domingo, novembro 30, 2008

O Mundo ao contrário

Algumas notícias e outros dados conhecidos nos últimos dias fazem pensar estarmos à beira de uma das alterações mais profundas do mercado farmacêutico de ambulatório português dos últimos 30 a 40 anos.

No passado dia 22, a ministra Ana Jorge foi à sessão solene de encerramento do Congresso Nacional das Farmácias dizer duas frases-chaves para que essa alteração se inicie. São elas:
«O trabalho de negociação com os parceiros que tem sido desenvolvido ao longo deste ano tornou evidente o consenso de que não é indispensável a intervenção do Governo na fixação das margens de cada agente económico no sector do medicamento.
«Ao Estado deve continuar a competir a responsabilidade de fixar os preços máximos dos medicamentos, garantindo e salvaguardando o direito ao acesso do cidadão, competindo aos restantes agentes económicos definir as margens adequadas ao seu negócio.»

Esta declaração «liberal» ou liberalizadora, contendo, desde logo, uma mentira evidente (o «consenso» referido não existe, segundo apurámos falando com responsáveis do sector), vinda da ministra que se desdobra em declarações de defesa do SNS, escolhida para a função, dizem abalizados comentadores políticos, por ser conotada com a «ala esquerda» do PS, parece, assim, estranha, e soou como uma fatalidade. Mais: nesse dia, a agência de comunicação da ANF (a LPM) emitiu um comunicado, cujo último parágrafo diz o seguinte:
«No encerramento do 9.º Congresso Nacional das Farmácias, a ministra deixou ainda expressa a intenção de o Ministério da Saúde continuar a cooperar com as farmácias na implementação das medidas em falta do Compromisso com Saúde, assinado entre a ANF e o Governo em Maio de 2006, nomeadamente a prescrição de medicamentos pelo nome genérico (DCI), a dispensa de medicamentos hospitalares nas farmácias, a liberalização das importações paralelas, e a dispensa em dose individualizada.»

Primeira perplexidade
Debalde procurámos no discurso de Ana Jorge estas referências concretas. Elas não estão lá, nem foram ditas como «bucha» pela governante; primeira perplexidade. Segunda: nos dias seguintes, os órgãos de Comunicação Social citaram este comunicado amplamente e nada foi desmentido, ao menos até ao momento. Porquê?
Que quer Ana Jorge, ou melhor, o Governo, dizer com o antes citado? Resumamos, para os leitores menos identificados com o essencial do sector farmacêutico: nas últimas décadas, o Governo tem fixado quase tudo na área do medicamento, desde os preços e comparticipações do Estado até às margens de comercialização dos vários intervenientes (empresas farmacêuticas, distribuidores, armazenistas e farmácias). Porquê? Porque tem sido consenso político que, sendo o Estado o grande pagador dos medicamentos prescritos e dispensados em ambulatório, deve regulamentar esses aspectos em pormenor, evitando distorções graves de mercado.
Ora, ao que parece, algo fez com que o actual poder socialista se prepare para quebrar este equilíbrio de décadas, criando um «desequilíbrio» de consequências imprevisíveis.
Que queremos nós dizer com isto?
Fruto de uma impressionante e bem calculada estratégia de longo prazo, a Associação Nacional das Farmácias (ANF) detém, no seu majestoso grupo empresarial (ver www.anf.pt), capacidades que lhe permitem partir de alguns factos sólidos para um conjunto de ilações.

Os factos
Os factos, primeiro. Através da AllianceHealthcare (ex-Unichem), o «grupo ANF» tem, formalmente, 30% da área de distribuição sob controlo directo, garantindo fontes do sector que, informalmente embora, o grupo controla também um conjunto de pequenas-médias empresas e cooperativas (significando mais 20 ou 30% deste subsector); no armazenamento, a situação é ainda mais dramática para qualquer lógica de concorrencialidade, visto que se tem como certo que 70% da capacidade do País está sob controlo directo daquela entidade; por último, mas não em último, é sabido que as 2500-2600 farmácias de ambulatório têm massivamente (mais de 90%) um alinhamento total com os interesses da sua Associação. Compreensivelmente, de resto.
Agora, as ilações. Mormente nesta fase de dificuldades para grande parte das empresas farmacêuticas, entregar, com este liberalismo serôdio, nestas circunstâncias, à «livre» determinação do mercado a definição das regras do jogo, deixando aos restantes agentes económicos o encargo de «definir as margens adequadas ao seu negócio», é uma decisão hipócrita, pressupondo que o Governo sabe do ponto de partida actual, ou inconsciente, se acaso no Executivo ninguém percebe verdadeiramente o que vai originar com esta mudança de regras.

Desinformação?
Colocamos esta possibilidade, a da desinformação no Executivo, posto que, em boa verdade, não é informado quem quer, como sabemos. Quem, no Governo de José Sócrates, tinha, a par de todos os seus defeitos, uma percepção razoável do sector, o ex-ministro António Correia de Campos, já lá não está há uns meses, e o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Francisco Ramos, que tem algum conhecimento da área, não por acaso tem sido o alvo privilegiado das críticas dos responsáveis da ANF e parece estar em «perda» neste momento (senão, como explicar que, tendo o mesmo sido praticamente insultado pelo Dr. João Cordeiro e outros dirigentes da ANF, em várias das suas recentes comunicações públicas, incluindo a cerimónia de abertura do mesmo Congresso, ninguém tenha vindo em sua defesa e tenha sido mantida a ida de Ana Jorge ao encerramento, que decorreu, aliás, sob o signo do entendimento? No entanto, a verificar-se a hipótese alternativa, estaremos perante uma verdadeira aberração num assunto de grande sensibilidade, criada pela política «politiqueira» que impera entre nós.

Se o Governo socialista ora em funções abrir esta «caixa de Pandora», deixando a ANF a controlar o sector, será, de facto, um escândalo digno de nota. Um verdadeiro Mundo ao contrário. O facto de o mesmo Governo que iniciou funções apontando, no próprio discurso de posse do primeiro-ministro, o estatuto da propriedade das farmácias como exemplo de instrumento de pressão a discutir, se propor, a terminar a legislatura, entregar todo um sector à ANF será caso para, pelo menos, perguntarmos «que diabo se passa aqui?», que forças originam estas rotações de um partido político com as responsabilidades do PS?

JM Antunes, Tempo de Medicina, 01.12.08