terça-feira, julho 08, 2008

Colóquio «Regulação em Saúde»

Associação Portuguesa de Hospitalização Privada
Teófilo Ribeiro Leite
A regulação é «o controlo, objectivo e sustentado, exercido por uma agência pública, sobre actividades que são valorizadas socialmente». Philip Selznick
A emergência da regulação no sector da Saúde
Para além das utilities – indústrias com características de monopólio natural (incluindo os sectores da electricidade, água, transporte ferroviário, gás ou telecomunicações), que têm vindo a ser privatizados desde os anos 80 – o new public management (NPM) tem impulsionado reformas, como a regulação, também noutras áreas, como a saúde, um campo em que o intervencionismo público se mantém ainda intenso.
Trata-se, no fundo, de reinventar a administração pública de saúde, gerindo em função de resultados, e não de meios, fortalecendo a centralidade do cidadão e tornando as formas de actuação mais «empresariais» (menos burocráticas), combinando as vantagens dos mecanismos de mercado com a universalidade do sistema e a forte responsabilidade social do Estado.
Tem sido amplamente demonstrado que é a competição, um aspecto independente da questão da propriedade (pública ou privada), que favorece ganhos de eficiência, tanto no sector das utilities, como na saúde.
As especificidades da regulação no sector da Saúde
A influência deliberada do Estado, quer como facilitadora e incentivadora de certos comportamentos dos prestadores, quer como preventiva de processos e resultados indesejáveis, tem aqui um dupla perspectiva: a da regulação económica tout court (promotora da eficiência), e a da regulação social, ligada aos valores éticos.
No sector da saúde, ao contrário do das utilities, assumem particular importância os problemas de quality-shading, ou seja, de as entidades prestadoras diminuírem a qualidade do serviço face ao que existia anteriormente, no sentido de pouparem custos.
O consumo de cuidados de saúde tem também características singulares quando comparado com outros mercados, nomeadamente no que se refere à divergência entre o consumidor e o prestador e entre consumidor e pagador dos serviços. Noutros mercados é o consumidor que escolhe os produtos ou serviços que quer adquirir. No que respeita aos cuidados de saúde, o consumidor (doente), para além de não ter, em Portugal, liberdade para escolher a unidade de saúde em que quer ser tratado (pública, privada ou social), tem um papel ainda mais reduzido quando dessa consulta resulta a prescrição de tratamentos, exames, medicamentos ou simplesmente de novas consultas. A não existência de um Dossier Clínico Nacional amplia ainda o problema decorrente da inexistência do direito à liberdade de escolha do cidadão.
Estamos, assim, perante um dos muitos problemas de assimetria de informação que surgem no sector da saúde, ou seja, situações em que as várias partes envolvidas na relação não têm todas o mesmo nível de informação.
O mesmo tipo de problema aparece quando se analisam as formas de financiamento dos prestadores. Há duas formas extremas de financiamento que geram diferentes incentivos à eficiência: pagamento por reembolso e pagamento prospectivo.
O primeiro não dá ao hospital os incentivos certos à contenção de custos.
O segundo, apesar de contribuir para que os prestadores tenham os incentivos certos na procura de eficiência, não é imune ao aparecimento de outro tipo de distorções, nomeadamente em relação à diminuição da qualidade dos serviços prestados e ao que se denomina de selecção adversa, em que os casos de saúde mais complicados possam ser rejeitados por representarem para os hospitais custos acima da média, gerando-se assim graves problemas de acesso aos cuidados de saúde e colocando-se em causa a equidade no acesso e no tratamento.
Este mesmo tipo de problema de selecção adversa coloca-se em relação à eventual selecção de valências pelos hospitais, podendo estes deixar de apostar naqueles tipos de cuidados de saúde que se apresentem como sendo tipicamente mais onerosos.
As Parcerias Público-Privadas, que têm surgido nos últimos tempos e em que o Estado contrata com privados a prestação de alguns serviços que estavam tradicionalmente na esfera pública, contribuem para descentralizar estes vários papéis. Não obstante os ganhos de eficiência que daí podem advir, nestes contratos as várias partes acabam também por ter objectivos diferentes.
Neste domínio, nem tudo é ainda muito claro. O Estado pretende com as parcerias criar um mercado concorrencial, em que os agentes privados dão um contributo positivo e exemplar para a melhoria da tecnologia de gestão com forte impacto no aumento da eficiência e consequente redução do desperdício? Ou quer apenas colmatar um problema de falta de verbas para novos investimentos (a transferência de risco não é motivo porque os privados repercutirão no preço a pagar pelo Estado o valor desse risco)?
Também é de realçar o papel que a tecnologia desempenha no sector da saúde. A evolução tecnológica, que contribui para o aumento da qualidade dos cuidados de saúde, é apontada muitas vezes como responsável por uma grande fracção do aumento dos custos no sector da saúde, a par do aumento da procura de cuidados por parte da população. A introdução de novas tecnologias é mais um aspecto a ter em conta pelo regulador, ponderando os benefícios daí decorrentes e tendo especial atenção os problemas de equidade de acesso que se colocam quando estão em causa inovações.
Em simultâneo, emerge um problema mais grave, a própria sustentabilidade do SNS, visível nas medidas de encerramento de unidades, vislumbrando-se, a curto prazo, dificuldades de adopção de inovação e novas tecnologias no SNS. Os centros de excelência estão a deslocalizar-se do sector público para o sector privado.
Na Saúde: nada é como antes em Portugal e na Europa
A área da saúde está, todos os dias, a assistir a uma série de alterações no modo como o sistema está organizado, nomeadamente no campo dos prestadores de cuidados de saúde.
A empresarialização de hospitais públicos com o estatuto de sociedades anónimas (agora Entidades Públicas Empresariais), a construção e a gestão de novos hospitais do Serviço Nacional de Saúde por empresas privadas e a concessão da gestão de centros de saúde e hospitais a operadores privados, por si só, constituem mudanças estruturais de grandes proporções. Mas há muito mais, sobretudo no domínio da hospitalização privada portuguesa, que assiste hoje a uma verdadeira mudança de paradigma.
O financiamento de seguradoras e subsistemas de saúde – que representam já mais de 30% da população – fez emergir nos últimos anos um sector privado mais sofisticado, maduro e independente.
Procurando constituir-se como uma alternativa efectiva ao Serviço Nacional de Saúde, o número, a dimensão e a oferta específica dos projectos da hospitalização privada conduzem a uma mudança muito acelerada do panorama dos cuidados de saúde em Portugal, colocando no mercado:
— Cuidados de saúde numa perspectiva de integração/rede: o conjunto de investimentos em curso permitirá aumentar de forma muito relevante a competitividade do próprio sector do turismo nacional, induzindo a procura de cuidados de saúde nacionais por parte de doentes estrangeiros e o aumento da procura no “nicho” de mercado do turismo sénior de elevado valor acrescentado.
— Cuidados de saúde com elevados índices de sofisticação e complexidade (cuidados intensivos, cirurgias com tecnologias de ponta, cuidados de telemonitorização em ambulatório, etc.), susceptíveis de exigirem grande diferenciação ao nível das equipas de recursos humanos e de tecnologia. Ao disponibilizarem as tecnologias (recursos físicos e materiais), o que está já a acontecer no âmbito das novas unidades de saúde e dos novos projectos para concretização nos próximos dois anos, os agentes privados começaram também a recrutar os recursos humanos necessários para o efeito, até ao presente muito ligados ao SNS mas que, actualmente, fruto da reestruturação que a hospitalização pública se encontra a sofrer, começam a estar motivados para integrarem projectos privados que, além do mais, lhes começam a oferecer condições de trabalho comparáveis (ou até superiores) àquelas de que dispõem nos hospitais públicos.
— Condições para o tratamento de casos que até há pouco tempo apenas o podiam ser no sector público, permitindo à hospitalização privada afirmar-se cada vez mais pela qualidade global do serviço que presta.
A tendência mundial é para que a oposição ideológica que se interpõe entre os Estados e a iniciativa privada na Saúde se torne cada vez mais irrelevante. E até na tradicionalista Europa se assiste a verdadeiras “revoluções” dos sistemas de Saúde:
Reforma do sector da saúde na Holanda em 2006
Criação do seguro de saúde privado e de aquisição obrigatória, num ambiente de concorrência regulada e atribuindo ao cidadão maior responsabilidade pelas suas escolhas (cost awareness);
O Estado centra-se em questões essenciais de regulação: garantia do acesso, qualidade da prestação e garantias (nas coberturas, etc.).
Vaga de privatização de hospitais na Alemanha
Apesar de apresentar um posicionamento acima da média em matéria de resultados em saúde;
Em 2015, espera-se que 50% dos hospitais já estejam privatizados (actualmente, a fasquia situa-se nos 40%, incluindo um hospital universitário);
Essencialmente para assegurar a sustentabilidade económico-financeira do sistema a médio prazo e promover uma uniformização das práticas dos diferentes prestadores/profissionais.
Tendência para actuação em rede: em 2010, cerca de 80% dos hospitais actuarão desta forma (actualmente, cerca de 60% já o fazem).
A separação entre prestador e financiador tem um base histórica e a responsabilidade pelo sistema de saúde assenta principalmente, a nível regional, nos "Lander", havendo pequena intervenção do governo central. Os resultados alcançados são considerados bons, já que a prestação de cuidados é excelente e o nível de satisfação parece ser elevado (OCDE, 1992).
Reforma do National Health Service (NHS) do Reino Unido, considerado o paradigma do Serviço Nacional de Saúde, bem como do de outros países, em que os recursos provêm essencialmente de impostos:
-Introdução, em 2006, da possibilidade dos doentes escolherem entre 4 unidades de saúde – públicas ou privadas – para serem tratados
- Em 2008 – daqui a seis meses, portanto – a liberdade de escolha será total, incluindo a escolha do clínico geral (GP). — Recentes decisões do Tribunal Europeu de Justiça a favorecerem de forma inequívoca a mobilidade europeia dos doentes
- Reconhecimento do direito dos cidadãos poderem obter tratamento além fronteiras, concretizando o princípio da livre circulação de pessoas no espaço da União Europeia;
- A pressão sobre os Governos nacionais no sentido de assegurarem a possibilidade dos seus cidadãos procurarem tratamento noutros países-membros da União é um facto reconhecido e inexorável.
Num mercado cada vez mais globalizado e “Único”, a Europa caminha para um modelo comum de cuidados de saúde, assente na liberdade de escolha da unidade de saúde pelo cidadão, pelo que a vitalidade dos empresários nacionais do sector pode também contribuir para acelerar a criação de uma rede europeia de cuidados de saúde, que favoreça a mobilidade dos doentes e dos profissionais, bem como uma maior integração entre sistemas de saúde.
Por outro lado, como os sistemas europeus de saúde estão cada vez mais interligados, assistimos à crescente mobilidade dos cidadãos. Os recentes acórdãos do Tribunal Europeu de Justiça sobre a obrigação dos sistemas de saúde nacionais de suportarem os custos de tratamentos prestados noutro Estado-Membro, exigem uma resposta política coerente. Não será este um dos grandes desafios da regulação num futuro que é já hoje?
Os sistemas de saúde na Europa enfrentam, assim, grandes desafios comuns: envelhecimento da população, a livre circulação dos cidadãos no espaço comunitário, a necessidade cuidados de saúde cada vez mais eficientes mas também mais sofisticados, um maior nível de exigência por parte dos pacientes, que se tornaram verdadeiros consumidores de cuidados de saúde e “reivindicam”, por exemplo, com o recurso crescente aos seguros de saúde, a liberdade de escolha das unidades prestadoras de cuidados, indo ao encontro daquelas que são as legítimas expectativas da hospitalização privada.
Regulação, uma oportunidade de eficiência na Saúde
Neste contexto, impõe-se, não a necessidade de inspecção, mas de regulação forte, de todo o sistema de saúde. Uma regulação que enquadre devidamente a prestação privada, que cada vez mais se afirma e diferencia pela qualidade. Uma regulação moderna, que inclusive envolva o próprio prestador (self-regulation).
Embora seja um termo pouco usual entre nós, a regulação, do ponto de vista do seu significado, pode ser definida como o funcionamento correcto e equilibrado de um sistema complexo.
Apesar da pouca familiaridade, a regulação não é, de todo, algo inexistente no nosso país, já que alguns outros sectores de manifesta importância para o comum dos cidadãos, como sejam a banca (Banco de Portugal), os seguros (Instituto de Seguros de Portugal), os mercados bolsistas (CMVM), as comunicações (ANACOM – Autoridade Nacional das Comunicações), a comunicação social (a Alta Autoridade para a Comunicação Social e a ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação social), a energia (ERSE – Entidade Reguladora do Sector Energético) têm já autoridades/entidades que pugnam por essa circunstância.
Na Saúde, a publicação do Decreto-Lei n.º 309/2003, instituiu a Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Entendemos que a ERS deverá ter um espectro de actuação sobre todo o sistema de saúde e não limitar as suas competências à regulação dos prestadores não públicos.
Só dessa forma, a ERS alcançará a relação equilibrada entre entidades públicas, privadas e sociais, que é o seu objectivo natural. Só dessa forma, a ERS, com características de independência técnica e jurídica, relativamente ao próprio Governo, pode revelar-se um importante elemento estabilizador entre os interesses dos prestadores e dos utilizadores desses mesmos serviços.
Não podemos “cair” constantemente na falácia de que as entidades privadas na Saúde não têm em conta um equilíbrio entre propósitos de assistência sanitária e interesses económicos, já que muitos dos operadores privados são, inclusivamente, objecto de maior agrado, quanto aos serviços prestados, que as unidades públicas.
A APHP considera relevante uma regulação que assegure: a liberdade de escolha da unidade de saúde a nível Europeu (segunda etapa de um processo que em Portugal passa ainda por assegurar a liberdade de escolha a nível nacional), o acesso a iguais cuidados de saúde para todos, um elevado nível de qualidade da oferta de cuidados de saúde e a sustentabilidade financeira do sistema português de saúde, recorrendo a um modelo assente na separação clara entre o financiamento e a prestação.
Uma regulação fraca, tornando preferencial a prestação pública, não se afirma como alavanca de melhoria contínua.
Um instrumento privilegiado de que o Estado dispõe para promover a concorrência, indutora da qualidade, da inovação e da eficiência da prestação, é, como já se demonstrou, a política de financiamento e contratualização de cuidados, que, face à sua dimensão condicionará todo o sector.

A APHP visa a adopção de um modelo claro de regulação:
1.- Abrangente (que inclua todos os prestadores – públicos, privados e sociais)
2.- Forte (com capacidade e meios de actuação concreta)
3.- Independente (dos diversos players a operar no mercado)
4.- Eficiente (sem redundâncias e que permita reduzir significativamente a burocracia existente actualmente no relacionamento dos prestadores com os organismos do Estado)
Conclusão
Neste contexto, e citando um Associado da APHP, «uma coisa é certa: os operadores privados que apostam na qualidade e no compromisso com uma estratégia de longo prazo no sector só muito dificilmente não alcançarão o sucesso e o reconhecimento dos cidadãos. Resta saber que cidadãos terão acesso a esse modelo».
Será que continuaremos a ter os actuais constrangimentos, que inclusive diferenciam entre portugueses de primeira e portugueses de segunda?
Os de primeira, cerca de 20% da população — os abrangidos pela Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE), as forças militares, as forças militarizadas (GNR), PSP, os funcionários do Ministério da Justiça e do Ministério da Educação, bem como os beneficiários dos subsistemas de saúde afectos aos CTT, PT ou aos bancários — a quem é conferido o direito de cidadania, têm liberdade de escolha e não vão para as listas de espera.
Os restantes 80%, portugueses de segunda, esperam e desesperam para que lhes tratem da saúde.
Estes últimos esperam uma regulação que estabilize efectivamente os interesses dos prestadores e dos utilizadores/pacientes/utentes.
Nenhuma entidade o conseguirá, sem antes ser assegurada a liberdade de escolha do cidadão.
Teófilo Ribeiro Leite
Assembleia da República, 03 de Julho de 2007