quinta-feira, setembro 25, 2008

SOS Médicos


Em Portugal há 3,4 médicos para cada mil habitantes. Número igual tem a França, o país com o melhor serviço de saúde do mundo, de acordo com OMS. Mas o mesmo tipo de medida – os números – também nos diz que há milhares de portugueses sem médico de família e que os hospitais preferem gastar mais dinheiro a «aluga» médicos do que remunerar melhor os seus trabalhadores.
Se os números podem ser mentirosos, a realidade vivida diariamente nos hospitais não deixa margem para dúvidas: não há profissionais suficientes para responder aos cuidados de saúde solicitados pelos portugueses. A prová-lo estão as urgências nocturnas repetidamente asseguradas por clínicos mais velhos, embora a lei permita que as neguem a partir dos 55 anos, a contratação de tarefeiros para cumprir serviços básicos e planeados, a publicação de anúncios de emprego a que ninguém responde.
Embora seja exigida uma nota quase impossível - mínimo de 18,1, em 2008 – para ingressar na Faculdade de Medicina e passar, pelo menos, 12 anos a estudar para se formar numa especialidade, em Portugal não falta quem acuse os médicos de produzirem pouco. Vários hospitais instalaram máquinas para controlar a assiduidade. Nem por isso passou a haver médicos suficientes.

Todos diferentes, todos médicos

São oito e meia da manhã de uma quarta feira. É o terceiro dia da semana segundo o calendário, mas já lá vão cinco horas de trabalho. Urgências, consultas, cuidados intensivos, Manuel Primo, 56 anos, pensou chegar a esta idade e descansar, pelo menos dos bancos nocturnos, como lhe permite a lei. Mas o sistema trocou-lhe as voltas.
No Serviço de Pediatria do Hospital Garcia de Orta, em Almada, há falta de recursos humanos e quem lá trabalha sente-se obrigado a fazer horas suplementares. Manuel Primo tem contrato de exclusividade, porque «queria estar disponível». Foi esse espírito que o levou para aquela unidade, inaugurada em 1991. Há cada vez menos como ele. Os hospitais empresa preferem contratos individuais e de prestação de serviços.

Filipa Nunes, 32 anos, começa o dia com Manuel Primo, mas depois segue para as urgências pediátricas, onde fará um turno de 24 horas. Terminou a especialidade há um ano e chefia a equipa de serviço, porque muitos dos colegas mais experientes preferiram «migrar» para o privado. A geração de Filipa já não tem direito a integrar a função pública. Contratos individuais, sem perspectivas de progressão na carreira, são o que a espera. Com isto, o Estado português reduz a despesa pública e cumpre as exigências de Bruxelas em relação ao défice.
Quando Filipa Nines e Manuel Primo entram ao serviço, José Carlos Ferreira, ortopedista há 18 anos, sai do Centro Hospitalar de Cascais, depois de cumprir 20 horas de banco. Há-de ir ensonado, mas com a carteira recheada. Um dia de trabalho rendeu-lhe 900 euros. Manuel Primo, Filipa Nunes e José Carlos Ferreira representam três tipos de contratação que se cruzam hoje nos nossos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sintoma de reformas economicistas, prenúncio de doença. A ministra da Saúde, Ana Jorge, já reconheceu, publicamente, o diagnóstico, mas ainda não anunciou o tratamento.

Mil euros a urgência

Na mala de médico de José Carlos Ferreira, 44 anos, nunca falta um grosso filofax. Percebe-se: é ortopedista “free lancer”. A gestão do tempo tornou-se a sua principal ferramenta de trabalho. Conforme os dias de semana e os meses do ano, aponta na agenda: Castelo Branco, Cascais, São Francisco Xavier, Barreiro. Passará em breve a incluir no rol de hospitais - clientes o de Torres Vedras e o Das Caldas da Rainha.
Este especialista faz parte de uma bolsa de 200 que a “Helped”, especializada na venda de serviços de saúde, nascida do boom dos hospitais empresa, apresenta aos centros médicos. Helena Jerónimo, directora clínica da “Helped”, 44 anos, prefere recrutar os «seu» profissionais através do método do «boca a boca». Dos especialistas que emprega, os que têm mais saída são os anestesistas, ortopedistas, obstetras e ginecologistas. Há cerca de 20 unidades hospitalares, todas a sul de Coimbra, interessadas nos préstimos da empresa.
José Carlos encaixa-se, como pode, na demanda. Depois de ter passado uma semana a dormir num hotel, em Castelo Branco (uns dias de prevenção, outros de banco), o especialista «desceu» à capital para um fim-de-semana descansado. E, na segunda-feira, já o esperavam em Cascais. Apesar de andar sempre a saltitar de hospital em hospital, está satisfeito por ter batido com a porta do Serviço Nacional de Saúde. E nãomé apenas dinheiro que o move, embora 45 euros à hora sejam um belo aliciante. «Ter deixado de aturar chefes, afastar-me da burocracia dos hospitais e gerir o meu tempo tornou-se mais importante do que uma carreira hospitalar.»
Estar de banco 24 horas rende-lhe agora seis vezes mais do que quando pertencia aos quadros. Mas a esses cerca de mil euros há que subtrair o seguro profissional, a gasolina, as portagens, os parques de estacionamento, a segurança social e o IRS. E nada de somar subsídios de férias e Natal.
Mesmo assim, se trabalhasse em exclusividade e fizesse bancos, ficaria três vezes aquém do que ganha hoje.

Relações perigosas

Os médicos contratados recebem, em média, 50 euros à hora, dependendo das especialidades. Os hospitais desembolsam cerca de setenta. A diferença fica nas mãos dos intermediários.
Representante de uma empresa de recursos humanos especializada em saúde garantiu à Visão, sob anonimato, que não pratica os valores falados este Verão (100 euros hora). ´O nosso máximo são 50 euros, nas duas especialidades mais procuradas – Anestesia e Obstetrícia», explica. O pior é a promiscuidade deste novo negócio. «Desde que as administrações podem contratar directamente, os médicos passaram a associar-se em clínicas de serviços. Trabalham no hospital e vão a concurso em pé de igualdade com as empresas de trabalho temporário.»
Ainda na semana passada, foi notícia um exemplo destas relações perigosas. Gaspar Pais, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim/Vila do Conde, está a ser investigado por acumular o cargo com o de sócio da empresa GPA- Prestação de Serviços de Saúde. A Inspecção Geral das Actividades em Saúde abriu um processo. O administrador de carreira garantiu ter cessado o contrato com a GPA assim que tomou posse daquele cargo público.
Uma explicação que não calou as criticas. «Pode ser compatível do ponto de vista legal, mas em termos morais não me parece correcto», afirma Pedro Lopes, 53 anos, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. «Temos defendido a separação entre o exercício da medicina no sector privado e público.» À Visão, Gaspar Pais adiou qualquer comentário para depois das conclusões do processo.

Estranho, mas bem pago

Para manter pelo menos sete obstetras de dia e outros tantos de noite, Clara Soares, 54 anos, coordenadora das urgências da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, recorre à empresa Ecomedice. «Normalmente, temos dois médicos contratados, escolhidos com todo o cuidado.» Por cuidado, entenda-se: contratar pessoas ligadas, de alguma forma, à maternidade. Por já terem feito o internato, estágios, ou – pasme-se - por serem quadros do hospital.
A lei prevê que os médicos façam apenas 12 hopras extraordinárias, além das 35 semanais. Só em situações extremas esses clínicos podem dar mais horas à instituição – e só se forem prestadores externos. « A outra opção era não termos as escalas preenchidas com pessoas sem qualidade», justifica a obstetra.
Pilar Vicente, 55 anos, dirigente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) não tem dúvidas sobre quem ganha e quem perde; «As coisas correm bem às empresas e mal ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Impedir entradas nos quadros é a morte lenta do sector público. A partir dos 55 anos, muitos médicos deixam de assegurar urgências e, com os quadros envelhecidos, é com a prestação de serviços que se garante o atendimento. Vence o conceito de negócio.»
Governos PSD e PS imitaram os ingleses, ao entregarem a saúde à lógica do mercado: « Do Serviço Nacional de Saúde britânico praticamente só resta o nome. Está a ser destruído, privatizado e oferecido a grandes multinacionais», salienta Allyson Pollock, dirigente do Centro para a Política de Saúde Pública da Universidade de Edimburgo, Reino Unido.
Clara Soares, sabe que os clínicos contratados à hora recebem mais dinheiro, sim, mas à custa de muito suor e dedicação. José Carlos Ferreira também sua mais hoje do que quando estava em exclusividade no Hospital de Faro e «levava uma vida santa».
Fartou-se de não progredir na carreira, dos entraves à adopção de novas técnicas por falta de meios. «O dia a dia é mais cansativo mas gosto de conhecer várias formas de trabalhar.» E nem se importa que, em alguns hospitais por onde passa, o tratem por «externo» ou «estranho». Noutros, como o de Cascais, tudo corre bem. Aliás, quem o observe a cumprimentar aqui, entre larachas, os colegas de trabalho, ou a tratar por tu o empregado do «café do senhor João», mesmo em frente do hospital, nem percebe que, terminado o horário negociado, nada o prende a esta unidade de saúde.

Poucas vagas e especialistas

Os gastos com a contratação à hora têm dado muito que falar, mas não passam de um sintoma da má gestão dos serviços alerta Pedro Nunes, 54 anos, bastonário da Ordem dos Médicos: «Congelaram-se as carreiras, criaram-se hospitais empresa para diminuir o défice e passaram a propor-se contratos individuais. Como não há carreira, não há estímulo. Por isso, vão para o privado ou a ganhar à hora. O SNS está a ficar sem médicos.»
Isso mesmo sente o director do Serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, Luís Graça, 62 anos. Consegue organizar-se sem tarefeiros, porque ainda tira partido do carisma da instituição. «Há uma falta brutal de obstetras. Com as contratações individuais não existem aliciantes. O único critério passou a ser o ordenado e para isso vai-se para o privado, onde um especialista acabado de formar ganha 3 mil euros, contra os 1.800 que posso pagar aqui. Alguns ficam, porque acreditam que o hospital ainda é uma boa escola.» Embora a Ordem dos Médicos tenha permitido o treino de 40 novos obstetras, em 2007 só foram abertas 28 vagas pelo Ministério da Saúde.
Pelas contas do presidente do Colégio de Obstetrícia da Ordem dos Médicos, o seu serviço precisaria de mais cinco especialistas experientes e oito jovens. Não os há. Apesar dos alertas – o Plano Estratégico para a Formação nas Áreas da Saúde, em 2001, salientava a falta de 311 anestesistas, 127 pediatras e 90 ginecologistas - , pouco foi feito para minorar o problema. É verdade que aumentou o número de alunos de Medicina e, este ano, a média até desceu duas décimas. «Há cerca de 8 mil estudantes e, por ano, formam-se 1.200 novos profissionais. Mas muitos internos não conseguem especializar-se no que mais gostam porque existem poucas vagas.», diz Claúdia Melo, 26 anos, presidente da Associação de Estudantes de Medicina.

O papel? Qual papel?

Dentro de cinco anos, com mais alunos a saírem das universidades, o problema começará a resolver-se. Mas, como explica Anselmo Costa, 47 anos, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, nem tudo se resume à escassez de vagas. « A trabalhar assim, faltam médicos. Mas há países com menos a fazer melhor.» Como? As urgências, que, em 70% dos casos, não precisavam de o ser se os centros de saúde respondessem às necessidades, ocupam um terço do horário dos profissionais de saúde. Um monstro chamado burocracia leva outro terço. «Os hospitais não precisam de mais médicos, precisam é de mais enfermeiros e secretárias, que nos libertem para a Medicina», defende o director de serviço do Hospital Garcia de Orta.
Depois de passar a manhã na Pediatria, Manuel Primo come uma sande, a correr, e segue para a consulta de Desenvolvimento, onde acompanha prematuros. Para prevenir as consequências do baixo peso com que nasceram, devem ser vistos por oftalmologistas e otorrinos. Embora os consultórios sejam equipados com computador, é o próprio médico que terá de subir quatro pisos e levar os impressos àqueles especialistas. Porque «não há mais ninguém para o fazer.» O SNS, que contrata tarefeiros a cem euros à hora, dá-se ao luxo de pagar a profissionais altamente especializados – além da Pediatria, Manuel Primo estudou Cardiologia – para transportarem papéis. Não admira que o bastonário Pedro Nunes sonhe com um «simplex na medicina portuguesa.»
Já lá vão oito horas de consultas, mas o dia de Manuel Primo ainda não acabou. Falta-lhe um turno de urgência, nos cuidados intensivos. «Estamos sempre a tapar buracos. Mantém-se o serviço à custa de sacrifício permanente. Numa semana, só vou folgar um dia. Há muitos anos que estamos nos limites.»
O panorama é pouco animador e tende a piorar: «A geração que está agora a aposentar-se é mais numerosa do que a dos clínicos que entram no sistema. Vai sentir-se em breve a diminuição da qualidade. O elo entre mais velhos e os mais jovens está a quebrar-se», salienta Pedro Lopes Ferreira, 54 anos, coordenador do OPSS.
Perdida entre a geração de médicos com mais de 40 anos que fugiram para os privados e os seniores que podem recusar-se a fazer serviço nocturno, Filipa Nunes vê-se obrigada a chefiar a equipa de urgência pediátrica do Garcia de Orta. «Consegui um contrato sem termo, o que me dá tranquilidade, só que não tenho progressão na carreira. Sou assistente e posso ficar assim para o resto da vida. Mas saio daqui com a sensação de que ajudei as pessoas.» Resta saber até quando esse prazer será compensação suficiente.

Contas de merceeiro
Se a hora extra de um médico da carreira hospitalar custa, no máximo, 50 euros, porque é que se contratam tarefeiros a quem se paga uma média de 70 euros?
Por causa da engenharia financeira. As despesas com pessoal devem ter aumentado zero, mas as de fornecimento de serviços podem crescer quatro por cento. Como os tarefeiros são prestadores de serviços, não contam como recursos humanos. Quem cumpre estes critérios tem uma vantagem – 30% da verba estatal atribuída a cada hospital depende do cumprimento destas metas.
Clara Soares, Isabel Nery, Luísa Oliveira e José Caria (fotos)
Visão, 25.09.08