sexta-feira, setembro 24, 2010

A revoada.

Há mais de vinte anos, ouvi um Director Geral duma grande empresa pública francesa referir que só uma ínfima parte dos seus colegas tinha ascendido ao cargo por razões políticas e que, por esse motivo, tais pessoas eram muito mal aceites pelos seus pares.
Há, efectivamente, nos altos quadros da Administração Pública Francesa, uma longa tradição de independência política. Existe aliás em França, desde 1945, uma escola nacional de administração – a ENA – que desempenha a missão de recrutar e formar parte da alta função pública do Estado. O concurso de ingresso é altamente selectivo e pode dizer-se que a ENA está reservada à elite dos licenciados franceses independentemente das suas opções políticas. Recordemos, como exemplo, que são diplomados pela ENA, Giscard d’Estaing, Chirac e Alain Juppé, mas também Rocard, e Laurent Fabius.
Em França, como noutros países europeus, distinguem-se dois níveis na Administração Pública: o nível político e o nível técnico. Ao primeiro desses níveis compete definir a missão e os objectivos da Administração Pública. Ao segundo cabe organizar e utilizar os meios, de forma a cumprir os objectivos com a maior eficácia e utilidade social.
As mudanças de Governo implicam mudanças no primeiro nível, mas não necessariamente no segundo.
Não é assim em Portugal. Quando muda o Governo não muda apenas o pessoal dos gabinetes governamentais. Mudam também os directores gerais e a sua corte, os presidentes e vogais dos institutos, os delegados regionais e os conselhos de administração de instituições com autonomia administrativa e financeira, muda afinal toda a estrutura técnica, que deixa de ser nomeada com base em critérios de competência e passa a ser admitida por critérios de “confiança política”.
Ora sucede que a lealdade a um Governo, eleito democraticamente, é um dever deontológico do funcionário público. Um dever inquestionável, cujo desrespeito deveria, pura e simplesmente, justificar a demissão de funções.
Sucede também que são alguns destes nomeados por “confiança política” quem, frequentemente, se afasta das políticas do Governo. Uns porque, portadores de projectos pessoais, estão exclusivamente interessados na sua realização, sem preocupação pela eficiente utilização dos meios. Outros porque, sendo gente de facção, guardam sobretudo lealdade ao grupo a que pertencem.
Nalguns casos, para justificar as mudanças, invoca-se a necessidade de pessoas com perfil adequado às novas políticas. Ironicamente, é exactamente o perfil dos novos agentes que torna mais difícil cumprir os objectivos do programa do governo.
Senão vejamos: a primeira prioridade deste Governo é “ sanear as finanças públicas, pôr ordem nas contas do Estado, reduzir as despesas correntes”.
Este objectivo não se alcança através de medidas de natureza administrativa e simples restrições orçamentais. O aumento de eficácia do sector público requer mudanças estruturais e a criação de mecanismos de regulação e controlo adequados a sistemas complexos. Para conceber e implementar as mudanças e criar esses mecanismos é necessário; ter capacidade para conceptualizar o todo e compreender as ligações entre as partes, possuir conhecimentos técnico-científicos e experiência prática, capacidade de trabalho e vontade de servir.

Considera o Governo, e tem razões para isso, que o crescimento exagerado do sector produtivo do Estado aconselha a adopção da lógica empresarial no sector público e a privatização das funções que o sector privado possa desempenhar com maior eficácia. Mas não se infira daí que o Estado vai diminuir a sua responsabilidade na economia; ao contrário, será necessário afinar, ainda mais, os processos de regulação e controlo, garantir a aplicação das regras do jogo, corrigir as assimetrias decorrentes da lógica de mercado, assumir os custos e riscos sociais decorrentes dum novo modelo de desenvolvimento, assegurar a protecção ambiental.
Nada disto se consegue por decreto. Nada disto se obtém com gente sem preparação técnica e experiência. Nada disto se alcança sem o envolvimento duma função pública motivada e competente.

No seu romance - A Revoada – Gabriel Garcia Márquez, leva-nos a visitar Macondo, uma aldeia ressentida, virada para o passado, invadida por uma revoada de arrivistas que se apodera dela, a suga e abandona depois à sua sorte.
Porque estranha razão, desde há alguns anos a esta parte, me lembro tanto da Revoada, quando penso na nossa Administração Pública?

Meneses Correia, administrador hospitalar

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