quinta-feira, agosto 14, 2008

Paulo Mendo, entrevista


Categórico na oposição às Parcerias Público Privadas (PPP) e defensor de um serviço público de qualidade, das carreiras médicas e da criação de um orçamento próprio para a Saúde, capaz de fazer face à despesa, mas ajustado à capacidade económica dos contribuintes.

GH: Recentemente o OPSS criticou o Estado dizendo que este financia o sector privado, não investindo, por falta de recursos, no serviço público. Concorda com esta análise?
Paulo Mendo (PM): Concordo em parte. Desde o fim do Ministério de Maria de Belém que se assiste a uma viragem da política de Saúde deste país, caracterizada pela convicção de que uma nova política administrativa, que reorganize os órgãos centrais e que mude a gestão pública dos hospitais para gestão privada, controlada e dirigida pelo Estado, será a garantia da eficácia e sustentabilidade económica do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A reivindicação antiga e de largo consenso de que a administração pública na saúde e nomeadamente nos hospitais, devia dispor de mecanismos idênticos aos da administração privada, mas mantendo-se como serviço de Estado , com os valores e normas que definem a função pública, foi substituído por uma falsa privatização do serviço público.
O resultado, embora seja afirmado que é em defesa do SNS, está a gerar uma mega empresa burocrática sem alma, que os profissionais abandonam, centrada na gestão orçamental, na centralidade das decisões, na falsa autonomia das gestões institucionais, no contrato individual de trabalho e no fim das carreiras e dos acessos por concurso.
Esta destruição do SNS não tem sido feita por falta de recursos, mas por programa assumido. Disso, decorre naturalmente que quem progride, sem culpa, é o sector privado.

GH: O Governo anunciou, em Março passado, o fim das Parcerias Público Privadas para a administração de hospitais públicos. O que pensa desta decisão? Os hospitais EPE são a solução para o SNS?
PM: Sempre me opus às chamadas PPP que são, quanto a mim, a forma mais grosseira de misturar, em promiscuidade total, os sectores público e privado, com perda completa de capacidade de controlo e avaliação do sector público sobre o privado, sem possibilidade de exigência de qualidade como cliente e ainda por cima amarrado a custos incontroláveis.
O abandono, inopinado e não esperado, das PPP pelo governo não foi suficientemente explicado. Por isso, se estou de acordo com o abandono das parcerias, não sei se estarei de acordo com as razões que levaram o governo a denunciá-las.
A solução, naturalmente, não é os hospitais EPE, nem os hospitais SA. Os Hospitais de Estado são hospitais públicos que devem ter uma forma própria de gestão, centrada no desenvolvimento da autonomia dos serviços clínicos dotados de capacidade de planeamento, programação e concorrência externa, como terão que ser os hospitais deste século.

GH: O que é preciso para criar esses hospitais?
PM: Só a dignidade das carreiras profissionais, de concursos temidos e exigentes no acesso e ingresso nos quadros do Estado, a boa qualidade do funcionamento dos serviços, a capacidade e excelência na formação de profissionais, pode tornar o SNS um foco de atracção profissional e não de abandono, como sucede actualmente, e pode fazer do SNS o órgão central dominante do sistema de saúde.

GH: Apesar das criticas ao SNS, este representa, na sua opinião, a”jóia da coroa” da nossa democracia. Porém, não é essa a percepção da população portuguesa. O que está errado?
PM
: O SNS é um dos “programas” de maior sucesso da nossa democracia. Nascendo numa altura em que Portugal tinha índices sanitários só comparáveis aos dos países do terceiro mundo, o SNS conseguiu em menos de trinta anos colocar Portugal no pequeno pelotão dos países com melhores serviços e melhores indicadores de saúde, a ponto de a OMS nos ter atribuído o 12.º lugar no ranking mundial dos serviços de saúde. E isso é não só sentido como expresso sempre que uma opinião é pedida àqueles que conhecem o SNS como clientes ou familiares de quem já utilizou os serviços.
O hábito nacional de apoucar as qualidades nacionais, atitude muito incentivada, direi mesmo procurada, pela comunicação social, leva a que inquéritos feitos ao conjunto da população mostrem resultados bem piores do que aqueles feitos a quem é ou foi utilizador. Aliás, os movimentos populares a que temos assistido, a propósito do fecho de maternidades e urgências, mostra bem a ligação desejada pelas populações que não querem diferente, querem melhor.

GH: A sustentabilidade do SNS tem sido amplamente discutida. Na sua opinião, a grande questão deve situar-se sobretudo a que nível: no modelo de financiamento ou no modelo de gestão?
PM: Como tenho dito ao longo dos anos, o problema da sustentabilidade reside na forma de cálculo do financiamento do sistema. Temos que abandonar a inclusão da saúde no orçamento geral do Estado e criar um orçamento próprio que garanta a despesa prevista e para o qual os contribuintes paguem de forma variável de acordo com a sua capacidade económica. Evidentemente, é necessária uma moderna e rigorosa gestão, mas sabendo nós que Portugal tem a menor despesa per capita com a saúde dos países da OCDE – em média gastamos por habitante/ano menos 500 dólares que a média da OCDE – e que os nossos indicadores de saúde são semelhantes aos desses países, temos de concluir que não praticamos uma gestão folgada, que permita fazer poupanças que equilibrem o orçamento.
A necessidade, portanto, de um financiamento suficiente e socialmente justo é tarefa urgente.

GH: Como resolver a questão do financiamento da Saúde, preservando o acesso e a equidade, quando os custos deste sector são cada vez mais pesados?
PM: É certo que os custos com a saúde são crescentes e vão continuar a crescer.
E também é certo que a Saúde constitui uma das principais preocupações do cidadão das modernas sociedades, tendo-se tornado uma responsabilidade central da política dos modernos Estados. Historicamente, cabia ao Estado defender as fronteiras, os bens e a vida dos cidadãos dos ataques dos inimigos. Agora, cabe-lhes a responsabilidade de encontrar financiamentos, alicerçados na solidariedade dos cidadãos e na responsabilidade de cada um, para que serviços de saúde e de segurança social não sejam sub-financiados e se desenvolvam. Ninguém demonstrou que tal não é economicamente possível, como também ninguém demonstrou que não é um factor de enriquecimento.

GH: As administrações dos hospitais públicos têm sido fortemente pressionadas no sentido de controlar a despesa. Há razões para temer um declínio da qualidade?
PM: Uma coisa é o rigor das despesas, outra é o seu controlo.
Gestão é rigor, estratégia programada e despesas avaliadas, tendo em vista o desenvolvimento e a melhoria institucional. Se o controlo das despesas e a contenção orçamental passam a ser o objectivo central da gestão, não é perigo da perdas de qualidade que espreita, é, isso sim, a falência do programa político e a morte funcional da instituição.

GH: O que significa, na sua opinião, qualidade em saúde ?
PM:
Coisas muito simples que todos os cidadãos desejam e sabem enumerar: rapidez e delicadeza no atendimento, conforto nos serviços, rigor e segurança no diagnóstico e tratamento, equipamentos actualizados, prestígio público das equipas e, finalmente, resultados auditados e publicados.

GH: Tentou, enquanto ministro da Saúde, instituir uma política de humanização dos serviços de saúde, defendendo um atendimento irrepreensível, auditado pelos utentes. Porque valoriza tanto este aspecto no serviço de Saúde?
PM: Fiz mesmo do ano de 1995 o ano da delicadeza, com o apoio da secção europeia da OMS. Toda a política de saúde, o funcionamento institucional, o desempenho profissional se resume e se concentra numa ajuda a um ser humano, a um nosso semelhante ou a nós +próprios, em situação de angústia e de fragilidade.
É um crime ético e moral, um comportamento desprezível, tratar sem consideração merecida quem sofre e procura ajuda. A indelicadeza e grosseria de um profissional de saúde devem ser justa causa de despedimento e afastamento da clínica personalizada.

GH: A questão da gestão do risco na Medicina é cada vez mais premente. As queixas dos utentes justificam uma clínica cada vez mais defensiva? Como abordar o erro médico, quer internamente quer para o exterior ?
PM
: A medicina tem que ser defensiva para bem do doente e ofensiva muitas vezes, também para bem do doente. Este é um dilema bem real e tantas vezes trágico dos profissionais de saúde. Por isso, para ajuda nossa e dos doentes, é necessária uma cultura de defesa de direitos, de exigência de qualidade, mas de tolerância e de humildade em que pedagogos, filósofos, juristas, e seguradoras participem, para que a angústia e o medo de errar possam ser o mais possível partilhados e não impeçam a acção.

Curriculum Vitae
Paulo Mendo
nasceu em Lisboa em 1932. Licenciatura em Medicina pela Faculdade de Medicina do Porto. Especialização em Neurologia. Fundador e director do primeiro Serviço Português de Neuroradiologia no Hospital de Santo António, no Porto. Sócio honorário da Sociedade Europeia de Neuroradiologia. Director do Hospital de Santo António 1986 a 1993. Professor agregado convidado, regente de Radiologia da licenciatura de Medicina do HSA- IBCAS até 1988. Presidente do Conselho directivo do Instituto de Ciências Bio Médicas Abel Salazar (IBCAS), da Universidade do Porto de 1984-1988. Secretário de Estado da Saúde de 1976 a 1977 e de 1981 a 1983. Ministro da Saúde de 1993 a 1995. Académico de número da Academia de Medicina. Presidente da Liga dos Amigos do Hospital de Santo António.

GH n.º 37, entrevista de Edite Espadinha

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