domingo, novembro 30, 2008

Inês Guerreiro

“Há muita gente abandonada. A Rede também dá resposta às pessoas que vivem sós”

É madeirense e coordenadora da Unidade de Missão dos Cuidados Continuados Integrados. Nestes primeiros dois anos de trabalho, no terreno, já deixou perceber que tem garra e determinação e que não está disposta a deixar o trabalho a meio. Se vai conseguir, ou não, levar o barco ao seu destino é ainda cedo para dizer mas, seja como for, Inês Guerreiro tem a capacidade de entusiasmar os outros tanto quanto se entusiasma a si. E acredita que se muitos ambicionarem é possível concretizar o (quase) impossível. O trabalho feito, nestes anos, já fala por si. Agora é fazer as contas e ver como aumentar o número de camas; como ampliar os cuidados domiciliários; como resolver o problema dos recursos humanos e chegar a 2016 com a certeza de que a população portuguesa tem os cuidados continuados que merece.


Gestão HospitalarEstá há dois anos na coordenação da Unidade de Missão dos Cuidados Continuados Integrados (UMCCI). O balanço que faz dá-lhe vontade de continuar?
Inês Guerreiro – Ao longo destes dois primeiros anos de existência, a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) contribuiu para revelar necessidades, pensar novas respostas e criar soluções inovadoras. É hoje evidente que o trabalho realizado conseguiu a implementação da Rede, sendo um processo que não pode ser interrompido.
A RNCCI surgiu e confirmou-se como instrumento inequívoco para a obtenção de mais ganhos em saúde para os portugueses. Ela preencheu já a brecha existente no sistema de saúde e na rede de apoio social. O modelo que preconiza forçou a reorganização das estruturas, o diálogo e envolvimento de diversos parceiros bem como a criação de uma nova cultura do cuidar.
Mais do que tratar a doença, a RNCCI impôs-se pelos seus objectivos, introduzindo no discurso das instituições palavras-chave que demonstram a clareza da sua finalidade: reabilitação, promoção da a autonomia e reintegração.
O balanço da actividade da Rede, apurado até ao final do primeiro semestre de 2008, deu conta do enorme esforço de todos quantos trabalham neste projecto e evidenciou resultados claramente positivos.

GHTodos a conhecem por ser uma pessoa impulsiva, decidida e dedicada. A sua forma de ser tem sido importante para humanizar a REDE e as pessoas que estão ligadas ao conceito do que ela representa?
IG – Não me considero impulsiva. Recuso-me apenas a estar e a permanecer numa situação em que a premência da mudança nos obriga a agir sem mais hesitações, pois já tudo foi pensado, inventado e estudado.
Impulsividade é o contrário de persistência, determinação e rigor. Há 30 anos que pugno e faço por esta abordagem à pessoa doente e às suas necessidades, e que são bem mais vastas do que atender apenas à doença, (neste caso às doenças) do corpo, do espírito, “da algibeira” – que não compra sequer a subsistência quanto mais a qualidade de vida e o respeito pelo ser humano.
Há muita gente negligenciada e abandonada em casa, sem qualquer tipo de apoio e enquadramento familiar, por isso esta é também uma Rede que vem dar resposta às pessoas que vivem sós e que, como tal, podem configurar situações de maior exclusão e pobreza. Não só económica, mas também de relações e de participação no mundo.
Dar um contributo, quer para a diminuição da violência sobre os mais vulneráveis – um problema crescente para o qual a Comunicação Social tem chamado à atenção – quer para a concessão de maior igualdade de oportunidades às mulheres – que, sobretudo nas camadas sociais mais baixas muitas vezes deixam de trabalhar para cuidar dos seus familiares idosos e/ou dependentes – não é impulsividade: é mesmo revolta pela submissão dos portugueses!

GHHá muitos pedidos para a entrada de doentes na REDE, mas nem sempre há vagas. Esgotaram-se as possibilidades para ir mais longe neste domínio, ou a REDE está a funcionar tão bem que o que existe é já pouco?
IG – Não vejo nenhuma derrota, mas constato um grande constrangimento. É que nunca mais estamos em 2016 para garantirmos o nível de respostas que temos planeado.
Actualmente, o sucesso da Rede é evidenciado pelas elevadas expectativas que as pessoas já têm e, por vezes, existe dificuldade em aceitar que não é possível crescer e colocar no terreno, em apenas um ano, as repostas que noutros países levaram dez anos a conseguir. As expectativas foram criadas pela extrema dificuldade que o SNS, os doentes, as famílias e os Lares da Segurança Social têm de lidar com estes problemas.
Todos sabemos que não são problemas novos mas, sabemos também que a nova abordagem no âmbito da RNCCI provocou uma perfeita revolução nas práticas e na reorganização das políticas de saúde e de protecção social.
Louvo os profissionais que diariamente lidam com situações de alta tensão e louvo ainda mais os que connosco lutam diariamente para que Portugal possua serviços de saúde adequados às necessidades de uma população que mudou devagar, persistentemente e sem surpresas.

GHDepois de dois anos a tentar organizar um sector – dos Cuidados Continuados e Integrados – é altura de pensar no futuro. E agora, para onde quer ir? Em que domínios?
IG – O principal objectivo é continuar a plantar as sementes que permitam à Rede atingir, em 2016, os objectivos globais planeados. Para 2009 desejo que os decisores, os fazedores de opinião e todos os envolvidos no desenvolvimento da Rede, continuem com o mesmo entusiasmo e espírito de cooperação inter-institucional que têm assumido até aqui, sem receio de criticar abertamente, pois todas as opiniões são respeitadas e consideradas de forma séria para a melhoria contínua das nossas parcerias e boas práticas profissionais no âmbito dos cuidados continuados de Saúde e Apoio Social.
Vejamos então: o acesso a serviços especializados, multidisciplinares, em internamento, ambulatório ou no domicílio; respostas para situações de demências e também as que são necessárias dar às crianças; apoio à criação de serviços de referência, sem esquecer a necessidade de formação dirigida a profissionais para aquisição de competências

GHA Região de Lisboa tem sido o calcanhar de Aquiles da REDE. Porquê? Como espera resolver a situação?
IG – Já estamos a trabalhar nesse sentido. Criámos um programa de investimento a fundo perdido (PROGRAMA MODELAR) para remodelação e (ou) construção de novas unidades e atribuímos o grosso da fatia financeira a Lisboa e Vale do Tejo, região que tem sido penalizada pela inexistência ou insuficiência de fundos estruturais em comparação com as restantes.
Por outro lado contamos com um leque confortável de investidores privados de grande qualidade – em colaboração da Câmara Municipal de Lisboa e com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – que tencionam iniciar grandes investimentos nesta área de intervenção.

GHComo têm sido as relações com os diferentes parceiros envolvidos nesta REDE – Saúde; Segurança Social; Misericórdias; Privados?
IG – A reduzida familiaridade com os conceitos de continuidade e planeamento de cuidados integrados de Saúde e Apoio Social, verificada entre os profissionais de ambos os sectores no início do desenvolvimento da Rede, exigiu uma forte aposta no reforço dos esforços de formação técnica e de qualidade dirigida aos profissionais de Saúde e Apoio Social.
Esta situação implicou, igualmente, um cuidado especial de comunicação:
humanizar significa fortalecer a relação entre doentes, cuidadores e profissionais de Saúde e, como tal, a comunicação entre os parceiros teve de ser redefinida.
O desafio é ainda complexo pois a cultura vigente promove – talvez até inadvertidamente – processos de gestão e organização dos serviços que não facilitam a relação de proximidade entre as pessoas. A elevada taxa de utilização das camas da Rede, bem como da procura da mesma, comprovam que o projecto está a responder a necessidades efectivas. Comprovam que, apesar das dificuldades e complexidades organizacionais que o novo paradigma do Cuidar da Pessoa em estado de dependência permanente ou temporária implica, as organizações e os profissionais de ambos os sectores evoluíram para uma fase de interesse e apoio à Rede e esperam o seu rápido crescimento.
Esta é a força motriz que aproxima todos, Saúde; Segurança Social; Misericórdias; Privados, UMCCI.

GHEm meados de Novembro A Unidade de Missão apresentar, publicamente, novos dados relativamente ao desenvolvimento das diferentes tipologias de prestação de cuidados. O que podemos esperar?
IG – Na primeira metade de 2008, a RNCCI prestou assistência a mais de 5 mil utentes, o que traduz um crescimento de 90 por cento face ao período compreendido entre Novembro de 2006 e Dezembro 2007. Destes, mais de 3 mil tiveram alta, sendo o seu destino acautelado pela RNCCI, nomeadamente com suporte domiciliário para a continuidade de cuidados.
Desde que iniciou actividade a rede já prestou cuidados a cerca de 16.000 pessoas doentes. Admitimos que não atingiremos a excelência nestes primeiros anos, mas não permitiremos que a excelência não seja um objectivo dos nossos parceiros, pois ela também se mede pela capacidade de Humanização dos serviços que apoiamos.
Poderemos começar a falar também de qualidade, de indicadores de ganhos em saúde e de resultados. Os resultados são muito animadores e mostram-nos que estamos no caminho certo, senão Vejamos: melhor e mais referenciação para a rede; mais autonomia na alta; maior satisfação dos prestadores, profissionais, pessoas doentes e famílias. Em breve, acredito, podemos poder começar a medir os impactos deste grande projecto no SNS

GHPara 2009 qual vai ser a principal acção a desenvolver?
IG
– Política de qualidade, formação e avaliação dos resultados, e continuar a crescer em várias respostas reforçando o componente domiciliário com a Missão dos Cuidados Primários e os recursos dos centros de saúde, preferencialmente, sem esquecer as unidades de ambulatório.
Criar um serviço piloto de referência em Cuidados Paliativos e começar a trabalhar para a cobertura de patologias mais complexas, como a saúde mental, as demências e as crianças.


GH
Não acha que está a ser demasiado ambiciosa?
IG – A ambição nunca é demais quando somos muitos a “ambicionar”!

GHOs Recursos Humanos, especializados e com alto cariz de humanização, são essencial na Rede. Não teme a falta de profissionais com estas características?
IG
– Formar, formar e formar foi o nosso lema desde o início. Já formámos cerca de 3.000 profissionais, fizemos reuniões e acompanhamento permanente das Equipa Coordenadoras da Rede, auditorias internas e externas, orientações para boas práticas, normativos, formação prática on job, diálogo permanente e discussão de casos reais.
Tudo isto a uma só voz nos conceitos, práticas e teóricos. No fundo, o que está feito tem a ver com a capacitação de todos com muito enfoque nos auxiliares.
Finalmente estamos a criar 12 unidades de referência da Rede para se constituírem centros de estágio, com acompanhamento, monitorização e avaliação permanente. Os frutos não se vêm logo, mas cedo as árvores vão florir na primavera da Rede. Estamos só (ou ainda) na primeira infância.

GHChega ao final do ano com cerca de quatro mil camas. São precisas 15 mil, para atender as necessidades dos portugueses.
Acha possível? Como? Quando?
IG – A RNCCI surgiu e confirmou-se como instrumento inequívoco para a obtenção de mais ganhos em saúde para os portugueses. Ela preencheu já a brecha existente no sistema de saúde e na rede de apoio social. O modelo que preconiza forçou a reorganização das estruturas, o diálogo e envolvimento de diversos parceiros, e criação de uma nova cultura do cuidar.
No entanto, a implementação da RNCCI está prevista em 3 fases e a 10 anos. O esforço e o ritmo de trabalho para a implementação, consolidação de boas práticas, normativos, orientações e até o acompanhamento directo têm sido enormes por parte de todas as equipas da Rede, das ARS, da Segurança Social, da adesão dos profissionais e dos prestadores.
Se os outros países europeus já o fizeram nós também seremos capazes, disso tenho a certeza, desde que a estabilidade das políticas estratégicas se mantenham. Este é sobretudo um projecto de país. E, como diz o poema que gosto de invocar e que melhor espelha esta filosofia deste projecto: “Enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito, o teu corpo, nunca encontrarás os ciclopes ou outros monstros, a não ser que os tragas contigo dentro da tua alma, a não ser que a tua alma os crie em frente a ti”.
Os nossos objectivos, esses, serão cada vez mais exigentes. Mas também sábios como nos teremos tornado nesta viagem, que se quer longa e cheia de conhecimento. Só assim saberemos, à chegada, o que é uma Ítaca”.

GHQue marcas pessoais gostava de deixar na REDE?
IG – Mais do que viver, é cada vez mais valorizado o modo como se vive.
É cada vez mais enfatizada a manutenção da capacidade para o desempenho das actividades de vida diária e a valorização de sentimentos de felicidade e bem estar,emocional e social, assim como da qualidade de vida (”para que atinja um estado de bem estar físico, mental e social um indivíduo ou grupo deve ser capaz de identificar e concretizar desejos, satisfazer necessidades e alterar ou identificar-se com o meio ambiente”, OMS, 1986).
Há necessidade de coordenar os serviços de saúde e sociais, de modo a suportar e manter as capacidades funcionais do indivíduo, assim como a sua saúde e bem-estar físico, mental e social.
As intervenções devem ser orientadas, não só para responder às necessidades mais imediatas mas também para a prevenção de complicações futuras e promoção de melhoria de qualidade de vida.
Estas não são marcas pessoais, são marcos fundamentais para as mudanças culturais. Interessa, isso sim, que cada indivíduo seja visto como humano e particular.
Gostaria de deixar como afirmação pessoal que as mudanças não são sensíveis nem possíveis quando a realidade sempre esteve à nossa frente e não nos disse nada!

marina caldas, GH n.º 39

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