terça-feira, outubro 14, 2008

Jorge Simões, entrevista à GH


Gestão Hospitalar (GH)O SNS está moribundo?
Jorge Simões (JS) – Não. Seguramente que não está!
GHDiz isso com muita certeza. Porquê?
JS – Podemos fazer diferentes tipos de medições para responder a esta quase certeza. Todas essas medições, no entanto, estão relacionadas com os ganhos em saúde. A saúde dos portugueses vai melhorando, de uma forma significativa, embora seja sempre difícil identificar a relação entre os ganhos em saúde e a intervenção do sistema de saúde – mais concretamente do SNS. Por outro lado, o crescimento da despesa dá-nos alguma tranquilidade…
GHComo analisa então o facto de as pessoas, em geral, estarem descontentes com o SNS?
JS – O grau de descontentamento das pessoas, tem de ser analisado com alguma atenção. Regra geral, nós temos uma percepção do sentir das pessoas a partir de aspectos negativos importantes. Mas temos também uma percepção muito positiva daquilo que pensam os cidadãos e os utilizadores. E podemos ir por aí.
Temos, sem dúvida, um problema de acessibilidade, devido à existência de listas de espera, que penaliza a forma como se vê o SNS…
GH Não há como mudar essa situação?
JS – A situação está a mudar. Não há lugar para pessimismos a esse nível. Eu, pelo menos, não tenho essa sensação. Pelo contrário sou muito optimista. Mas tenho optimismo baseado na evidência. Embora não sejam sintomas muito significativos de melhoria, a verdade é que são sinais que apontam para um caminho muito positivo. Repare que estou a falar na questão da acessibilidade, particularmente no que se refere às listas de espera. Se analisarmos os últimos cinco anos, vemos uma melhoria real.
GHSim, mas também tem um tempo demasiado longo para ter acesso a uma consulta externa, nos hospitais – particularmente – e tem uma coisa que até há três ou quatro anos não existia: lista de espera em oncologia….
JS – É verdade. Temos, de facto, espera com alguma importância, em oncologia, nos institutos (Lisboa, Porto e Coimbra). Não temos nos hospitais gerais. Mas seja como for esta situação é grave. É uma verdade que hoje temos patologia oncológica praticamente em todos os serviços e, neste contexto, este problema tem de ser equacionado com muita atenção. Se foi criado um programa especial para cataratas se calhar justifica-se a criação de um programa especial em oncologia…
GHSeja como for, e apesar desses problemas, está feliz com o rumo que o SNS
tem tido?
JS
– Não diria feliz, mas optimista. E estou optimista tendo em consideração tudo aquilo que o SNS passou, ao longo da sua vida – com alguns períodos bastante difíceis – e, particularmente, com o rumo que o SNS tem tomado nos último tempos.
GHFalemos da sustentabilidade económica do SNS. Vivemos mais anos e com mais doenças e o Estado não consegue suportar os gastos derivados desta situação. Acha que é necessário mudar o percurso que estamos a seguir? No fundo, acha que cada um de nós deve também ser chamado para arcar com uma parte das responsabilidades financeiras da situação?
JS
– Espero bem que não. Isso iria trazer certamente maiores iniquidades à sociedade portuguesa, particularmente à área da Saúde, que iriam penalizar, ainda por cima, as pessoas com baixos rendimentos. Em Portugal, quem tem a seu cargo preocupações sociais deve pensar bem antes de propor soluções desse género.
GHMas então como se resolve o problema? O dinheiro não chega para tudo! Todos gostaríamos de ter o hospital ao pé de casa; um acesso mais rápido às consultas; os medicamentos gratuitos….
JS
– Isso pode ser resolvido de uma forma simples de dizer e difícil de aplicar. É simples de dizer porque temos de ser capazes de concretizar, de uma forma franca, o que se pode e o que não se pode disponibilizar. E sempre foi assim, veja o caso da Medicina Dentária e Saúde Oral, em que temos taxas de mais de 90 por cento de utilização dos cidadãos em ambiente privado, uma vez que o SNS a este nível não dá resposta. É preciso dizer de uma forma clara aquilo que o SNS pode dar e o que não pode dar.
Por outro lado, há que ter em atenção algo que nos últimos tempos foi tentado – e com êxito – a redução de gastos no sector, tendo em conta a capacidade financeira do SNS.
GHEm sua opinião, gastamos muito ou pouco com a Saúde?
JS
– A resposta é “não sei”…
GHSendo o Professor a dizê-lo é preocupante…
JS
– Nós, na verdade, já gastamos um pouco mais de 10 por cento do nosso PIB com a Saúde…
GHMas o nosso PIB é pequenito…
JS
– O nosso PIB é pequeno mas o do Luxemburgo também é pequeno e os luxemburgueses não chegam a este valor. Ou os dinamarqueses. Esse argumento não chega!
Mas nós podemos, enquanto comunidade – e embora a comunidade portuguesa, e outras, se manifestem de maneira débil – definir que a Saúde é a prioridade das prioridades e assumir que vamos canalizar mais recursos para esta área em detrimento de outras. Este é um primeiro comentário. O segundo, é que quando nos comparamos a outros países – quer em relação à despesa, em geral, quer em relação à despesa pública e dos privados – temos de ser conscientes e saber que gastamos mais do que a média da União Europeia (EU). É preciso dizer de uma forma clara aquilo que o SNS pode dar e o que não pode dar. Esse é um valor de referência e, portanto, desse ponto de vista gastamos muito.
GHMas a questão da diminuição dos gastos tem, depois, outras abordagens.
Estou a lembrar-me da Indústria Farmacêutica, segundo a qual a imposição de tectos na despesa dos hospitais está a condicionar a qualidade da prescrição, uma vez que os médicos deixam de poder receitar medicamentos inovadores…
JS
– Portugal foi, durante anos, um país com as portas abertas aos novos medicamentos. Não podemos queixar-nos! De tal maneira que temos uma das taxas mais elevadas, da UE, em relação ao consumo de medicamentos. Gastamos muito em medicamentos, mas é bom que se diga que esse valor não tem crescido nos últimos anos. Cresceu durante vários anos mas agora estabilizou.
Por outro lado, temos de ter em atenção que a área do medicamento é muito regulada em Portugal. Não há outra tão regulada. Repare que a área das tecnologias não tem regulação. Ainda um outro aspecto, os hospitais são empresas públicas. Elas fazem avaliações; têm comissões de farmácia e terapêutica, portanto considero que a situação está bem defendida.
GHPensa que o facto de os responsáveis pelos hospitais – gestores, directores clínicos e farmacêuticos hospitalares – negociarem protocolos terapêuticos com a Indústria Farmacêutica resolve, em parte, este problema?
JS
– Penso que os consensos terapêuticos, principalmente entre clínicos, são passos importantes em relação à qualidade e a uma maior eficiência quanto à utilização dos medicamentos. Mas a palavra é mesmo essa. São consensos terapêuticos e tem de haver o
acordo e o entendimento de que aquele é o melhor caminho a seguir.
GHE o valor do desperdício? Já ouvi dizer que o desperdício nos hospitais portugueses ronda os 10, 20 e mesmo 30 por cento. Afinal, em que ficamos?
JS
– A questão do desperdício nos hospitais é a questão do desperdício na rede. Quando falamos da reorganização das urgências; quando falamos das maternidades; quando falamos de hospitais que, repetidamente, cobrem a mesma população, percebemos que há aqui um nível de ineficiência que é possível ultrapassar. Depois, ao nível micro, a gestão dos hospitais – hoje mais profissionalizada – deve atender também às questões de eficiência. A minha convicção é a de que esses valores, que referiu, não estão quantificados. Todos temos a percepção de que o desperdício existe mas não se sabe a que nível. Isto, no entanto, não significa que não se posa fazer essa avaliação. Para tal é necessário abrir a ‘caixa’ do hospital e saber que padrão de qualidade se vai seguir e com que justificativas.
GHO professor liderou um grupo de peritos na avaliação do futuro do SNS, tendo por base a sustentabilidade do sistema, quando era ministro o Professor Correia de Campos. O documento, na altura, foi guardado; depois foi divulgado, mas há quem diga que a sua divulgação não foi completa…
JS
– Desminto categoricamente. O estudo foi publicado, integralmente, no Portal da Saúde, em Junho de 2007, e há cerca de duas semanas foi publicado em livro.
GHNesse estudo estão as soluções?
JS
– Podem estar algumas soluções para alguns contextos complexos. Uma coisa, na verdade, é o trabalho de peritos – como referiu – e outra é a decisão política. Nós fizemos o trabalho e depois o decisor político é que decide o que fazer, tendo por base a conjuntura em causa.
GHEm sua opinião, qual dos dois modelos de saúde europeus – o bismarckiano e o beveridgiano – tem mais capacidade de afirmação?
JS
– Os dois modelos estão a aproximar-se um do outro. Ou seja, o modelo beveridgiano, que representa o SNS, foi buscar ao bismarckiano algumas soluções originais, como por exemplo a preocupação com a eficiência, e começou também a preocupar-se mais com a liberdade de escolha. Inversamente, o modelo bismarckiano – nascido na Alemanha em finais do século XIX – foi buscar ao modelo beveridgiano, uma forte preocupação com a universalidade. Esta ligação, nos dois modelos, aconteceu de tal forma que hoje é necessária uma lupa para os distinguir. Só se conseguem identificar com base na captação de recursos.
GHOlhando para a Europa, na generalidade, qual o sistema de que mais gosta?
JS
– Se eu fosse holandês diria que era o holandês, se fosse dinamarquês diria que era o dinamarquês…Cada um tem o seu percurso. Acho que é um pouco como as famílias. Se fosse possível escolher, sem afecto – e nós portugueses temos afecto por Portugal – se calhar gostaríamos ser sobrinhos de alguém com quem nos identificamos.
Há aspectos nos sistemas de saúde dos países nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) que me aguardam particularmente. Na Islândia também.
E, depois, há aspectos no modelo bismarckiano de que também gosto. Explicando melhor: do modelo beveridgiano nórdico aprecio a qualidade dos cuidados e a forma como os prestadores de cuidados – com os médicos à cabeça – se relacionam com as instituições onde trabalham (uma atitude muito intensa e forte). Na Alemanha agrada-me haver a possibilidade de uma escolha muito ampla.
GHFalou em afectividade, por parte dos clínicos nórdicos, em relação às instituições onde trabalham. Em Portugal essa afectividade não existe?
JS
– Existe afectividade e dispersão. Regra geral temos uma relação menos forte se não trabalhamos apenas para uma instituição.
GHAs novas Unidades de Saúde Familiares (USF), são o instrumento certo para a reforma pretendida no SNS?
JS
– São seguramente. Eu sou utente de uma USF e já senti a mudança. Estamos, neste momento, com cerca de 140 USF’s. Há ainda muito caminho para percorrer, mas temos de reconhecer que elas são fundamentais para a reforma do serviço. Elas podem reaproximar os cidadãos do médico de família; depois há a continuidade, que é também essencial e, em terceiro lugar, há a questão dos incentivos a quem trabalha de uma forma diferente. Os médicos de família conseguiram concretizar algo porque aspiravam há muito tempo e que possibilita que trabalhem de forma plena com consequências financeiras diferentes.
GHColoca noutro patamar a Rede de Cuidados Continuados e Integrados?
JS
– Nesse domínio, ainda estamos a dar os primeiros passos. A ideia é muito interessante, particularmente em relação à combinação entre Saúde e o Apoio Social. Se conseguirmos que tal ligação dê certo, estamos a criar algo de novo na sociedade portuguesa, que representa um ganho significativo. Mas temos de ter esta conversa daqui a um ano para haver mais dados para comparar.
GHA tão falada falta de médicos, em Portugal, assusta-o?
JS
– Assusta e muito!
GHMas então parte do principio que há mesmo falta de médicos. Não é uma questão de má distribuição geográfica?
JS
– O facto de termos médicos mal distribuídos não significa que não tenhamos falta de médicos. Havendo mais de mil médicos no Hospital de Santa Maria; havendo três ou quatro pediatras no Hospital da Guarda; havendo um ou dois oftalmologistas no Hospital de Faro, e se tudo isso significar a existência de uma determinada percentagem de médicos por mil habitantes, isso não quer dizer que não haja falta de clínicos de determinadas especialidades na Guarda e em Faro.
Não vamos conseguir retirar os médicos de Santa Maria para onde eles fazem mais falta e só vamos resolver este problema em dois momentos: num primeiro momento conseguindo captar, de outros países, médicos para Portugal e, num segundo momento, esperando que a novas escolas de Medicina formem – como já o estão a fazer – mais médicos e que eles entrem no mercado.
GHAcha que é uma boa forma de resolver o problema ir buscar médicos ao
estrangeiro?
JS
– Que outra alternativa temos? Não vejo qual. Mesmo que os hospitais funcionem de forma mais eficiente e com níveis altos de qualidade nos cuidados; mesmo que os cuidados de saúde primários funcionem de forma mais eficiente e com mais aproveitamento dos seus recursos médicos, continuaremos a ter assimetrias fortes. Há pontos do país com falta significativa de clínicos – muitas vezes de Medicina Geral e Familiar – e temos de ir buscá-los a algum lado. Aliás, é curioso que essa situação embora seja mais gravosa para o SNS, também o é para sector privado.
GHNos EUA está a decorrer a fase final da corrida eleitoral para as presidenciais. Os dois candidatos (Obama (Democrata) e McCian (Republicano) têm referido que a situação de 46 milhões de pessoas sem direito à saúde não pode continuar. Ficamos, no entanto, sem saber qual o percurso que pode vir a ser tomado. Tem alguma precisão?
JS
– Eu já me enganei no passado e, agora, tento refrear um pouco o meu optimismo.
Prefiro esperar para ver. É verdade que a Senadora Clinton tinha propostas mais claras relativamente à Saúde. Concretamente em relação à questão da universalidade que é a questão mais critica do sistema de Saúde norte-americano.
O senador Obama não tem uma opinião tão clara quando a senadora Clinton e, de alguma maneira, McCain representa a continuidade da politica republicana nesta matéria. A haver mudança ela só acontecerá com a vitória do candidato Democrata.

entrevista de Marina Caldas, GH n.º 38
Curriculum Vitae - Jorge Simões
> Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
> Pós-Graduação em Administração Hospitalar, da Escola Nacional de Saúde Pública
> Pós-Graduação em Estudos Europeus, da Faculdade de Direito de Coimbra
> Pós-Graduação em “Application of Industrial Engineering Techniques to Hospital Management”, do Health Policy Institute das Universidades de Boston e de Wisconsin, Estados Unidos
> Doutoramento em Ciências da Saúde, pela Universidade de Aveiro
> Professor associado convidado da Secção Autónoma de Ciências da Saúde da Universidade de Aveiro
> Docente de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
> Docente de Gestão e Economia da Saúde da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
> Docente de Gestão de Unidades de Saúde da Universidade Católica de Lisboa
> Docente do Instituto Nacional de Administração
> Administrador nos Hospitais da Universidade de Coimbra
> Consultor do Presidente da República, Jorge Sampaio, para os Assuntos da Saúde
> Presidente da Comissão para a Sustentabilidade do Financiamento do Serviço Nacional de Saúde

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