sexta-feira, setembro 19, 2008

CC, entrevista, 19.09.08


Ex-ministro da Saúde lamenta tempos de espera muito altos para cirurgia oncológica
Correia de Campos: nos media "eu era uma figura politicamente exausta". Era absolutamente necessário sair
Quase sete meses depois de ter deixado o cargo de ministro da Saúde, Correia de Campos lança na próxima semana um livro onde passa em revista os seus últimos três anos na pasta. Ao longo de 300 páginas, "Reformas da Saúde – O fio condutor" (Almedina) aborda as suas medidas mais controversas, casos dos fechos de blocos de partos, urgências e SAP. Apesar de se ver como um ministro muito competente, reconhece que saiu com níveis insustentáveis de impopularidade.

PÚBLICONo seu livro compara o programa do Governo na Saúde com o que conseguiu executar e diz que “os resultados são impressionantes, a reforma avançou quase 80 por cento do previsto”. Se são tão positivos, porque é que saiu do Governo?
Correia de Campos — A execução não tem nada a ver com a capacidade de ficar em funções. Não se esqueça da importância dos media. Nos media e na opinião pública publicada eu era uma figura politicamente exausta. Era absolutamente necessário sair porque uma reforma só se faz se houver uma relação de confiança muito grande entre o líder da reforma e os seus beneficiários, os cidadãos. As minhas quotas de popularidade eram baixíssimas e não era esperável que recuperassem para níveis toleráveis, porque ainda havia problemas para resolver. E, portanto, eu entendi, juntamente com o primeiro-ministro, que era altura.

Mas isso não é deixar que as sondagens norteiem a acção política? Diz no seu livro que os momentos de impopularidade são inerentes ao cargo político...
A impopularidade é inerente ao cargo político mas o que se verificou foi que não havia mais capacidade de sintonia entre o ministro e a população.

O mesmo aconteceu com a ministra da Educação e manteve-se no Governo...
É diferente, porque na ministra da Educação havia uma aliança implícita com boa parte da população, que são os pais, e aqui não. Havia um sentimento de fragilidade, de receio, de instabilidade e desconfiança. É o que há de pior, não é possível.

Quando diz que cumpriu 80 por cento do que estava previsto, não está a ser optimista? Por exemplo, a reforma dos cuidados primários (centros de saúde) está ainda no início...
Não. Há 150 Unidades de Saúde Familiar a funcionar. Uma reforma de cuidados primários demora 20 anos a fazer e em três anos fez-se isto. A verdade é que a parte mais difícil, que é conceber as reformas, discuti-las com os parceiros sociais, passá-las para o papel legislativo e começar a executá-las, foi feita em todas as áreas: cuidados continuados a idosos, USF. Se conseguirmos chegar ao fim desta legislatura com 220 a 250 USF estaremos com 60 por cento da cobertura do novo sistema dos cuidados primários.

Quando, no seu livro, se refere ao episódio do fecho dos blocos de partos, acusa alguns municípios PSD, nomeadamente Barcelos, de organizarem manifestações contra si, de deslocarem manifestantes com financiamento público. Foi vítima de manipulação política?
Não lhe chamo manipulação política, é o jogo político natural. Os municípios, durante algum tempo, pensaram que ganhavam votos na população se fossem contra as medidas do Governo. E, curiosamente, os dois casos, de Barcelos e Mirandela, quando perceberam que a reforma era algo diferente daquilo que tinham sido induzidos a acreditar, ficaram ao lado da reforma. O presidente da Câmara de Barcelos, numa cerimónia pública, fez grandes elogios à reforma.

Afinal, foi demitido ou pediu a demissão?
Chegámos a acordo na carta em que eu reconhecia que não havia possibilidade de cumprir. Quando aceitei o convite, tinha dito que seria por dois anos. Não saí porque as reformas estavam pouco maduras.

A requalificação das urgências foi a questão mais polémica. Como interpreta a actual acalmia?
Por um conjunto de razões psicológicas que fazem com que, desaparecendo o protagonista — não desapareceram naturalmente os partos nas ambulâncias nem as quedas de macas —, desapareça a tensão.

Diz que tem uma personalidade abrasiva. A actual ministra, Ana Jorge, é completamente diferente...
Sim, e isso é uma vantagem com que o Governo conta. A minha personalidade abrasiva levou-nos à reforma ao ponto a que ela chegou.

Quando acha que as pessoas vão perceber as suas medidas?
Não preciso disso. Não tenho nenhuma crise de identidade nem nunca terei. Eu expliquei 30 vezes que os números das crianças que nasciam nas ambulâncias estavam a baixar todos os anos, passaram de 120 ou 130 em 2005 para 86. Algum dia essa explicação passou? Não passou porque eu já não era um interlocutor credível.

Dedica todo um capítulo ao excesso de poder dos media. Acha que a culpa da sua saída é dos media?
As culpas são exclusivamente minhas. Sinto-me perfeitamente realizado. Fui até mais longe do que julgava.

Tempos de espera muito altos para cirurgia oncológica

Apesar do seu balanço positivo, umas das reformas que reconhece ter ficado longe de estar cumprida foi ao nível oncológico, dizendo que “estamos muito longe de garantir rapidez no acesso ao tratamento”.
Progredimos muito, sobretudo com a redução das filas de espera cirúrgica. Foi um enorme avanço, mas precisamos de progredir muito mais porque temos ainda tempos de espera muito altos.

Os portugueses com cancro recebem um tratamento de menor qualidade do que noutros países europeus?
Recebem a mesma terapêutica, a mesma cirurgia, a mesma radioterapia, mas podem não recebê-las no tempo e com a coordenação necessários. O tratamento deveria ser feito por uma equipa plural de médicos (um cirurgião, um oncologista e um radiologista), que deveria acompanhar o doente como um todo e, muitas vezes, não é assim. Muitas vezes a pessoa tem um nódulo no peito e vai a um médico que a opera e quase sempre recomenda um oncologista para dar continuidade ao tratamento, mas isto não é coordenação, isto é referência. O cirurgião deveria primeiro falar com o radiologista e o oncologista clínico porque, em muitos casos, a prioridade pode não ser cirúrgica, mas radiológica.

Se ficasse doente iria o estrangeiro?
Não iria ao estrangeiro mas não são comparáveis as situações. Pessoas com notoriedade, conhecimentos, cultura, meios e amigos não são comparáveis à população em geral. E eu refiro-me sempre à população em geral.

Este maior tempo de espera para tratamento conduz a mais mortes por cancro do que noutros países?
Temos uma mortalidade mais alta, intervenções mais tardias e não sou eu quem o diz, é o professor Sobrinho Simões, por exemplo. Mas demos um enorme avanço. A criação de um Plano Oncológico Nacional é importante.

Saíram 500 médicos para o privado

No livro faz as contas e chega à conclusão que em 2007 “apenas” terão transitado 500 médicos dos hospitais públicos para os privados. A verdade é que foi durante o seu mandato que a saída dos médicos se agudizou.
Houve uma coincidência com o surgimento, ao longo de dois anos, de dois hospitais em Lisboa com quase 700 camas. E a saída é uma falsa questão.

Mas o que se diz é que têm saído os mais velhos...
E então? Os médicos que ficam são tão bons como os veteranos. Reconheço que o ordenado de um médico num hospital é muito baixo e é compensado através de horas extraordinárias acriticamente atribuídas. Ia fazê-lo este ano, criando mecanismos para encontrar um modelo que não tenha que utilizar a ficção das horas extraordinárias, para pagar condignamente, com retribuições proporcionais ao desempenho.

Tem-se falado muito de os médicos serem contratados como tarefeiros à hora, da má qualidade do atendimento que a Ordem dos Médicos (OM) diz que é o resultado da empresarialização dos hospitais.
É o resultado da política de, ao longo de várias décadas, com cumplicidade visível da Ordem dos Médicos e que também cobre os políticos, se restringir o acesso às faculdades de Medicina. Isto é uma imoralidade. Não tolero lágrimas de crocodilo. Essas pessoas contribuíram activa ou passivamente para a situação actual. Lembra-se da argumentação? Não temos falta de médicos, estão é mal distribuídos. Durante anos a fio foi esta a retórica da OM.

Mas acha que foi uma coincidência ou teve a ver com a empresarialização dos hospitais públicos durante o seu mandato e o crescente descontentamento dos médicos com a situação no SNS?
Como é possível se esses investimentos [nos hospitais privados que abriram em Lisboa] começaram em 2001? Eu recebi em 2001 os promotores desses investimentos e avisei-os a todos que olhassem bem para o seu mercado.

Isso significa que não acredita nos outros investimentos privados anunciados para os próximos anos?
Depende. Se o SNS for bem gerido e se ampliar a sua capacidade de execução, naturalmente que o sector privado actual é mais do que suficiente.

Então, os investimentos anunciados para os próximos anos não fazem sentido?
Para mim não fazem sentido. Mas ninguém pode dizer com precisão o que vai acontecer daqui a dez anos. E, se não se fizer nada, se se continuar só em retórica a defender o SNS, não tenha dúvidas de que o SNS se deteriora.

Acha que a sua sucessora tem “preconceitos ideológicos” ou “complexos de esquerda”, expressões que usa no livro?
Não tenho nenhum comentário, nem sobre as pessoas que me sucederam nem sobre as que me antecederam...

Mas não há uma referência subtil à ministra quando se refere àqueles que pensam que o SNS se defende com base só na teoria e na retórica?
Não fiz referências nominativas, pessoais, nem entendo que as deva fazer. Se nada se fizer no SNS, se só gastarmos gargarejos a dizer que somos muito a favor e não fizermos o nosso papel, que é pôr o SNS a funcionar de forma eficiente, não tenham dúvidas de que estamos a prejudicá-lo. Esta ministra está a fazer coisas corajosas, como a descida do preço dos genéricos, as PPP.

No seu livro limita-se a fazer uma referência muito breve às Parcerias Público-Privadas (PPP) para a construção e gestão de hospitais. Mal tomou posse, a sua sucessora anunciou que a gestão destes novos hospitais em PPP voltaria para a esfera pública. Não houve uma clara mudança de rumo?
As PPP tinham que ser revistas e têm que ser revistas. Não é uma inversão completa do caminho. Não fui eu o autor da junção da gestão clínica com a construção. Mas achei que valia a pena fazer a experiência. Agora, olho para o tempo que demora, e isso [a gestão privada] torna o processo tão complexo, enquanto a construção é mais ou menos controlável... Acho que foi uma conclusão natural. Eu tinha dito (há um despacho escrito) desde logo que o Hospital Central do Algarve seria construído apenas em parceria infra-estrutural. Braga, Vila Franca, Cascais e Loures vinham do passado. Não houve alterações porque o Governo tinha que dar sinais de estabilidade. Foram desde o início intocáveis nesse modelo, aconteça o que acontecer, a menos que haja algum cataclismo.

Em relação ao Hospital Amadora-Sintra, também não acha que houve uma inflexão?
Eu limpei o terreno e deixei o campo aberto denunciando o contrato à entidade gestora. Não me peçam para comentar mudanças de rumo. Podia-se tomar uma posição ou outra. Eu próprio podia ter tomado essa decisão.

Muitos são consultores de farmacêuticas . “Há conflitos de interesse” nas comissões que analisam comparticipações de fármacos.
O ex-ministro da Saúde diz que os preços dos genéricos se mantêm anormalmente altos e que o sistema actual permite, sem haver lei que o contrarie, bónus de quantidade para o farmacêutico e o armazenista, sem qualquer benefício para o consumidor.

Quais foram os agentes mais difíceis de afrontar? Os médicos? A indústria farmacêutica? Os farmacêuticos?
O actor mais poderoso é a Associação Nacional de Farmácias, sem dúvida, e a uma enorme distância de todos os outros. É muito difícil de afrontar, mais do que a indústria.

Diz no seu livro, aliás, que a reforma das farmácias “ficou a meio do caminho devido à forte cartelização do sector”...
Exactamente.

Portugal transformou-se “no paraíso dos operadores na área farmacêutica” é outra das suas afirmações.
Se compararmos com outros países, os operadores ainda têm muito para baixar. Nos genéricos e medicamentos não sujeitos a receita médica é preciso fazer alguma coisa e a medida [recente descida administrativa do preço dos genéricos] dos 30 por cento visa isso mesmo. O sistema actual permite, sem haver lei que o contrarie, bónus de quantidade [para o farmacêutico e armazenista] que não são ilegais, mas que não beneficiam o consumidor.

Diz que o sistema é imoral e que “toda a gente ganha com o seu preço final alto, excepto o consumidor”...
É imoral, mas não é ilegal. É preciso encontrar um mecanismo de equilíbrio automático de mercado que permita fazer isso. Um exemplo: quando houver possibilidade de a farmácia dispor sempre de genérico mais barato, há um mecanismo automático de equilíbrio de preços que faz com que o preço dos genéricos baixe. É preciso ter a colaboração médica. Não é possível fazê-lo com medidas meramente administrativas.

Reconhece também no seu livro que “as medidas adoptadas nos orçamentos de 2006 e 2007 para controlar a despesa do SNS aumentaram a percentagem de desembolso das famílias em medicamentos”.
Foi um efeito colateral de um conjunto de políticas. Se baixa a comparticipação, aumentam os encargos. Sabia-se que isso ia acontecer, mas foi compensado: a manter-se o crescimento do custo médio de receita para o utente entre 2003 e 2005, chegaríamos a 2007 com 14,9 euros de encargos por receitas para o utente, ou seja, mais 1,3 euros do que o observado. Se não tivéssemos feito nada, o utente estaria hoje a gastar mais.

Fala de conflitos de interesse na composição das comissões que decidem as comparticipações dos medicamentos. A que se refere?
Muitas das pessoas destas comissões são consultores de empresas [farmacêuticas]. O que eu sugiro é que se vá buscar pessoas ao estrangeiro, que não têm manifestamente conflitos de interesse.

E isso tem reflexos na não aprovação de comparticipações em novos medicamentos?
É muito difícil retirar a comparticipação a medicamentos a não ser quando a indústria já não se importa porque o medicamento deixou de ser vendido, e há muita pressão para colocar os medicamentos sob comparticipação. Toda a gente sabe, não é novidade nenhuma. Com isto não vou lançar nenhum descrédito sobre todas as pessoas das comissões de comparticipação e admito que, honestamente, muitas pessoas pensem que não estão a cair em conflito de interesse.

“Pensei em impor taxas moderadoras na IVG”
Taxas na cirurgia serviram para preparar opinião pública para mudança de financiamento, diz Correia de Campos.

Está arrependido de ter criado taxas moderadoras para os internamentos e cirurgias? A medida foi penalizadora para a sua imagem e reconhece agora que trouxe poucos benefícios...
Sem dúvida, e há uma desproporção entre a medida e o resultado em termos financeiros. Mas não a adoptei para ter benefícios imediatos. Adoptei-a para começar a preparar a opinião pública para uma mudança de financiamento do SNS. Nessa altura, não sabia se conseguia equilibrar as contas.

Se pudesse voltar atrás, teria insistido na medida?
Se pudesse voltar atrás nas mesmas circunstâncias... No momento em que decisão foi tomada, não sabia que ia conseguir equilibrar as contas. E mais: todos os sinais indicavam que não seríamos capazes. E fomos, fomos capazes de conter a despesa.

Mas acha que vai ser necessário que os cidadãos paguem mais pela saúde?
Não sei, acho que vamos chegar ao fim desta legislatura sem isso. Pensei seriamente em impor taxas moderadoras na interrupção voluntária da gravidez [existe isenção]. Só não o fiz, porque isso implicava uma mudança legislativa mais profunda.

Porquê?
O argumento é o da comparação com as alternativas. No privado, as interrupções de gravidez custam 50 vezes mais do que a taxa moderadora e, em Espanha, 40 vezes mais. Mas também equacionei a possibilidade de acabar com as taxas na cirurgia do ambulatório e do internamento. Só não o fiz por coerência.


Algumas citações do livro

“Por força de um agressivo marketing farmacêutico e por falta de informação própria e dos pacientes, nos serviços públicos de saúde prescrevem-se em excesso medicamentos e meios de diagnóstico, levando a um crescimento excessivamente rápido destas rubricas de despesa. Foi assim que Portugal se transformou no paraíso dos operadores na área farmacêutica.”

“A evolução legislativa em saúde plasma a pressão das forças económicas e sociais que actuam no sector — profissionais, indústria, distribuição, instituições e função pública — e apenas em pequena parte os cidadãos destinatários.”

“Não é possível perpetuar por mais tempo a situação de baixos salários dos médicos hospitalares, apenas compensada pela aceitação negligente de pagamentos por hora extra.”

“O papel do sector privado no SNS está claramente definido na Constituição: é um papel complementar do sector público, o que significa que será bem-vindo quando ajuda a cobrir lacunas, mas não pode esperar uma competição com a esfera pública.”

“Não há adoçar da pílula que possa fazer engolir suavemente um encerramento de uma sala de partos ou o encerramento nocturno de um SAP. A racionalidade da medida, por muito bem que seja aceite por aqueles a quem ela não toca, nunca consegue gerar a adesão dos que se julgam prejudicados.”

“Nenhuma outra profissão dispõe de tamanhos direitos, com formulações e garantia inconstitucional, como é o caso dos profissionais da comunicação social em Portugal... A liberdade profissional não tem sido isenta de riscos. O mais grave é o da inimputabilidade e irresponsabilidade de algumas práticas jornalísticas.”
Citações de António Correia de Campos em "Reformas da Saúde - O fio condutor"


Alexandra Campos, Catarina Gomes, JP 19.09.08

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