domingo, abril 18, 2010

300 mil

não querem médico de família

Utentes com subsistemas e seguros de saúde só vão ao clínico geral para pedir baixas e vacinas. Um terço dos inscritos nunca recorre ao centro de saúde

A promessa tem sido feita por todos os governos: dar um médico de família a cada português. Até agora, a bandeira eleitoral nunca foi concretizada e os dados mais recentes do Ministério da Saúde apontam para meio milhão de pessoas sem clínico atribuído.
Ainda assim, há quem tenha prescindido expressamente desse direito. No total, perto de 300 mil utentes declararam não querer assistência personalizada nos centros de saúde. Inscrevem-se, mas dispensam ter um médico fixo. O número foi revelado ao Expresso pelo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Manuel Pizarro, que explicou tratar-se de beneficiários de subsistemas e seguros privados de saúde. Ou seja, pessoas que não costumam recorrer às unidades públicas de Cuidados Primários ou que o fazem apenas para pedir baixa médica, credenciais para exames comparticipados pelo Estado ou vacinas. “São pessoas que não querem personalizar a assistência no centro de saúde porque só lá vão pedir papéis e pode até ser conveniente ir a médicos diferentes”, justifica o coordenador da Missão de Cuidados de Saúde Primários, Luís Pisco. A directora clínica do Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Central, Leonor Lima das Neves, confirma. “Há colegas que se queixam dos utentes que são seguidos no privado e que chegam ao centro de saúde só para pedir baixa ou a credencial para um exame. Muitas vezes temos de lhes explicar que também somos médicos e que não estamos ali só para passar papéis”.
E a dimensão real de utentes que poderiam abdicar do médico de família pode ser muito maior: basta pensar que há dois milhões de portugueses titulares de seguros de saúde e mais 1,2 milhões com subsistemas (ADSE, SAMS, ADM...) . No entanto, são raras as unidades de saúde que, no momento da inscrição, perguntam se a pessoa quer que lhe seja designado um clínico e a maioria nem sabe que esta opção existe.
Na prática, muitos médicos têm as listas cheias de utentes que nunca viram. “Sabe-se que um terço dos inscritos não vai ao centro de saúde”, diz o coordenador da Missão de Cuidados de Saúde Primários, Luís Pisco. Em algumas zonas do país, caso do centro de Lisboa, o número é ainda maior: “Por ano, em média, 40% a 50% da população inscrita não recorre aos serviços”, sublinha Leonor Lima das Neves. O fenómeno é ainda mais paradoxal quando se sabe que há filas de inscritos à espera de vaga. Em algumas unidades, como no Centro de Saúde de Santo Condestável (ver texto ao lado), mais de metade da população abrangida não tem médico de família.

Uma correcta distribuição poderia ser suficiente ou, pelo menos, constituir um forte impulso para a concretização da gasta promessa eleitoral. As Unidades de Saúde Familiar (USF) são a ‘jóia’ dos Cuidados Primários e já começaram a fazê-lo. Para isso, estão a ser retirados das listas de doentes de cada clínico geral todos os que não foram a uma consulta nos últimos três anos. “Com o expurgo dos ficheiros será possível dar um médico de família a cada português. Na USF Marginal (em Cascais) já retirámos das listas cerca de 10% do total de utentes”, explica o clínico André Biscaia.
O método está a ser aplicado noutras USF. “Colocamos os doentes que não aparecem há três anos numa ‘caixa’. Não os prejudica e permite aumentar a lista de doentes activos por médico de família. Em casa onde não há pão é preciso gerir melhor”, diz o presidente do Conselho Clínico do Agrupamento de Centros de Saúde de Oeiras, Carlos Canhota. Segundo o director do agrupamento, Vítor Cardoso, os ausentes são, pelo menos, 15%.

Além dos não utilizadores ou utentes esporádicos, há muitos outros nomes que também vão ser ‘riscados’ dos Cuidados Primários. “Actualmente, estão inscritos em centros de saúde 10,2 milhões de pessoas, quando a população no Continente é de 10,1. A última ‘limpeza’ foi feita entre Dezembro e Fevereiro deste ano e retirou 260 mil utentes com inscrições em mais do que um centro de saúde. Destes, 125 mil foram detectados na Região de Lisboa e Vale do Tejo e 28 mil só na capital”, revela o secretário de Estado. Segundo Manuel Pizarro, foi ainda feita uma limpeza nos ficheiros para retirar os inscritos já falecidos: 49 mil no total.

Registo de utentes

Estes são alguns dos passos para pôr em marcha o Registo Nacional de Utentes — que só permitirá uma inscrição por pessoa e deverá estar activo no final do ano. Nessa altura, o país ficará a saber pela primeira vez o número real de utentes a quem ainda falta atribuir médico de família. A questão está cada vez mais na ordem do dia com a recente corrida às reformas antecipadas por muitos especialistas, sobretudo de Medicina Geral e Familiar.

De acordo com o ministério, foram entregues desde Janeiro 500 pedidos de aposentação, 350 a 400 dos quais de clínicos gerais. Número que acresce aos 150 a 200 médicos de família que se reformam todos os anos. Há mais médicos a especializarem-se (ver quadro), mas a eventual ruptura de serviços não está excluída. Para o evitar, foi criado um regime excepcional para manter em funções os especialistas que só querem sair do SNS por receio de penalizações nas reformas.
“A solução final não está terminada, mas não será permitido contratar médicos recém-reformados fora do regime de excepção. Iremos pedir inspecções sempre que necessário”, alerta Manuel Pizarro. Em causa está a prática de contratar aposentados “à tarefa” com remunerações muito acima da tabela. Só entre Janeiro e Setembro de 2009, o Estado gastou €34 milhões com tarefeiros, mais €20 milhões do que em 2008.
Para já, nenhum dos pedidos de reforma antecipada foi ainda aceite. A avaliação demora, em média, três a quatro meses.

Três perguntas a Luís Pisco

A reforma antecipada de 350 a 400 médicos de família pode ameaçar a reforma em curso nos Cuidados Primários?
Acho que os pedidos de aposentação não vão ser tantos como se diz. Além disso, daqui a cinco anos não vai existir falta de médicos de família porque vão sair muitos médicos das universidades.

Mas, para já, continuam a existir entre 400 mil a 600 mil pessoas sem médico de família.
Os números são especulativos, devido à falta de um registo único no SNS. O problema maior está nas grandes cidades, porque muitos utentes estão inscritos no centro de saúde da área de residência e do local de trabalho.

As Unidades de Saúde Familiar são a excepção: todos os inscritos têm médico de família atribuído.
As USF conseguem ter uma cobertura superior porque chamam as pessoas. Há um trabalho intenso de todos os elementos. Temos 240 USF com três milhões de utentes e todos continuam a dizer bem — portanto este é o caminho a seguir.

Vera Lúcia Arreigoso, Joana Pereira Bastos e Cristina Bernardo Silva , semanário expresso 17.04.10

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