quarta-feira, outubro 01, 2008

Trinta anos de SNS


Quanto menos sustentável financeiramente for o SNS, mais forte será a pressão sobre a sua sustentabilidade políticaEmbora a Lei do Serviço Nacional de Saúde só tenha sido aprovada em 1979, os seus fundamentos logísticos foram lançados em 1977 e 1978, nos primeiros dois governos constitucionais (Mário Soares), mediante a autonomização dos serviços médico-sociais da Previdência social e a sua abertura a todos, independentemente da sua inscrição na Segurança Social. Estava assim criado um serviço de saúde público universal, característica essencial do SNS estabelecido na Constituição de 1976.

Como mostra o recente livro do ex-ministro António Correia de Campos, Reformas da Saúde - que, além de uma louvável prestação de contas, constitui também um verdadeiro louvor ao SNS -, a criação do sistema público de saúde universal, geral e fundamentalmente gratuito foi responsável por uma verdadeira revolução nas condições de saúde dos portugueses, colocando o país na linha da frente internacional em diversos domínios, designadamente na diminuição da mortalidade infantil.
Todavia, o êxito global do SNS não pode desvalorizar as suas continuadas limitações e deficiências. Basta recordar o persistente défice em matéria de cuidados primários e de cuidados continuados, bem como a incapacidade de resposta em várias especialidades (saúde oral, oftalmologia, cardiologia, etc.), sem esquecer as crónicas listas de espera para consultas e cirurgias em outras tantas. Por isso, o SNS continua a necessitar de investimento na superação das suas insuficiências, a par da resposta às novas necessidades criadas pelas actuais condições demográficas (nomeadamente o envelhecimento da população) e pela sofisticação e pelos custos dos novos meios de diagnóstico e de tratamento.
Três décadas depois da sua concepção e criação, o SNS enfrenta dois desafios cruciais à sua sobrevivência. O primeiro tem a ver com a sua sustentabilidade financeira. O segundo respeita à sua sustentabilidade política. Como se verá, o segundo depende essencialmente do primeiro.

Ao longo do tempo, as despesas de saúde não cessaram de aumentar, tendo crescido bem acima do crescimento do PIB e da despesa pública global. Comparativamente, Portugal encontra-se já acima da média dos países europeus quanto ao peso relativo das despesas públicas em saúde. Mesmo que ainda haja alguma margem de crescimento da receita consignada ao SNS, doravante as despesas orçamentais com a saúde não podem continuar a aumentar ao ritmo do passado, sob pena de insustentabilidade financeira. De resto, excluída a solução de fazer participar os utentes nos custos dos cuidados de saúde no momento da sua prestação - por ser uma solução contraditória com a filosofia do nosso sistema de saúde -, o aumento de receitas só poderia passar pelo aumento dos impostos ou pela criação de um seguro de saúde obrigatório complementar.
Por isso, o aumento da capacidade de resposta do SNS e a obtenção dos necessários "ganhos em saúde" têm de passar essencialmente pela melhor utilização dos recursos disponíveis. As medidas tomadas nesta legislatura mostram como se pode fazer muito mais com os mesmos recursos, mediante a moderação dos gastos excessivos, a racionalização da oferta e os ganhos de eficiência na gestão. Com essas medidas conseguiu-se o milagre da contenção das despesas dentro da previsão orçamental, isto apesar dos inegáveis ganhos de saúde ao longo destes três anos.

Mas essa via está longe de esgotada. O SNS continua a padecer de um enorme défice de eficiência e de produtividade. Produz menos do que devia, com os recursos humanos e financeiros de que dispõe. Há capacidade instalada mas subutilizada; há redundância de meios em muitos aspectos; há gente a mais, a ganhar de mais para o que produz. Importa continuar a apostar na racionalização de meios, no aproveitamento da capacidade, na avaliação e remuneração pelo desempenho.
Descontados os "custos de interesse geral" que o sobrecarregam, como as urgências, a formação profissional, a cobertura integral do território, etc. - que aliás devem entrar na equação do seu financiamento -, o SNS tem de ser competitivo com o sector privado quanto aos custos dos cuidados que presta. De outro modo, será preferível a sua contratação externa.
Mais complicada é a questão da sustentabilidade política do SNS.
Não tendo o SNS gozado inicialmente do apoio da direita política - que não votou a favor da sua criação (oposição do CDS e a abstenção do PSD) e que mais tarde haveria mesmo de tentar revogá-lo (1982), operação travada pelo Tribunal Constitucional -, a verdade é que, com a implantação do SNS no terreno e o seu sucesso, o PSD acabou por se tornar seu defensor, contando-se alguns ministros da saúde seus, como Leonor Beleza, Paulo Mendo e Luís Filipe Pereira, entre os bons ministros da Saúde do país ao longo destes 30 anos.
Todavia, tudo indica que, sob pressão das ideias neoliberais contra a provisão pública de serviços sociais universais, as coisas estão a mudar nesta matéria, não havendo nenhuma garantia de manutenção do compromisso do PSD, e da direita em geral, com o SNS. Multiplicam-se nessa área as declarações de maior abertura da saúde ao sector privado, aliás em consonância com a velha reivindicação deste no sentido da "liberdade de escolha do prestador", transformando o SNS essencialmente num sistema de financiamento público de cuidados de saúde privados. Fácil é ver que com essa mudança de filosofia o serviço público deixaria de ser tendencialmente universal, ficando crescentemente reduzido à prestação de cuidados para os pobres (que não poderiam suportar os custos dos "extras" no sector privado) e para as regiões do interior (sem procura suficiente para atrair os prestadores privados).
Como é bom de ver, quanto menos sustentável se tornar financeiramente o SNS, mais poderosa se torna a pressão sobre a sua sustentabilidade política.

Vital Moreira, JP 30.09.08

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