domingo, abril 11, 2010

Valença ainda é Portugal,

Por supuesto
O interior do baluarte defensivo que, durante séculos, resistiu aos ataques espanhóis foi invadido pela bandeira do país vizinho. O encerramento da urgência nocturna justifica a simbólica rendição da cidade, mas a economia também ajuda a explicá-la.

Quando se entra em Portugal pela velha ponte rodoferroviária que liga Tui a Valença, vê-se, do lado direito, uma pequena construção caiada de branco em cujas paredes se lê, escrito em português, um dos slogans dos independentistas galegos: “Galiza não é Espanha.” Valença, por maioria de razão, também não o é. Mas parece. E não é só por causa da bandeira espanhola hasteada um pouco por todo o lado, transformada esta semana em símbolo do protesto contra o encerramento da urgência nocturna do centro de saúde local.
Quando, em 1217, recebeu foral de D. Sancho I, Valença ainda se chamava Contrasta. Quase 800 anos depois, as bandeiras rubro amarelas invadindo a cidade, particularmente as ruas comerciais no interior das muralhas do baluarte defensivo, contrastam de modo bastante óbvio com uma história de resistência à invasão vinda do outro lado do rio Minho; os brasões de granito nas fachadas contrastam com o escudo heráldico do reino dos Bourbon, estampado na rojigualda, a bandeira nacional de Espanha.
Valença caiu, por exemplo, em 1654, mas foi preciso lutar por ela e o conde de Castelo Melhor chegou pouco depois para recuperar a praça-forte para a coroa portuguesa. E também o exército napoleónico teve que combater para, em 1809, penetrar a espantosa muralha do baluarte. Agora, porém, quem chegue de fora e não conheça os motivos do inusitado espanholismo poderá ser levado a pensar que os valencianos se tornaram adeptos da anexação pelo vizinho. Quererão ser espanhóis?
“Isso é um bocado!...”, ofende-se Paula Seixas, atrás do balcão do Café Esplanada. “Somos portugueses, mas temos de lutar pelo que é nosso. As pessoas estranham, sim, mas perguntam e nós explicamos que é um agradecimento por causa do centro de saúde, pela ajuda que o alcaide de Tui nos deu”, justifica-se Maria da Conceição Guerreiro, à porta de uma das várias lojas do centro histórico que têm os vizinhos galegos como principais clientes. “Ainda sou português e patriota. Tenho muito orgulho no meu país. Não tenho é orgulho nos meus governantes”, reforça Serafim Silva, 47 anos, comerciante num dos poucos edifícios da Rua de Mousinho de Albuquerque que ainda ostentam uma bandeira portuguesa (o outro é o Solar do Bacalhau, em cuja fachada se vê uma verde-rubra e duas bandeiras espanholas).
Nesta rua comercial do interior da fortaleza, o estandarte espanhol está por toda a parte e os turistas que por lá passam chegam a querer comprar as bandeiras. Alguns comerciantes acabam por fazer negócio, outros reagem de modo diferente: “É nossa, não vendemos”, diz uma rapariga agitando a bandeira. O fenómeno começou por ser notícia em Portugal e a meio da semana chegaram os jornalistas espanhóis, que nem sequer têm dificuldade em encontrar entrevistados que se expressem em castelhano.
Há, em Valença, espanhóis por toda a parte, cercando a estátua do valenciano S. Teotónio, o “primeiro santo português, 1082-1162”. Nas ruas comerciais do centro histórico, os produtos à porta das lojas estão etiquetados em castelhano. Vendem-se, pois, sabanas, toallas playa, manteles, paraguas plegables, chandales, bollos bacalao, bayetas, vaqueros, panuelos... E é mais fácil encontrar camisolas com o nome dos craques do Real Madrid do que equipamentos do Benfica. Nos telemóveis, as redes portuguesas são frequentemente substituídas por operadores do outro lado do Minho. Ficamos em roaming dentro do nosso país.
Fora do centro, na feira semanal das quartas-feiras, a invasão é ainda mais evidente: sob os oleados, as carrinhas dos feirantes têm todas matrículas portuguesas, mas, a toda a volta, os lugares de estacionamento estão quase totalmente ocupados por carros espanhóis. À entrada, sacode-se ao vento uma bandeira de cada nação. “Valença trabalha 80 por cento para os espanhóis”, confirma Paula Seixas. Serafim Silva considera, aliás, que o protesto das bandeiras seria impensável há 50 anos, antes da “globalização” a que a entrada na União Europeia e o desaparecimento da fronteira abriu as portas.
“Vivemos hoje irmanados, somos uma euro-região. Valença vive essencialmente com a Galiza, temos mercados complementares. Há coisas que convém mais comprar aqui, outras que fica mais barato comprar do lado de lá”, resume Joaquim Covas, presidente da União Empresarial do Vale do Minho, cuja sede está precisamente instalada no edifício do antigo posto fronteiriço português. Como que a confirmar as intensas relações comerciais e sociais que hoje existem entre as duas margens do Minho, vêem-se, à hora de almoço, pessoas que vêm de Tui atravessando a pé a velha ponte de ferro. Algumas trazem sacos de um supermercado espanhol. Já os automóveis passam pelo posto de abastecimento da Galp da Avenida de Espanha e vão abastecer-se do outro lado do rio, onde a gasolina custa menos trinta cêntimos.
“Há muitas empresas industriais espanholas e multinacionais que se deslocalizaram para este lado e hoje já há mais galegos a trabalhar do lado de cá do que o contrário, por causa da crise em Espanha”, diz Joaquim Covas, que recorda ainda que Valença é a principal entrada rodoviária turística do país. “Mas também há muitos portugueses a trabalhar em fábricas no Porriño, já que os salários são maiores”, contrapõe Paula Seixas.
“Oitenta por cento dos nossos turistas são espanhóis”, enumera Covas. “A maioria dos clientes são espanhóis, são milhares de pessoas”, acrescenta Maria da Conceição Guerreiro, que também recorda que há médicos do país vizinho a trabalhar desde há muito no centro de saúde que agora está no centro do protesto. “O alcaide de Tui apoia-nos muito, acolhe-nos e trata-nos como pessoas humanas que somos. Também já deu uma auto-escada aos bombeiros de Valença, que são os primeiros a ser chamados quando há fogo do lado de lá”, conta esta comerciante.
Por cima da cabeça de Maria da Conceição Guerreiro, sobre a loja de artigos de têxtil-lar, género que parece atrair particularmente os visitantes espanhóis, la rojigualda está hasteada, soprada pelos ventos que, mesmo quando vêm de Espanha, já não são tão funestos como noutros tempos. Se se exceptuar a língua que se fala em casa, já não parece fazer muita diferença, hoje, morar de um lado ou do outro da fronteira, de tal forma a vida de Valença e Tui parecem enlaçadas, interdependentes. “Mas, por muito que se agradeça a simpatia que têm, não devemos perder a nossa identidade. Não devemos deturpar as coisas”, diz o presidente da União Empresarial do Vale do Minho, que não parece apreciar particularmente a invasão das bandeiras espanholas. “Estive ontem em Lisboa e as pessoas comentavam o caso. Fiquei envergonhado”, confessou ao PÚBLICO. “As pessoas na raia, que aqui nasceram e que aqui vivem, são cada vez mais aguerridas no seu patriotismo. Temos orgulho na nossa nacionalidade. Os galegos ajudam-nos agora, mas nós também os ajudámos durante a Guerra Civil espanhola”, diz. “As pessoas”, conclui, “estão revoltadas e fazem isto para ferir a susceptibilidade dos governantes.”

Núcleo urbano tem apenas 3500 habitantes
“Estamos pior do que uma aldeia”

“Puseram-nos a cidade, mas estamos pior do que uma aldeia.” Rosa Domingues detém-se para conversar enquanto o PÚBLICO fala com a comerciante Maria da Conceição Guerreiro e expressa, outra vez, um sentimento cada vez mais comum entre aqueles que contestam o encerramento da urgência nocturna no centro de saúde da raia minhota. Valença é cidade desde Junho do ano passado, mas o novo estatuto não parece ter contribuído para aumentar a auto-estima da comunidade. “Cidade para quê? Para termos que ir para uma vila [Monção] se precisarmos de ir à urgência?”, pergunta Maria da Conceição Guerreiro. Paula Seixas concorda: “Não vejo porque se passou Valença a cidade, há outras vilas com mais interesse.”
Com mais de catorze mil habitantes, o concelho de Valença não é muito menor do que o vizinho concelho de Tui, que tem cerca de 17 mil residentes. Tui consegue, ainda assim, manter um centro de saúde com atendimento permanente, ao que talvez não seja estranho o facto de o seu funcionamento ser assegurado, desde a aprovação da Lei Geral da Saúde de 1986, pelo governo autonómico galego e não pelo Estado espanhol.

Importância histórica
O núcleo urbano de Valença tem apenas 3500 habitantes, mas, apesar disso, o decreto-lei que ditou a sua elevação a cidade valorizou o facto de ser o segundo núcleo urbano com mais população do distrito de Viana do Castelo, ao que se somam a importância histórica e patrimonial, os vários equipamentos e serviços públicos existentes, as acessibilidades e a forte dinâmica empresarial recente.
A Lei n.º 1182, de 2 de Julho, estabelece que, salvo quando há “importantes razões de natureza histórica, cultural e arquitectónica”, uma povoação só pode ser elevada a cidade se tiver mais de oito mil eleitores, em aglomerado populacional contínuo, e um conjunto de equipamentos colectivos, como farmácias, corporação de bombeiros, casa de espectáculos e centro cultural, museu e biblioteca, instalações de hotelaria, estabelecimentos de ensino dos vários ciclos, transporte público e parques ou jardins públicos. No topo da lista dos critérios está, curiosamente, a existência de “instalações hospitalares com serviço de permanência”, as quais acabam de ser encerradas.
Quando, há um ano, foi chamada a pronunciar-se sobre a elevação a cidade, por proposta do CDS, a Câmara Municipal de Valença deu parecer positivo, mas, na acta respectiva, nota-se o pouco entusiasmo dos autarcas. “Nada impede que se emita o parecer favorável, uma vez que a elevação da vila de Valença a cidade nada traz de prejudicial”, disse o então presidente da autarquia, José Luís Rodrigues.

Jorge Marmelo (texto) e Adriano Miranda (fotos) ; JP 11.04.10

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