sétimo ano, foi violenta. Vinha de uma turma de 15 alunos onde era a Ana Maria para passar a ser a menina número 49 — era como me chamava a professora de Física. Uma despersonalização muito grande. Caí no meio de um liceu (o Dona Leonor) em que, quem caísse, caía. Ninguém olhava para trás. Nessa altura fechei a minha concha. O relacionamento não era difícil, mas superficial. Era difícil entrosar-me. A grupanálise possibilitou-me falar, partilhar coisas com outras pessoas, perceber que os outros também tinham dificuldades.

Era desconfiada em relação aos outros?
Não era desconfiança. Eu não sou como os outros. Essa é que era a dificuldade. Eu não consigo fazer o que eles fazem. Eu não conhecia o que os outros conheciam (línguas, museus…). Por exemplo: os livros chegavam à Lourinhã na biblioteca itinerante da Gulbenkian, e eu lia às escondidas. A leitura não era valorizada no meio onde eu estava.

Não percebi ainda o que é que os seus pais valorizavam.
Valorizavam que eu fosse boa aluna e bem comportada.

Quando é que leu as Memórias de Uma Menina Bem Comportada, de Simone de Beauvoir? Quando é que o feminismo chegou até si?
Muito mais tarde. Na grupanálise. O Segundo Sexo, também da Simone — li parte, não li todo. Impressionou-me em pequena a vida da Madame Curie. Foi na minha fase de cientista de laboratório.

Pensou que tinha de fazer escolhas entre carreira e família? Rompeu para ser uma mulher independente, que investe na vida profissional?
Achei sempre que as mulheres são mulheres, mães e mulheres, e que têm direito a uma vida profissional por causa da sua competência e daquilo que fazem. Tenho três filhos, tenho netos, tenho família. Tinha de ter um percurso que me permitisse
conciliar as duas coisas. Com muitas dificuldades, grandes opções. Mas não podia deixar de fazer isto porque sou mulher… Só houve uma coisa de que desisti por razões familiares: o doutoramento. Não me arrependo.

Acabou o curso em 73. Como viveu o período pré-revolucionário, com o mundo pronto a ser descoberto, e em ebulição?
Comecei a trabalhar em Janeiro de 74 e a revolução foi logo a seguir. Um percurso iniciado numa grande confusão e com uma grande esperança de que tudo fosse diferente, e que a saúde fosse diferente. Não tive um compromisso político, a não ser nas políticas da saúde. Depois, foi a preparação para o Serviço Médico à Periferia, que começou logo a seguir. Na altura, era casada com uma das pessoas que estavam envolvidas nessa preparação. Olhávamos para aquilo como uma coisa de extrema importância.

Era um regresso às origens, à província, mesmo que se tratasse de uma outra geografia? Com um estatuto diferente e acreditando que podia intervir na vida das pessoas.
Nunca me afastei da terra de onde sou. No Serviço Médico à Periferia optei por uma terra que não era a minha. Estávamos muito próximo das comunidades e tentando responder a uma ideia que defendíamos: a saúde é um direito das pessoas. Toda a gente tem direito, pelo menos, aos cuidados essenciais em saúde. Envolvi-me na saúde materno-infantil, no planeamento familiar (que era uma novidade), no desenvolvimento do trabalho nas escolas e cooperativas (estávamos em plena Reforma Agrária). Um trabalho nunca politizado, mas sim com as comunidades.

Conte-me uma história desse período.
No regresso da Periferia, as pessoas com quem tínhamos estabelecido muito boas relações deram-nos alguns presentes. Um homem, idoso, que vivia perto de Alcácer do Sal (onde fiz a Periferia), tinha de vir todas as semanas a Alcácer. Era para ele uma coisa difícil e passei a levar-lhe a medicação. Quando me vim embora, levou-me um presente: uma garrafa de água mel embrulhada em papel de jornal. (A água mel é a água de lavar os favos de mel e serve para adoçar, em vez do açúcar.) É o presente mais singelo, mais simples... de quem não tinha nada. Chorando, despedindo-se. Outra história: com as mulheres, tínhamos reuniões à noite. Discutíamos os problemas das mulheres.

Eram os seus problemas, também? Revia-se neles?
Não. Era capaz de as entender, mas não era uma identificação, propriamente. Eram, como eu costumava dizer, umas reuniões clandestinas!

Pensou alguma vez que, se não tivesse estudado, o seu destino podia parecer-se com o
daquelas mulheres?

Nunca senti isso. Às vezes dava vontade de sacudir: “Acordem para os vossos direitos. Como pessoas. Não é como mulheres.” Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse ser uma delas. Se tivesse feito outro percurso, sentiria sempre a necessidade de fazer outras coisas. Fiz sempre muitas coisas ao mesmo tempo. Mesmo na Lourinhã, apesar das dificuldades, tinha acesso a coisas que os outros não tinham. Por exemplo, sou das primeiras raparigas que dão o salto e vêm para Lisboa fazer o curso. As raparigas ficavam-se pelo quinto ano. O grupo da minha geração que faz uma licenciatura é muito pequeno; e não tem a ver com o poder económico. Lisboa era muito distante.

Quem é que lhe injecta essa inquietação?
Diria que fui buscar algumas coisas à mãe e outras ao pai. Mas a pessoa que me faz voar mais longe foi a minha professora. Uma vez contou-me uma história que nunca mais esqueci: começaram a aparecer umas telefonias que tinham um óculo, uma bailarina e uma luzinha. Ainda não havia televisão. Ela explicou-me que íamos ter televisão, e que era aquilo, em grande ecrã, que íamos ver a realidade na televisão. (Eu tinha sete ou oito anos quando apareceu a televisão em Portugal, e só ao fim de muitos anos tivemos televisão em casa.) Tenho uma imagem de mim, antes dos seis anos, na sala dela, a ver revistas, que não tinha em casa. Não me lembro que revistas eram. E de muitos livros à volta. Essa imagem está tão marcada que sou capaz de descrever a sala.

Conta a sua história como uma sucessão factual. Mas poucas vezes se refere ao ambiente. Como eram os espaços, as pessoas.
[pausa] Há outra pessoa de que não me tinha lembrado, e que é muito marcante na minha infância. É um tio, irmão gémeo da minha mãe. Eu era afilhada dele, tínhamos uma relação próxima. Fui sempre muito mimada por este tio e pelos avós maternos. Lembro-me do colo do meu tio e dos meus avós, e não me lembro do colo da minha mãe. Embora tivesse com ela uma relação próxima e aberta. Este tio talvez me tivesse dado o que a minha mãe não deu: um grande estímulo em relação ao curso que eu tinha decidido tirar. Eu já estava em Medicina quando ele morreu. Era um bonvivant. Sempre me contaram as histórias de ele ter muitas namoradas. Mas era muito afectivo e encorajador. O meu pai era conservador, mas sempre gostou de viajar. Sempre teve alguma inquietação, no sentido de querer coisas diferentes. Nesse sentido, sou mais parecida com o pai do que com a mãe.

Tinha confiança em si?
Nem sempre. Ou melhor, conhecia-me suficientemente bem, mas tinha alguma insegurança e timidez.

Ainda parece muito reservada e tímida.
Era mais tímida.

Como passou à acção? Apesar da timidez, estava no quadro de honra, nos grupos católicos. Não estava manietada pela insegurança. O que é que a fazia vencer a insegurança?
Querer fazer coisas. Querer ser pessoa. Achar que as pessoas têm direito a ser consideradas pessoas. A serem reconhecidas pelo seu trabalho.

A afirmação faz-se pelo trabalho?
Sim. Raramente exijo uma coisa que não saiba fazer. Tenho de experimentar. Até nas pequenas coisas da casa. O que faz com que diga: “Isto pode fazer-se porque eu sou capaz de fazer.” Dizia-se que, para saber mandar, uma dona de casa tinha de saber fazer. É verdade. Leva também ao respeito pelos outros, a não exigir coisas que não se possam fazer.

Ainda em Alcácer do Sal: não disse com o que é que sonhava esta jovem mulher. Só falou de trabalho. O que pensava para o seu futuro?
Eu teria 25, 26 anos. O meu filho tinha três meses e levei-o comigo. Estava casada. O que eu desejava era ter uma família (um marido, filhos, uma casa) e ter isso equilibrado com uma vida profissional. Cheguei a pensar que não seria possível trabalhar a tempo inteiro... Depois, trabalhei a tempo inteiro e em duplo emprego. Era preciso ganhar dinheiro. E havia experiências profissionais que seria interessante desenvolver. Levei o meu filho comigo porque achei que ele não podia ficar um ano inteiro sem a mãe, ou estando com ela só aos fins-de-semana. Tinha apoio dos avós. Quando eu estava de banco e sozinha, ele ia para o hospital comigo, e as enfermeiras, que tinham uma espécie de camarata, tomavam conta. Ou então ia para casa das pessoas da creche. Mas isto era possível numa vila como Alcácer.

Como, quando, com quem aprendeu a ouvir?
Ouço muito? [riso]

Dá ideia. Ouvir é parte do seu segredo?
Aprendi a ouvir no trabalho de psicoterapia de grupo. Treinei-me. O grupo tinha oito pessoas e cada um tinha a sua vez para falar — tem que se ouvir [os outros]. No contacto com os doentes, tem que se ouvir muito. Na Pediatria ainda mais. E tem que se ouvir pais, tem que se dar espaço.

Pais ansiosos.
A primeira coisa a fazer quando os pais estão ansiosos é sentá-los e ouvi-los. E não interromper. Treinei isso, também.

Essa experiência de saber ouvir tem sido fundamental nestes quase dois anos em que é ministra? Isso e sossegar pessoas em estado de ansiedade.
Sim, mas ouça: fiz outras coisas na vida. Na minha vida de pediatra, dediquei-me a um sector de que ninguém gostava. O das doenças crónicas. Ora, tratar uma família com uma doença crónica é estar disponível para ouvir e acompanhar. Aprendi muito com os pais, com as crianças. Obviamente tinha um background, um espaço onde podia falar de mim, das minhas dificuldades, dos meus sentimentos. Tinha um espaço onde podia dizer: “Hoje aconteceu-me uma coisa terrífica.” Aprendi a ser capaz de falar com as pessoas quando estão em sofrimento. No Hospital da Estefânia, criei um espaço onde, quando alguma coisa não corria bem no serviço, se falava disso. Não sobre o facto, mas sobre os sentimentos de cada um dos profissionais.

Aprendiam a lidar com coisas terríficas, a dizer coisas terríficas?
Há crianças que morrem. Temos de ser capazes de viver com esta situação — e também somos mães, também somos pessoas. O ser capaz de partilhar isto e fazer com que falemos destes assuntos ajuda-nos a crescer. E ajuda-nos a, quando estamos com outros em situações de tensão, não levar a nossa tensão. Ela já está gerida noutro local. Não sei se isto é o segredo, ou uma técnica; é o que podemos desenvolver enquanto capacidade.

Trata-se de não atropelar o outro com a nossa história, a nossa narrativa?
Se já me conheço, não tenho de contar o meu caso. Tenho de estar disponível para ouvir os outros. Depois, talvez possa contar um pouco da minha experiência.

Nas conferências de imprensa e nas intervenções públicas transparece uma enorme tranquilidade. Mas, ao mesmo tempo, assertividade. Nunca se descontrola?
Eu também grito. Também dou dois berros. Não é o habitual. Mas isso eu treinei: em situação de crise, de tensão, temos de ficar tranquilos. Depois, logo se vê. Não lhe consigo explicar... Tem a ver com todo um historial de vida e alguma resiliência. Que é da pessoa. Se olhar para trás, tive situações de tensão que exigiram que fosse assertiva. Apesar de tudo, acho que consigo dominar-me. Tenho algum controlo. Quando me pedem explicações sobre estas situações [da Gripe A], o que é preciso é tranquilizar as pessoas.

A gestão da informação relativa à epidemia da Gripe A foi uma estratégia sua? Decidiu que ia fazer o mesmo que fazia no consultório: sentar-se e falar com as pessoas, usar uma linguagem que elas possam seguir, dizer coisas sensatas?
No dia em que apareceu a epidemia da Gripe A não nos sentámos aqui a pensar: “Agora vamos fazer assim.” Foi pensada uma estratégia, mas não foi pensado que eu ia falar calminha. O que faço aqui é o que fiz muitas vezes aos pais. Durante muito tempo, tive de explicar aos pais que o seu filho ia ficar deficiente para o resto da vida, que podia morrer, que ia morrer, ou que tinha morrido, ou que a doença era grave mas que há sempre qualquer coisa para fazer a seguir. O importante é nunca fechar a porta. Em saúde há sempre qualquer coisa para fazer. Nem que seja ajudar a morrer tranquilamente. Depois, tive aqui algumas ajudas [no Ministério]: “Faça assim, faça assim.”

Nunca teve dúvida de que ia conseguir lidar com isto com esta tranquilidade?
Ai tive, tive. Ainda hoje, quando há uma situação de crise, nem sempre percebo, quando me disponibilizo para falar, se no fi nal as coisas vão correr bem. No sentido de esclarecer tudo, de encontrar respostas. Às vezes não há respostas completas para dar. Há incertezas.

“Incertezas” é uma palavra que não costuma ir bem com ministros, nem com política.
Pois. Mas há uma diferença: em Medicina, não há certezas. Assumo isso. O que sei hoje, amanhã pode ser mentira. Não há muito tempo, afirmámos uma coisa e 48 horas depois a OMS veio dizer: “Afinal, não é assim.” O conhecimento científico está a mudar todos os dias, e somos confrontados com isso.

O que é que mudou, nestes quase dois anos? É uma pessoa diferente depois desta experiência? Na maneira como percepciona os outros, o poder.
Mudou uma coisa: deixei de poder ir à rua sem ser identificada.

Está na fila do supermercado e as pessoas dizem: “Olha, olha a ministra”?
[Abana a cabeça afirmativamente] E ficam muito espantados porque vou às compras, como outro ser humano normal. Normalmente são agradáveis. Mesmo quando contestam — “podia ser assim ou assado” —, é dito de uma forma que não considero agressiva. Não há uma agressividade em relação a mim. Em relação ao poder: eu não gosto do exercício do poder.

A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo é só um dos exemplos da sua passagem pelo poder. Porque é que não gosta do exercício do poder e várias vezes esteve em cargos de poder?
São desafios que me põem. E não gosto de dizer que não aos desafios. Não pelo exercício do poder, mas porque são funções que, em determinada altura, acho que tenho obrigação de desempenhar. Obrigação no sentido de exercício de cidadania, como pessoa.

A que se empenhou, há 30 anos, na Periferia, na construção de um mundo melhor: é essa que a faz aceitar?
E foi um pouco o que me fez aceitar ser ministra há dois anos. Achei que, em função de uma série de coisas que estavam a decorrer, estava na altura de assumir uma posição. Esta continuidade [no Ministério] tem a ver com a continuidade do trabalho que se estava a fazer.

Nomeadamente a reformulação do Serviço Nacional de Saúde (SNS)? É nisso que se empenha?
E a requalificação dos profissionais de saúde. Do seu reconhecimento como factor essencial para a Saúde. São as duas grandes coisas [que me proponho fazer].

Quando aceitou, mediu a herança, que não era pacífica, que Correia de Campos lhe deixava? Sentiu isso como uma enorme dificuldade? Ainda por cima, é uma “deles”, faz parte da classe.
Senti. Na altura, não pensei que se acalmasse o sector tanto quanto se acalmou.

Diz-se que o estilo é que mudou, que as medidas não são tão diferentes assim. Concorda?
Concordo um pouco. A reforma da Saúde é necessária e importante, até para a existência do SNS. Posso não concordar com uma ou outra medida que foi tomada, mas que até continuei. Mas na essência, no global, estou de acordo. Houve duas coisas — e disse-o publicamente. Por um lado, era o combate aos profissionais de saúde. Eu era profissional de saúde do hospital. Muitas vezes a pessoa sentia-se não reconhecida. Investe, trabalha, e depois... uns vão lá buscar o ordenado e pouco mais; outros, muitos, estão lá porque acreditam, estão envolvidos, querem fazer melhor. E isso não era reconhecido. Era uma das coisas que nos faziam sofrer. Por outro lado, algumas das medidas eram mal explicadas. Medidas que eram essenciais. Não se era capaz de chegar ao outro. É preciso que uma pessoa se ponha no lugar do outro para perceber o que é que o outro gostaria de ouvir.

Que é o que faz?
Faço muitas vezes esse exercício. Mesmo agora. O que é que eu gostava de ouvir se estivesse do outro lado? Pode-se chamar a isto a veia cristã… [sorriso] Mas não, é a veia das pessoas. É o respeito pelas pessoas.

A matriz é cristã, mas já não lhe chama assim?
Não tenho dificuldade em assumir que muitas das coisas que aprendi e desenvolvi vêm daí.

A sua imagem de marca é esse sinal, o penteado, os óculos.
Este sinal! Ando há que tempos para o tirar.

O que quero perguntar é há quanto tempo tem essa imagem e se isso é uma coisa que a ocupa.
Tenho preocupação em manter boa cara. Primeiro para me sentir bem. Se olho para o espelho de manhã e não gosto de me ver, é o horror! Sou um bocadinho conservadora na maneira como visto, e não quero mudar. Mudei q.b. [nestes dois anos].

A verdade é que tem 60 anos e já podia ter tirado o sinal. Há quanto tempo pensa nisso?
Não tenho este sinal há muito e nem tinha dado por ele. A não ser quando cheguei ao Ministério e uns colegas da dermatologia mandaram-me este recado: “Quando é que queres cá vir tirar o sinal?” Foi por isso que pensei em tirar.

Não é possível que olhe tão pouco para si.
Não me incomodava. Os óculos: uso há muitos anos e preciso deles. O penteado: sempre usei o cabelo curto. Porque tinha muito cabelo e forte e armado. [olha para o relógio] Tenho que me ir embora!

Que é que tem de fazer agora?
Vou ao Ministério das Finanças. Não vou ouvir, vou ser ouvida.

Entrevista de Anabela Mota Ribeiro, Fotografia Clara Azevedo, JP 22.11.09

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