A questão do SNS
O SNS será tanto mais forte quanto mais eficiente for, e tanto mais vulnerável quanto mais desperdício alimentar .
Passou injustamente despercebida a recente entrevista da ministra da Saúde à revista Visão, aliás em contraponto com a perspectiva dos representantes do sector privado. De facto, a entrevista é tão importante pelo que diz como pelo que ficou por dizer. Se o SNS é uma inquestionável responsabilidade pública, também é verdade que ele tem de se justificar em termos de eficiência e de sustentabilidade.
Ana Jorge tem toda a razão em destacar a prioridade do SNS na política de saúde. Trata-se de uma incumbência constitucional e política, para mais tratando-se de um Governo de esquerda. É por via do SNS que se realiza o direito aos cuidados de saúde, como direito universal independentemente dos meios económicos de cada um. De acordo com a lógica do sistema de saúde de tipo britânico - que Portugal adoptou -, o SNS é um serviço público organizado e prestado directamente pelo Estado, sendo financiado por via dos impostos.
Dada a vocação universal e geral do sistema de público de saúde, o sector privado depende essencialmente das insuficiências ou deficiências daquele, para além da preferência que uma elite social pode sempre ter por cuidados de saúde mais sofisticados, mesmo que seja quanto a aspectos relativamente marginais à qualidade daqueles, como é por exemplo a hotelaria. No caso português, o sector privado alimenta-se também dos chamados "subsistemas de saúde", a começar pela ADSE, o subsistema de saúde privativo da função pública - cuja existência, aliás, é tudo menos justificável -, os quais obviamente não está vinculados a comprar cuidados ao SNS.
Não faz nenhum sentido o argumento de que o Estado não deveria dar nenhuma preferência ao SNS em matéria de política de saúde, invocando um pretenso paralelismo com o que se passa no sector empresarial do Estado, onde as empresas públicas, como por exemplo a CGD, estão em concorrência com os operadores privados em pé de igualdade. A verdade é que, enquanto essas empresas públicas operam em áreas sujeitas ao mercado, não podendo o Estado dar-lhes nenhuma preferência - aliás, por imposição da UE -, os cuidados de saúde constituem um serviço social, ou um "serviço de interesse social geral" na terminologia comunitária europeia, que por isso pode ficar "fora do mercado" e da lógica da concorrência, especialmente quando constitucionalmente constitui uma prestação a cargo do próprio Estado.
Neste contexto, o Estado não tem somente a incumbência de organizar um SNS abrangente e auto-suficiente, como tem o dever de explorar os meios e recursos existentes no sistema público antes de contratar prestações ao sector privado. Por isso, é em princípio inatacável a afirmação da ministra segundo a qual "se tenho capacidade de resposta no SNS, (...) tenho de usar". Podia mesmo ter acrescentado que, por princípio, o SNS deve ter capacidade de resposta para todas as necessidades, não sendo admissíveis as lamentáveis e duradouras lacunas em áreas como Oftalmologia, Urologia, Estomatologia, entre outras, que foram sendo sub-repticiamente objecto de uma espécie de "privatização furtiva"...
Contudo, se isso deveria ser incontroverso à luz da filosofia do SNS, deveria ser igualmente indiscutível que este não pode falhar o teste da eficiência na utilização dos recursos públicos que lhe são afectados, tirando o melhor partido destes. E isso deveria merecer o mesmo destaque no discurso e na prática política.
Os piores adversários do SNS não são os liberais que preconizam o mercado e a liberdade de escolha na prestação de cuidados de saúde. O que mais mina a sustentabilidade política e ideológica do sistema público de saúde (tal como os demais serviços públicos prestacionais) é a ineficiência e o desperdício, sobretudo quando comparados com o sector privado.
É evidente que o SNS tem custos adicionais, como os da formação profissional (internatos), da manutenção de serviços de urgência e de cuidados primários, da própria exigência de "serviço universal", que não lhe permite seleccionar os utentes, como sucede com o sector privado. Mas todos esses custos deveriam ser devidamente segregados para efeitos de financiamento, de modo a permitir a comparabilidade de preços dos cuidados de saúde idênticos. Quando os hospitais do SNS não conseguem competir com os privados no fornecimento de cuidados de saúde aos "subsistemas", ou existe deficiente alocação contabilística de custos ou existe ineficiência e défice de produtividade.
Ora, é indiscutível que, apesar dos esforços recentes para melhorar a eficiência do SNS - a começar pela empresarialização hospitalar -, permanecem notórias ineficiências e desperdícios, bastando comparar a produtividade por médico em termos de consultas e de cirurgias, ainda por cima tratando-se por vezes dos mesmos médicos, em acumulação no sector público e no sector privado. As deficiências de organização e gestão que justificam as falhas de eficiência do SNS não podem permanecer tanto tempo como durou por exemplo o escandaloso incumprimento de horários de trabalho médico ou os casos de irresponsável redundância de instalações e de equipamentos.
Apesar da crescente procura e do aumento dos custos de novos meios de tratamento, o país não pode permitir-se aumentar sem limites a parte do orçamento dedicada à saúde. Os ganhos em saúde, tanto em quantidade como em qualidade, têm que resultar antes de mais dos ganhos de eficiência e da economia nos gastos. O SNS será tanto mais forte quanto mais eficiente for, e tanto mais vulnerável quanto mais desperdício alimentar.
Quando se aproximam novas eleições e o PSD já deu claros sinais de abandonar o seu compromisso com o SNS, o destino deste está cada vez mais ligado à sua sustentabilidade financeira e à sua capacidade de fazer melhor com os recursos disponíveis. Quem julga o contrário ajuda a sua condenação a prazo. Professor universitário
Passou injustamente despercebida a recente entrevista da ministra da Saúde à revista Visão, aliás em contraponto com a perspectiva dos representantes do sector privado. De facto, a entrevista é tão importante pelo que diz como pelo que ficou por dizer. Se o SNS é uma inquestionável responsabilidade pública, também é verdade que ele tem de se justificar em termos de eficiência e de sustentabilidade.
Ana Jorge tem toda a razão em destacar a prioridade do SNS na política de saúde. Trata-se de uma incumbência constitucional e política, para mais tratando-se de um Governo de esquerda. É por via do SNS que se realiza o direito aos cuidados de saúde, como direito universal independentemente dos meios económicos de cada um. De acordo com a lógica do sistema de saúde de tipo britânico - que Portugal adoptou -, o SNS é um serviço público organizado e prestado directamente pelo Estado, sendo financiado por via dos impostos.
Dada a vocação universal e geral do sistema de público de saúde, o sector privado depende essencialmente das insuficiências ou deficiências daquele, para além da preferência que uma elite social pode sempre ter por cuidados de saúde mais sofisticados, mesmo que seja quanto a aspectos relativamente marginais à qualidade daqueles, como é por exemplo a hotelaria. No caso português, o sector privado alimenta-se também dos chamados "subsistemas de saúde", a começar pela ADSE, o subsistema de saúde privativo da função pública - cuja existência, aliás, é tudo menos justificável -, os quais obviamente não está vinculados a comprar cuidados ao SNS.
Não faz nenhum sentido o argumento de que o Estado não deveria dar nenhuma preferência ao SNS em matéria de política de saúde, invocando um pretenso paralelismo com o que se passa no sector empresarial do Estado, onde as empresas públicas, como por exemplo a CGD, estão em concorrência com os operadores privados em pé de igualdade. A verdade é que, enquanto essas empresas públicas operam em áreas sujeitas ao mercado, não podendo o Estado dar-lhes nenhuma preferência - aliás, por imposição da UE -, os cuidados de saúde constituem um serviço social, ou um "serviço de interesse social geral" na terminologia comunitária europeia, que por isso pode ficar "fora do mercado" e da lógica da concorrência, especialmente quando constitucionalmente constitui uma prestação a cargo do próprio Estado.
Neste contexto, o Estado não tem somente a incumbência de organizar um SNS abrangente e auto-suficiente, como tem o dever de explorar os meios e recursos existentes no sistema público antes de contratar prestações ao sector privado. Por isso, é em princípio inatacável a afirmação da ministra segundo a qual "se tenho capacidade de resposta no SNS, (...) tenho de usar". Podia mesmo ter acrescentado que, por princípio, o SNS deve ter capacidade de resposta para todas as necessidades, não sendo admissíveis as lamentáveis e duradouras lacunas em áreas como Oftalmologia, Urologia, Estomatologia, entre outras, que foram sendo sub-repticiamente objecto de uma espécie de "privatização furtiva"...
Contudo, se isso deveria ser incontroverso à luz da filosofia do SNS, deveria ser igualmente indiscutível que este não pode falhar o teste da eficiência na utilização dos recursos públicos que lhe são afectados, tirando o melhor partido destes. E isso deveria merecer o mesmo destaque no discurso e na prática política.
Os piores adversários do SNS não são os liberais que preconizam o mercado e a liberdade de escolha na prestação de cuidados de saúde. O que mais mina a sustentabilidade política e ideológica do sistema público de saúde (tal como os demais serviços públicos prestacionais) é a ineficiência e o desperdício, sobretudo quando comparados com o sector privado.
É evidente que o SNS tem custos adicionais, como os da formação profissional (internatos), da manutenção de serviços de urgência e de cuidados primários, da própria exigência de "serviço universal", que não lhe permite seleccionar os utentes, como sucede com o sector privado. Mas todos esses custos deveriam ser devidamente segregados para efeitos de financiamento, de modo a permitir a comparabilidade de preços dos cuidados de saúde idênticos. Quando os hospitais do SNS não conseguem competir com os privados no fornecimento de cuidados de saúde aos "subsistemas", ou existe deficiente alocação contabilística de custos ou existe ineficiência e défice de produtividade.
Ora, é indiscutível que, apesar dos esforços recentes para melhorar a eficiência do SNS - a começar pela empresarialização hospitalar -, permanecem notórias ineficiências e desperdícios, bastando comparar a produtividade por médico em termos de consultas e de cirurgias, ainda por cima tratando-se por vezes dos mesmos médicos, em acumulação no sector público e no sector privado. As deficiências de organização e gestão que justificam as falhas de eficiência do SNS não podem permanecer tanto tempo como durou por exemplo o escandaloso incumprimento de horários de trabalho médico ou os casos de irresponsável redundância de instalações e de equipamentos.
Apesar da crescente procura e do aumento dos custos de novos meios de tratamento, o país não pode permitir-se aumentar sem limites a parte do orçamento dedicada à saúde. Os ganhos em saúde, tanto em quantidade como em qualidade, têm que resultar antes de mais dos ganhos de eficiência e da economia nos gastos. O SNS será tanto mais forte quanto mais eficiente for, e tanto mais vulnerável quanto mais desperdício alimentar.
Quando se aproximam novas eleições e o PSD já deu claros sinais de abandonar o seu compromisso com o SNS, o destino deste está cada vez mais ligado à sua sustentabilidade financeira e à sua capacidade de fazer melhor com os recursos disponíveis. Quem julga o contrário ajuda a sua condenação a prazo. Professor universitário
Vital Moreira, 12.08.08
Etiquetas: Imprensa
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