sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Avaliação dos Gestores Hospitalares

«Muitos resultados não dependem só da administração»

Tempo Medicina inicia hoje a publicação de um conjunto de diálogos com profissionais de áreas que não a Medicina, mas cujo trabalho se entrecruza com esta e a influencia. O primeiro interlocutor destes «Outros olhares» é Pedro Pita Barros, economista da saúde, que, por exemplo, chama a atenção para a necessidade de, em caso de maus resultados dos hospitais, todos os funcionários serem penalizados.

Tempo Medicina (TM) — Economia e saúde na mesma frase costumava dar mau resultado em conversas com médicos, mas a situação parece estar a mudar. Sente essa mudança ou acha que os médicos continuam de pé atrás em relação aos economistas?

Pedro Pita Barros (PPB) — A princípio, tratava-se de uma resistência ideológica. Queria juntar-se economia, mercado, comportamento e saúde. Lembro-me que, em 1995, falar em mercado de saúde era uma heresia. Entretanto, registou-se uma grande mudança e abertura a estas ideias. Por outro lado, houve também o problema de os médicos identificarem economia com contabilidade de custos, mas acho que essa ideia tem vindo a mudar. E o que influenciou muito a mudança de atitude foi quando os médicos começaram a perceber que o dinheiro que recebem das instituições depende também de considerações de índole económica.

«TM»Que avaliação faz da forma como a Saúde dos portugueses tem sido gerida nestes últimos anos?

PPB
— Desde o início da década tivemos vários altos e baixos, com algumas alterações importantes. Os hospitais SA, agora EPE, foram um marco importante. As USF também são um marco importante, bem como os cuidados continuados. Estes últimos porque vieram cobrir uma parte que estava desprotegida e que vai ser cada vez mais importante, dado o aumento da população idosa. Por outro lado, os hospitais precisaram, e continuam a precisar, de racionalizar e ganhar eficiência. Têm de perceber como podem fazer melhor com os mesmos recursos e passarem para a fase em que, fazendo o mesmo, possam poupar recursos. Já os cuidados de saúde primários estavam claramente num caminho de divergência face à população e era necessário voltar a fazer deles o primeiro ponto de contacto. Acho que estes três pontos do sistema foram bem tocados e avançaram bem.

«TM»O que é que tem corrido mal?

PPB — Onde as coisas derrapam sempre é com o quanto se gasta. Começa a ser claro que cada vez que existe uma pressão forte do Ministério da Saúde para garantir que o que é gasto é bem gasto, as coisas entram mais ou menos nos eixos; sempre que o caminho é de aliviar a pressão, as coisas derrapam outra vez. É muito fácil haver desperdício dentro do sistema. A questão é perceber quais são todas as pequenas coisas que, somadas, criam um desperdício muito grande.

«TM»O desperdício é mesmo o que emperra o sistema?

PPB
— É. E o que o provoca são tudo coisas muito relacionadas com os sistemas de organização, com a vida interna do hospital. Por exemplo, coisas como começar a horas e não ter os blocos parados apenas porque foram todos beber um café. Há muitas coisas mal programadas dentro dos hospitais, os quais continuam mais orientados para os serviços e menos para o doente. Em muitos hospitais, os doentes continuam a viajar lá dentro e tudo isso é perda de tempo, é desperdício de recursos.

Propostas para sustentabilidade por aplicar

«TM»Nenhuma das propostas da Comissão para a Sustentabilidade do Financiamento do SNS chegou a ser aplicada. Isso decepciona-o enquanto elemento da mesma?

PPB — Sou cada vez menos entusiasta da ideia de que uma pessoa faz estes trabalhos e depois eles têm impacte imediato. Por muitas recomendações que se façam, e por muito interessantes que pareçam, uma vez que fazem sempre doer alguma coisa, muitas vezes do ponto de vista político, nunca é apropriado aplicá-las. Mas num prazo de cinco anos pode ser que essas ideias acabem por vingar e surgir. Neste momento, já é com mais cuidado que se fala em deduções fiscais na área da Saúde. Dizia-se que era uma coisa sempre boa, mas se calhar não é sempre assim tão boa. Há pessoas que beneficiam mais do que outras, e isso pode até introduzir desigualdades no sistema; são uns quantos milhões que até têm efeitos perniciosos em termos de procura excessiva de cuidados. Portanto, se calhar, faz sentido repensar.

«TM»Levantaram a hipótese de acabar a ADSE, que não foi bem recebida…

PPB — Apresentámos os dois extremos: ou a ADSE passa a ser uma espécie de subsistema a sério em que recebe por capitação e tem de tratar os doentes, ou então acaba. A ADSE tem orçamentos muito flutuantes consoante a disponibilidade fiscal, mas estava a crescer a uma taxa muito acelerada. A verdade é que a ADSE, nos últimos anos, devido às pessoas que lá estão ou por outra razão, tem vindo a ter uma atitude de alguma contenção, negociando bem com prestadores, etc. Mas será que essa mudança foi totalmente independente de se saber que havia quem sugerisse que acabasse?

«TM»Se fosse ministro da Saúde, que medida adoptaria de imediato?

PPB — Não tomava apenas uma medida, mas mexeria em várias daquelas que a comissão propôs. Mantinha a pressão para ganhar eficiência, pois embora não resolva o problema dá sempre uma folga e é importante que se faça o melhor possível e sem desperdício. Revisitaria as isenções de taxas moderadoras, as deduções fiscais e a forma como a ADSE se relaciona com o Orçamento do Estado.

Sim à governação clínica

«TM»O que é que distingue um bom de um mau administrador hospitalar?

PPB — Tem de ter capacidade de liderança, perseverança e a capacidade de saber avaliar, em cada momento, se o que está a ser gasto no hospital faz sentido ou não. Eu vejo muito o hospital como sendo uma espécie de mercado — e agora vou chocar [risos] — onde nós temos um grupo, que é o dos médicos e profissionais de saúde, que pedem recursos; e temos um grupo que tem a missão de dar esses recursos, que é a administração. E a maneira como esse mercado se gere é por negociação dentro do hospital. O bom gestor hospitalar tem de ter a capacidade de gerir bem esse mercado.

«TM»Em entrevista recente, o secretário de Estado da Saúde, Óscar Gaspar, diz que «os grandes hospitais públicos são bem geridos». Concorda?

PPB — Sim, em geral sim. É verdade que as actuais equipas de gestão de alguns destes grandes hospitais ajudaram a acabar com o mito de que aquelas eram unidades ingeríveis. E também é verdade que funciona tudo melhor nesses grandes hospitais, e também nos mais pequenos, sempre que a gestão se aproxima da Medicina ou os médicos se aproximam da gestão. Durante um tempo a gestão esteve muito centrada nos médicos, mas estes geriam sem pensar em gestão. Depois passou-se a ter quase o contrário, com gestores que não sabiam nada de Medicina e geriam o hospital como geriam outra coisa qualquer. Dá-se agora o fluxo inicial de serem os médicos a decidir, mas já com competências de gestão.

«TM»As coisas correm melhor porquê? Porque há menos crispação, na medida em que a gestão é feita interpares?

PPB — Não só há menos crispação como não se trata de uma invasão. Além disso, as decisões que os médicos tomam, se estes já tiverem alguma formação em gestão, são melhores decisões, não são tão arbitrárias.

Avaliação deve ter consequências

«TM»A avaliação dos administradores hospitalares — que já estava prevista mas ainda não tinha sido posta em prática — é uma boa medida?

PPB — É uma boa medida. Não há nenhuma razão para que os administradores hospitalares não sejam avaliados.

«TM»Mas fará diferença?

PPB — Sim, pode fazer diferença. Não tanto pelo lado da penalização, mas porque muitas vezes basta simplesmente dizer que se vai avaliar para que as pessoas se sintam impelidas a fazer melhor. Podem também fazer benchmark, saber o que os outros estão a fazer bem para melhorarem. Mas a avaliação terá também de ter alguma consequência. Tem de se pensar no que será feito, de facto, aos hospitais que tenham uma gestão ruinosa durante vários anos.

«TM»Isso ainda não está claro.

PPB
— Não, e não é fácil. Porque, por um lado, não se quer interromper o serviço de um hospital, por outro, também é preciso ter em atenção que não se devem usar os maus resultados do hospital para que os profissionais de saúde dessa instituição não tenham gestores que não querem. Porque muitos resultados não dependem só da administração.

«TM»Como evitar que apenas os administradores sejam responsabilizados pelos resultados de todos?

PPB
— Podem fazer-se coisas mais drásticas — e aqui, como académico, posso dizer as coisas mais bombásticas [risos]. Sem fechar o hospital nem interromper o serviço, posso pôr fora todo o pessoal que lá trabalha e contratar todos de novo. Ou então, posso dizer que despeço a equipa de gestão, os seus elementos não podem ser empregues no sector público durante cinco anos, e baixo em 10% o salário dos médicos, enfermeiros e todo o pessoal. Baixar-lhes o salário para evitar que façam as coisas correr mal, para se livrarem de uma administração de que não gostam.

Quem é?

Pedro Pita Barros, 43 anos, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e o seu trabalho de investigação na área da Economia da Saúde é amplamente reconhecido. Foi vogal da Comissão para a Sustentabilidade do Financiamento do SNS e publica regularmente artigos sobre Economia da Saúde em revistas científicas de circulação internacional. Em 2007 publicou o livro Análises da Saúde, uma compilação de textos que escreveu sobre o tema ao longo de oito anos.

A saúde como opção

«TM»Porque é que enveredou pela vertente da saúde?

Pedro Pita Barros — Um bocado por acaso, como muitas coisas na vida. Na altura em que estava a fazer o doutoramento decidi ir passar uns tempos aos EUA para recolher ideias, trabalhar e estar noutro ambiente. Quando lá cheguei decidi frequentar alguns cursos que eram oferecidos na universidade onde eu estava, a Boston University, e um dos cursos era de Economia da Saúde. Fui ver de que se tratava e era muito próximo de algumas coisas que eu já fazia na área da Economia Industrial, nomeadamente no que diz respeito a funcionamento de mercados, incentivos e comportamentos de agentes, etc.

«TM»O que é que se assemelhava nas duas áreas?

PPB — Eram muito semelhantes, por exemplo, o tipo de análise, a forma de pensar. Acabei por fazer o curso que era dado pelo Tom McGuire, um economista da saúde que agora está em Harvard. Quando regressei a Portugal terminei a minha tese de doutoramento e depois fui entrando na área da Saúde.

«TM»Na altura, a Economia da Saúde era uma área ainda pouco divulgada em Portugal?

PPB — Havia muito menos gente a trabalhar nesta área, aliás, como em todas as outras. O que não havia era o hábito de estes temas serem tratados nas faculdades de Economia. Era na Escola Nacional de Saúde Pública que se encontravam as pessoas que se dedicavam a isto, como o grupo do Correia de Campos, aliás, conheci-o mais ou menos nessa altura. Mas trabalhavam nestas áreas numa perspectiva muito europeia, muito voltada para problemas de equidade, etc.; enquanto eu tinha outra visão, tinha uma perspectiva muito mais voltada para aspectos de eficiência e funcionamento de mercados. No fundo, os dois lados do Atlântico eram mais diferentes há 16 ou 17 anos do que são hoje; hoje são muito mais próximos.

Relação médico-economista

«TM»É complicado lidar com médicos?

PPB — São uma classe como qualquer outra, com as suas particularidades. Qualquer grupo profissional tende a salientar as suas especificidades e a esquecer o que é comum a todos os outros. No caso dos médicos também é verdade, mas ultrapassando isso não me parece que seja uma classe muito diferente das outras. São pessoas inteligentes, gostam de pensar, têm um grande espírito de classe, sobretudo quando acham que estão a ser atacados. Fora desse contexto em que sentem que podem estar a ser ameaços nalguma coisa, não tenho tido nenhum problema em lidar com médicos e conversar com eles. Muitas vezes é uma questão de linguagem. A linguagem que usamos em Economia tem um sentido muito preciso, o sentido que eles lêem é outro sentido.

«TM»E os médicos são muito ciosos, por exemplo, da sua liberdade de prescrição, de que esta não seja afectada por questões economicistas…

PPB
– São, porque isso faz parte do trabalho deles. Se eu tivesse um médico a dizer qual deveria ser o programa de Economia que eu deveria ensinar na minha cadeira eu reagiria: «O que é que ele tem a ver com isso?» Se bem que eles também têm de lidar com coisas que outras profissões não têm, como as expectativas de uma população que espera que eles sejam uma espécie de deuses que solucionam todos os problemas. E isso também pode ser muito complicado de gerir. Falar de erro médico, como fala o José Fragata, é complicado para eles porque se trata de assumir uma falha que as pessoas não querem reconhecer que eles podem ter.
Já fui convidado duas ou três vezes para falar em congressos médicos sobre questões de Economia e sempre me senti acarinhado, notei curiosidade por parte das pessoas. Por vezes, nem todos os comentários ou afirmações que proferem têm razão de ser, mas outros têm. Todavia, percebe-se sempre que há um fio condutor e as suas reacções não são gratuitas.

Gestão e avaliação

«TM» — Disse há pouco que quando os médicos se aproximam da gestão, esta melhora e as decisões são menos arbitrárias. Há estudos que o demonstrem?

PPB — Em Inglaterra tem havido alguns estudos que o evidenciam. É um tipo de estudos que eu até gostava de ver transportado para Portugal para ver como funcionaria. Neste momento, só nos falta o financiamento para podermos avançar. Curiosamente, os médicos também têm tendência para pensar desta forma, o que se reflectiu no livro que Luís Campos, em conjunto com Margarida Borges e Rui Portugal, editaram há pouco tempo sobre governação clínica.

«TM»A avaliação é sempre uma medida positiva?

PPB — Eu já tinha de alguma forma a convicção de que estas coisas acabam por funcionar relativamente bem. Quando transformámos alguns dos SPA em SA e depois em EPE havia a discussão sobre quais seriam melhores ou piores. E do que eu vi das contas dos primeiros anos, todos melhoraram. Melhoraram os EPE porque tinham outra liberdade de gestão e sabiam que estavam a ser observados, mas também melhoraram os SPA que não queriam ficar mal na fotografia. E aqui, com a avaliação dos administradores hospitalares, penso que poderá haver um pouco desse efeito também.

Economia da Saúde na faculdade

«TM»Há quanto tempo existe a cadeira de Economia da Saúde na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa?

PPB
— Desde 1998/99. Com o processo de Bolonha, a cadeira que era do último ano da licenciatura passou a fazer parte dos novos mestrados. É opcional, sempre foi. Este ano, pela primeira vez, começou-se na formação pós-graduada para executivos. Quando era cadeira de licenciatura a frequência chegou a flutuar entre 20 a 60 alunos, agora que passou para mestrado tem tido regularmente 30. Houve um ano em que tive 15 alunos e deu para organizar a cadeira como um grande projecto. Dedicámo-nos a perceber porque é que o Hospital de Santa Maria [HSM] está a ter um aumento do afluxo às Urgências outra vez, quando na área de Lisboa está a diminuir em geral. Fomos para a rua fazer um inquérito e trabalhar com o hospital para perceber isso.

«TM»E o que concluíram?

PPB — Uma coisa curiosa. Concluímos que o aumento das idas à Urgência está a ocorrer provavelmente por uma questão de imagem do hospital, mas também porque está a atrair pessoas com casos não muito graves da periferia de Lisboa que estão com disponibilidade para se deslocarem. As pessoas apercebem-se da diminuição dos tempos de espera e vão mais vezes ao hospital. Portanto, não são as mesmas pessoas que vão mais vezes

«TM»Apesar de o HSM estar a gerir um Serviço de Urgência Básica na periferia, tal não está a contribuir para a diminuição do afluxo ao HSM…

PPB — Ainda não medimos o efeito da abertura desse SUB, porque este estudo já foi feito há mais de um ano. E ainda há outro efeito adicional que falta medir, que é a abertura da nova farmácia de acesso ao público. É provável que haja também um aumento por conta disso… é o pacote dois em um… vou à Urgência e trago as coisas.

Preferência pela liberdade de pensamento

«TM»Já foi convidado para presidir a algum conselho de administração de algum hospital?
PPB — Não nem nunca serei [risos]!

«TM»E aceitaria?

PPB — Nunca serei convidado e provavelmente nunca aceitaria. Há um requisito de base que eu não cumpro desde logo: tenho poucas gravatas. Além de não querer gastar dinheiro a comprar mais, estes lugares implicam um certo tipo de competências pessoais para gerir relações. E o treino que tenho como professor e académico não é provavelmente o melhor treino para fazer essa gestão. Gosto da liberdade de pensamento, de dizer o que me apetece, gosto de fazer aquilo que quero quando quero e controlar eu a agenda e não a agenda controlar-me a mim. Esses cargos tipicamente não são assim. Por outro lado, pessoalmente a minha realização não passa por aí. Tenho uma realização a tempos mais longos.

«TM»Poderia sentir-se imbuído do espírito de missão…

PPB
— Acho que concretizo melhor o espírito de missão sendo um grilo falante, estando sempre a provocar. Tenho mais espírito de missão assim do que ir fazer mal um trabalho de que não gosto.

GDH e incentivos

«TM»Um dos projectos em que está a trabalhar relaciona-se com a reclassificação de doentes em resposta aos incentivos financeiros associados com os pagamentos por GDH. Um incentivo financeiro pode, de facto, levar a uma alteração da classificação atribuída previamente a um doente?

PPB — Pode. Quando os GDH foram introduzidos nos EUA há muitos anos criaram esse efeito de classificação que tem vindo a ser comentado. Acontece quando há dois GDH que estão muito próximos, por exemplo, pneumonias com complicações e pneumonias sem complicações. Se eu mexo nos incentivos financeiros e digo que duplico o preço que pago o GDH com complicações e mantenho constante o GDH sem complicações, a tentação que há é fazer a mudança. No nosso caso tem sido um pouco diferente porque desde a adopção dos GDH, na década de 80, a relação deles com o financiamento tem sido ténue. Sempre tivemos orçamentos globais, mas agora com os contratos-programa começa a haver uma aproximação a esta ideia de que aquilo que o hospital fizer reflecte-se de alguma forma no pagamento. Se o aumento do grau de complexidade dos actos do hospital levar a aumentar o preço dos casos mais complicados, então pode ter algum efeito, levando-os a fazerem essa classificação. Mas eu não acredito que seja uma situação em que o médico tenha um administrador ao lado a ver como são classificados os casos. Não funciona assim. Pode haver um ambiente geral de «em caso de dúvida, então faça-se assim». Porque é que isto sendo tão óbvio não é um problema que se diz que internamente se tem de trabalhar? Porque a partir do momento em que o orçamento passa a depender desses valores também é verdade que o hospital passa a ter cuidado com a forma como codifica. E às vezes o fazer bem pode implicar que se opte pelo GDH mais barato, porque assim ninguém chateia e se faltar dinheiro ele há-de vir de algum lado. Por isso, pode haver aqui dois efeitos.
Se se juntar isto ao facto de a população estar a envelhecer, então, pode ser mais complicado. Estão a aparecer patologias mais complicadas e existem efeitos naturais que podem levar a aumentar os casos complicados.

«TM»A propósito do Programa de Intervenção em Oftalmologia (PIO), António Travassos chegou mesmo a alertar para o facto de haver muita gente que estaria a ser operada sem necessidade. Corre-se esse risco, não é?

PPB — Sim, e com esses programas especiais ainda mais. Porque a existência desses programas especiais depende de um volume suficientemente grande de casos que o justifique. Daí claramente a tentação de passar a incluir pessoas que noutras situações não o seriam. Esses programas têm sempre esses riscos perversos. Inclusive, pode constituir um incentivo de passar a pôr gente em lista de espera que ainda não precisa. Não precisa mas um dia vai precisar. Portanto, fica já em lista de espera para depois voltar a haver um programa especial de recuperação das listas de espera. E isso são coisas perigosas.

«TM»E como evitar que isso aconteça?

PPB — A única maneira de o fazer é alterando a filosofia. Em vez de tentar resolver o problema das listas de espera atirando dinheiro para cima das listas de espera, o melhor é fazer como estava a ser feito com o SIGIC, que é organizar melhor e fazer passar as pessoas que estão a mais num lado para o sítio onde haja capacidade para as tratar. Acho que o argumento para criar o PIO foi simplesmente um argumento político, por ter havido dois ou três casos de alta visibilidade de autarcas que fizeram pressão pública levando as pessoas a algum lado. E isso criou pressão política para fazer a alteração. Porque não há nada que me diga que a capacidade instalada de oftalmologistas não conseguia resolver a lista de espera. Se há uma situação que não se consegue resolver e está a ficar em lista de espera, é porque a eficiência de um funcionamento regular não está a ocorrer. E tem é de se perceber porque é que não está.

«TM»Recentemente, foi lançado o Programa de Tratamento Cirúrgico da Obesidade. Acha que a sua criação pode ter sido também por motivos políticos?

PPB
— Todas essas decisões têm uma grande componente política. Mas eu, como economista e tendo em conta aquilo que li, não consigo saber se a obesidade é um dos problemas mais sérios do País para resolver com programa especial. Agora se o Ministério acha que deve fazê-lo por qualquer outra razão… é para isso que eles lá estão a decidir. Mas há que pensar se o que é gasto nesse programa não seria mais bem utilizado noutras aplicações. É desta forma que temos de pensar e isso não foi dito.

Formar internos compensa

«TM»Outro tema que também está a estudar diz respeito ao custo do internato médico, tendo em conta que os internos desenvolvem actividade remunerada a preço mais baixo. Há quem critique o facto de os privados irem buscar os médicos depois de estes se formarem à custa do erário público. Porém, também há quem, do lado dos privados, argumente que os internos são tratados como mão-de-obra barata e que se formam à sua própria custa. O que é que demonstra o estudo que está a fazer?

PPB
— O estudo começou há uns anos quando havia a discussão sobre se os hospitais deviam ser compensados por terem internos, pois todos diziam que deviam ser compensados. E a Secretaria-Geral [do Ministério da Saúde] pediu-nos para tentarmos perceber qual a verdade que existia nisso. A lógica imediata é dizer que os hospitais que têm internos gastam mais recursos, porque os internos têm de ser acompanhados por tutores que gastam tempo na sua formação. Assim, estes hospitais estão a consumir mais recursos além do salário que pagam aos internos. Mas o que eu tenho de saber é qual é o valor desses elementos adicionais. Se é verdade que esses internos implicam mais recursos, por outro lado também é verdade que contribuem para a actividade do hospital e são pagos a um preço mais baixo do que seria se aquela actividade fosse assegurada por médicos já formados. Eu não chamaria trabalho escravo, mas é um trabalho mais barato que o outro. Faz parte do treino, é verdade, mas também contribui [para a produção do hospital]. Havendo argumentos contra e a favor, isto só se resolve olhando para os números. Mas não se pode olhar para cada interno e ver o que cada um gastou ou não, porque isso pode diferir muito entre hospitais e especialidades. Temos antes de ver qual é a regularidade estatística que conseguimos encontrar. Será que os hospitais que têm internos tendem em geral a ter mais custos? Foi isso que fomos ver e concluímos que além do salário que recebem, o que gastam em treino, em termos de tempo e de recursos, acabam por compensar em trabalho.
Depois fizemos algumas entrevistas não muito estruturadas a alguns internos que corroboraram esta visão estatística. Encontrámos uma diversidade enorme de funcionamento do internato, incluindo casos de perfeita escravatura em que o interno falava cinco minutos por dia ao telefone com o tutor e fazia todo o trabalho que este tinha de fazer. Mas também havia outros sítios onde os internos tinham reuniões semanais para discutir artigos científicos com os tutores e estes acompanhavam proximamente o que se passava.

«TM»Pode dizer-nos onde foram encontradas as situações mais irregulares?

PPB — As entrevistas foram feitas com garantia de total anonimato. Perguntámos basicamente como é que os internos ocupavam as horas semanais e a partir daí tirávamos as nossas conclusões. Não há um padrão. Depende muito do serviço e da pessoa que está à frente.

Público vs. Privado

«TM»Como contribuintes devemos ficar chocados com a saída de médicos, formados no público, para o privado?

PPB — Por princípio devemos ficar tão chocados como quando os pilotos se formam na Força Aérea e saem para a TAP ou quando as pessoas se formam nas universidades públicas a pagar um terço do custo da sua formação e depois vão trabalhar para todo o sector privado. Mas aqui a questão que se coloca é se é desejável que aconteça [saída de médicos para o privado] ou não. Portanto, o princípio já nós aceitámos e não percebo porque é que para os médios tenha de ser diferente. Do ponto de vista das instituições, creio que faria todo o sentido os hospitais passarem a reter os seus internos. Julgo que eles gostariam de o fazer, mas cabe à política de gestão de cada hospital criar o ambiente, os incentivos, as remunerações. Muitas vezes, estes jovens médicos não vão atrás das remunerações mas antes atrás da ideia de trabalho. Ainda têm algum idealismo. Mas não vejo que deva haver uma proibição no sentido de os impedir de sair. Curiosamente, alguns comentários de que tenho tido conhecimento vão mais no sentido da concorrência entre público e público: EPE a roubar a EPE.

Falta de médicos e novos cursos

«TM»Numa entrevista que deu há tempos disse que estava preocupado, sim, mas com a falta de médicos. Nesse sentido, como vê a abertura destas novas licenciaturas?

PPB — Creio que é clara a fotografia: nós temos zonas do País mais protegidas que outras e temos áreas de intervenção mais protegidas que outras. Sabe-se, por exemplo, que em Medicina Geral e Familiar [MGF] vai haver um número de pessoas que se vão reformar a determinado momento e isso preocupa-me. Como se vai resolver a falta? Formar mais médicos apenas para formar mais médicos, se não houver o direccionamento de alguns deles para estas áreas menos cobertas, não vai adiantar. Abrir cursos de Medicina não me parece mal, mas é preciso que, de alguma forma, haja o acompanhamento para que as pessoas optem naturalmente pela MGF e não ter de as forçar, porque senão não funciona.
Mas algumas das reacções contra a abertura de mais cursos tem sido curiosamente apenas do estilo totalmente corporativista, o que gerou o problema que temos hoje. Eu compreendo que as organizações médicas do sector queiram defender os seus associados dizendo que não é preciso mais médicos porque senão estes vão ficar sem trabalho no futuro. Do ponto de vista da sociedade, não me parece nada razoável que seja uma organização profissional a dizer quantos são precisos ou a dizer que tem de se limitar o acesso das pessoas a uma profissão, mesmo sabendo que possa haver desemprego na área. Isso não faz sentido porque o que tem de acontecer é que as pessoas têm de saber que se houver desemprego têm de encontrar soluções alternativas. E os médicos não têm de estar todos no sector público, também há muitos médicos noutras áreas, como na Indústria Farmacêutica, por exemplo. Não tem de se ter esse paternalismo atroz… até porque nem temos garantias de que os que entram são os melhores médicos. Os professores das faculdades de Medicina muitas vezes dizem-nos que os que têm as melhores médias não são os mais aptos para serem médicos.

Medicina Interna

«TM»Que reacções provocou o estudo que fez para a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, segundo a qual os hospitais que aumentassem em 1% o número de internistas poderiam ter poupanças na ordem dos 11%?

PPB — Foi um estudo muito curioso de fazer e partia de um princípio muito simples: a Medicina Interna está mais ou menos a desaparecer como especialidade nos hospitais. E sobretudo estão sempre a dizer aos internistas que são mais caros do que os especialistas de outras especialidades. Mas os internistas dizem que não sentem isso «porque depois quando as outras especialidades têm complicações e duas patologias em problemas chutam-nos para aqui». Portanto, o desafio foi tentar perceber se controlando a complexidade dos casos eles eram de facto mais caros ou não. Acho que, sobretudo, foi dado aos internistas um argumento para o seu amor-próprio, pela especialidade que têm. É uma especialidade complicada. É quase como se de certa forma eles ficassem com o osso e os outros com o lombo. Ser isso tudo e ainda por cima ouvir os outros dizer que são aqueles que fazem com que os resultados dos hospitais sejam maus é difícil. Por isso, acho que o estudo ajudou-os a voltarem a situar-se em termos profissionais, a concluírem que estão a dar um contributo válido.

Andreia Vieira, Tempo Medicina 15.10.09

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