sábado, janeiro 24, 2009

Revisão das carreiras médicas

e as responsabilidades negociais

O actual processo negocial de revisão das carreiras médicas é, sem qualquer dúvida, o mais importante nestes últimos 20 anos e terá, seguramente, as correspondentes implicações laborais para um futuro temporal de idêntica duração.
Desde o difícil processo negocial, desenvolvido em 1989 e que deu origem ao actual diploma das carreiras médicas (Dec.-Lei 73/90), que os sindicatos médicos não estavam confrontados com a pesada responsabilidade de negociar um documento desta natureza global e com tão delicadas implicações para os vários aspectos do exercício da profissão médica.
Simultaneamente, importa ter bem presente que o actual contexto negocial possui uma complexidade muito acrescida, tendo em conta a nova legislação laboral da administração pública (Lei 12-A/2008 e Lei 59/2008).
De acordo com esta legislação, todas as matérias relativas às carreiras dos vários sectores profissionais foram inseridas no âmbito da contratação colectiva, atribuindo maiores responsabilidades às diferentes organizações sindicais.
Perante esta realidade objectiva e incontornável, os autores deste artigo, no âmbito das suas respectivas responsabilidades sindicais, decidiram divulgar uma declaração conjunta em 16/7/2008, onde reafirmaram a integral defesa das competências legais dos sindicatos médicos e iniciaram um processo de articulação e convergência entre as duas organizações sindicais com o claro propósito de assegurar com êxito a defesa dos legítimos interesses dos médicos, a salvaguarda e dignificação das carreiras médicas, bem como a defesa da qualidade assistencial do SNS.
Trata-se de uma inequívoca prova de maturidade sindical e uma demonstração de que em momentos cruciais, como este, os interesses fundamentais dos médicos deverão estar muito acima das naturais divergências ou polémicas circunstanciais.
Deste modo, não são susceptíveis de qualquer compreensão diversas situações já criadas de perturbação e cujo resultado prático só poderá traduzir-se em tentativas debilitadoras da força e capacidade negociais dos sindicatos médicos.
O enquadramento legal da negociação das carreiras é um dado objectivo, as competências e o âmbito legal da intervenção sindical estão claramente definidos e não podem ser admitidas quaisquer tentativas de invasão da esfera de acção das organizações sindicais médicas por parte de outras estruturas.
Qualquer leitura, mesmo apressada, do enquadramento legal das competências sindicais e do âmbito desta negociação permite verificar que a revisão das carreiras médicas é matéria da exclusiva responsabilidade sindical.
A leitura do Dec.-Lei 73/90 também permite verificar que, em 63 artigos e nos seus 174 pontos, somente o ponto 3 do artigo 3.º faz uma referência pontual à Ordem dos Médicos, relacionada com a formação permanente e as práticas funcionais.
Entretanto, a nova Lei 59/2008 veio até sindicalizar uma matéria que se poderia considerar na fronteira das atribuições da Ordem dos Médicos e dos sindicatos, como são os conteúdos funcionais das categorias, ao remetê-los para o âmbito da contratação colectiva.

Medidas gravosas

Foi neste contexto que os sindicatos médicos receberam, a 5/12/2008, com enorme surpresa, um projecto ministerial intitulado «Qualificação médica» com o objectivo de o inserir na revisão das carreiras médicas e onde estava expressamente referido que resultava da audição da Ordem dos Médicos.
O seu conteúdo está recheado de medidas gravosas, onde é definida, inclusive, a recertificação da profissão médica pela Ordem dos Médicos, com a entrega de todos os poderes a esta estrutura para atribuir discricionariamente os títulos profissionais que entender e com a própria liquidação da titulação única de especialista.
Igualmente surpreendente, mas em estreita articulação com este projecto ministerial, foi o anúncio da convocação de uma assembleia geral de médicos, durante o próximo Congresso Nacional de Medicina, para a «discussão final sobre as carreiras médicas, um sistema adequado aos diferentes regimes de trabalho actuais».
Como é amplamente sabido, qualquer sistema de carreiras só é possível de estabelecer através de negociações com as entidades empregadoras, sejam o Estado ou estruturas privadas, e implica sempre que a respectiva progressão nos seus patamares de diferenciação seja acompanhada da correspondente progressão salarial.
O propósito, anunciado em declarações públicas de alguns dirigentes da Ordem sobre o seu objectivo de criar carreiras próprias desta organização e sem qualquer implicação de carácter salarial, constitui uma iniciativa sem qualquer sustentação legal e de uma enorme gravidade para a adequada defesa dos interesses dos médicos.
Mesmo nas entidades privadas, a implementação de um sistema de carreiras médicas está na total dependência das negociações sindicais em torno de acordos de empresa, como já acontece com os SAMS (bancários) e o Hospital Amadora-Sintra.
Por outro lado, importa lembrar que, em 1988, por imposição das directivas comunitárias, foi proibida a realização do «internato voluntário» à Ordem, tendo em conta que passou a ser obrigatório que todo o processo formativo fosse objecto da correspondente e adequada remuneração.
Nesse sentido, nunca será possível a Ordem pretender atribuir graus próprios, dado que os graus culminam um processo formativo que não é pago pela Ordem aos médicos e, logo, não são susceptíveis de homologação legal.
Em todo este processo é curioso verificar que as competências sindicais foram erigidas por alguns dirigentes da Ordem dos Médicos como área prioritária das suas preocupações de intervenção, quando aquilo que são competências exclusivas desta organização continuam remetidas a um total desinteresse, caso concreto de uma matéria fulcral para o desempenho da profissão médica, como é a regulamentação do acto médico que persiste num total vazio desde há 18 anos.
Imaginemos qual não seria a reacção desses mesmos dirigentes da Ordem se os sindicatos médicos decidissem exigir a negociação com o Ministério da Saúde de um diploma do acto médico.
Assim, as decisões de convocar uma assembleia para discutir e aprovar um sistema próprio de carreiras e de continuarem a realizar-se reuniões entre a Ordem e o Ministério da Saúde para estabelecer um diploma de «qualificação médica», quando esta é uma matéria já amplamente legislada em decretos-leis e portarias, constituem iniciativas que só podem favorecer os desígnios do Poder político e prejudicar violentamente os interesses socioprofissionais dos médicos.

Carreiras virtuais

A realização de uma assembleia de médicos pela Ordem para discutir carreiras virtuais pode servir de promoção a alguém ou para propaganda institucional, mas não constituirá nenhum contributo para o êxito da negociação colectiva que os sindicatos estão a desenvolver, muito pelo contrário.
Entendemos que a importância decisiva deste processo negocial exige que cada organização médica respeite o âmbito das suas competências legais e não procure imiscuir-se em funções alheias, o que constituiria um suicidário factor perturbador que redundaria num desastroso processo de destruição integral da estruturação técnica da profissão e de arbitrariedade laboral e salarial.
Quando os sindicatos médicos estão a dar provas do seu sentido de responsabilidade, construindo um caminho, que nunca é fácil, para estabelecer plataformas de entendimento e convergência para melhor defenderem os ameaçados interesses dos médicos, é inaceitável e gravíssimo que alguém no seio da própria classe procure introduzir factores de diversão e de divisão num momento desta delicadeza para o futuro profissional da generalidade dos médicos, em particular dos sectores mais jovens e em início de actividade laboral.
Os sindicatos médicos saberão assumir, em toda a plenitude, as suas responsabilidades negociais perante os colegas e sujeitar-se à sua apreciação crítica quanto aos resultados que vierem a ser obtidos. O que estava fora das suas perspectivas era terem de se defrontar com iniciativas de boicote da sua intervenção negocial e reivindicativa dentro da própria classe.
Os médicos, no seu conjunto, saberão retirar as adequadas ilações do que está neste momento em jogo.
Carlos Arroz* e Mário Jorge Neves**
*Secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM)
**Presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam)

TEMPO MEDICINA, 26.01.09