sábado, janeiro 17, 2009

MS, Guiné Bissau


“Gostava de conseguir baixar a taxa de mortalidade materno-infantil”

Camilo Simões Pereira, Ministro da Saúde da Guiné-Bissau, esteve em Portugal para participar na III Conferência de Gestão Hospitalar dos Países de Língua Portuguesa, de 29 a 31 de Outubro, a convite da APAH. A GH conversou com o ministro, que revelou as dificuldades e os desafios da Saúde naquele país africano, onde a esperança média de vida é, neste momento, de 46 anos.
A conversa da GH com Camilo Simões Pereira ultrapassou a questão da Saúde. Falámos de tudo. Principalmente sobre a realidade de um país onda ainda não se conseguem assegurar os cuidados mínimos e básicos de saúde à população e onde a Educação é a chave para mudar tudo o resto.
Gestão HospitalarHá quanto tempo ocupa o cargo de Ministro da Saúde?
Camilo Simões Pereira (CSP)
– Sou ministro há cerca de dois meses e duas semanas. Faço parte do sistema há mais de 20 anos. Sou médico, cirurgião. Comecei a minha carreira no Hospital Nacional Simão Mendes, em 1986. Posteriormente assumi a Direcção do Serviço de Cirurgia do hospital. Mais tarde tornei-me director do Hospital Nacional Simão Mendes.
Depois, e paralelamente à minha actividade como cirurgião, fui durante sete anos director da Escola Nacional de Saúde, onde permaneci até à minha nomeação para ministro.
GHTem uma vasta experiência, não só da prática clínica como também ao nível da administração. Como se sente na pele de ministro da Saúde?
CSP – Antes de mais é um desafio. Ser ministro da Saúde nas condições difíceis que enfrentamos é, acima de tudo, um grande desafio. Todos os dias temos problemas para resolver e nem sempre temos as respostas necessárias. As carências
são imensas e praticamente a todos os níveis. A verdade é que dependemos, em grande parte, das ajudas externas.
GHQue diagnóstico faz da Saúde na Guiné-Bissau neste momento, agora como Ministro…
CSP – Sempre estive dentro do sistema, em particular do Ministério da Saúde e, portanto, conheço a realidade a diferentes níveis. O sistema de saúde guineense tem imensos problemas, muitos deles graves. Existem prioridades que temos de resolver, como baixar a elevadíssima taxa de mortalidade materno-infantil. Para isso temos de investir nos recursos humanos, quer em qualidade quer em quantidade; em unidades prestadoras de serviços e, acima de tudo, convencer
a população a procurar os serviços em tempo útil, o que significa investir na acessibilidade.
GHO que está a ser feito para melhorar a acessibilidade?
CSP
– Neste momento temos um Plano Nacional de Planeamento Sanitário. Não é o primeiro documento desta natureza que elaborámos mas o anterior, devido aos conflitos no país, foi abandonado. Este plano é, portanto, o segundo e está praticamente finalizado. Acredito que, em breve, será possível avançar a fase de implementação.
Os nossos indicadores mais desfavoráveis são a taxa de mortalidade materno-infantil (como já disse), a infecção por HIV/Sida e outras doenças infecciosas – como o paludismo ou o sarampo. Esta última poderá ser mais facilmente ultrapassada desde que consigamos vacinar a população.
GHExiste um plano de vacinação?
CSP – Sim, temos um plano de vacinação e nos últimos tempos demos conta de uma maior adesão por parte dos populares. Os nossos técnicos têm ido ao encontro da população, nas suas casas. Com as novas vacinas, através das quais se reduz o número de tomas, pensamos que os resultados vão certamente melhorar. Tínhamos crianças que faziam a primeira dose mas falhavam as seguintes. Com as novas vacinas, resolve-se este problema e acredito que vamos conseguir reduzir essa deficiência. Quanto ao HIV/Sida, a prevalência tem vindo a subir. Os valores estatísticos dizem-nos que temos entre os 6, 8 e os 7 % da população infectada.
GHÉ muito gente…
CSP – É muita gente, sobretudo numa população de 1 milhão e 300 mil habitantes. É ainda mais grave tendo em conta que a prevalência não tem parado de subir.
Começámos a fazer o tratamento das mulheres grávidas, para reduzir a taxa de transmissão mãe-filho e, nos adultos, temos vindo a introduzir o tratamento antiretroviral. Mas temos um problema: o risco de ruptura de stock.
GHQuem é que vos apoia no fornecimento desses fármacos?
CSP – O Brasil tem-nos fornecido, gratuitamente, a terapêutica antiretroviral, mas queremos fazer mais e, por isso, estamos a criar uma fundo nacional para aquisição destes medicamentos, que – como todos sabem – são caríssimos.
GHQuantos médicos existem na Guiné-Bissau? Com que quadros conta?
CSP – Temos já um leque importante de profissionais guineenses, mas, infelizmente, a maioria está concentrado em Bissau. Também temos médicos cubanos, chineses e um grupo de médicos espanhóis.
GHMas têm falta de médicos, ou não?
CSP
– Temos sim, sobretudo em algumas especialidades. Nos hospitais regionais temos algumas carências. Gostaríamos que todos os hospitais regionais tivessem, pelo menos, especialistas em Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria e Cirurgia.
GHComo estão os centros de saúde?
CSP – Temos três tipos de centros de saúde. No primeiro só fazemos consultas externas; no segundo, além das consultas também fazemos tratamentos e, finalmente, o terceiro tipo onde se faz também alguma intervenção cirúrgica.
Para além dos hospitais, é esta a diferenciação que fazemos das unidades. Também aqui temos carências na assistência médica.
GHE de outros profissionais de saúde?
CSP
– Temos muita falta de técnicos de radiologia. Nos laboratórios, os recursos são razoáveis, comparativamente com tudo o resto. Em Oftalmologia também há uma enorme carência. A verdade é que temos centros de formação e de ensino, mas o êxodo é grande. O abando é muito grande. Continuamos a fazer formação e, através do Plano Nacional de Desenvolvimento de Recursos Humanos, projectamos as nossas necessidades a longo prazo. Neste sentido, a Escola Nacional de Saúde tem dado esse apoio, além de termos, também, profissionais que se estão a formar no exterior, com bolsas que nos são concedidas. O problema é que nem todos regressam.
GHNão é atractivo trabalhar a Guiné?
CSP – Tem tudo que ver com os salários. Os médicos, na Guiné, ganham muito mal…
GHQuanto?
CSP
– Um médico ganha, em média, 200 euros por mês. As pessoas procuram completar os seus rendimentos, trabalhando também no serviço privado.
GHSe um médico ganha tão pouco, o resto da população vive com muito menos ainda…
CSP – Sim, é uma realidade. Mas temos de acreditar no futuro. Eu acredito que depois das eleições a situação vai melhorar, com o aumento dos salários para todos os prestadores do Serviço Público.
GHA população tem capacidade para pagar os cuidados de saúde privados?
CSP – O paradoxo é que, de facto, as pessoas pagam. Apesar de sabermos que a nossa população é pobre, as pessoas arranjam sempre uma forma de pagar. Depois, há pessoas que têm seguros de saúde e preferem o serviço privado a sujeitarem-se às longas esperas no público.
GHIsso não é um sinal da fraca capacidade do serviço público face ao privado?
CSP – Não encaramos a questão dessa forma. Vemos o serviço privado como complementar ao público. Neste momento é necessário que assim seja. Se todas as pessoas recorressem ao serviço público não conseguiríamos dar resposta. Inclusivamente, os profissionais que estão a exercer no público também trabalham no privado. São sectores complementares. Para os profissionais de saúde, não é possível viver apenas do salário que o serviço público paga.
GHComo é financiada a Saúde?
CSP
– É difícil, mas existem alguns aspectos a considerar quanto ao financiamento do sector público. Existe o Orçamento Geral do Estado (OGE), mas é fictício – está no papel, mas o plano de execução é muito baixo. Depois, e nestes primeiros tempos, temos ido buscar financiamentos paralelos para complementar o orçamento necessário (básico). Temos tentado conseguir captar algum financiamento através das seguradoras e do Instituto da Segurança Social. Há que criar uma ligação entre as seguradoras, o Instituto e o Ministério da Saúde.
GHA população contribui para a Segurança Social?
CSP – Os funcionários públicos sim, mas esse dinheiro não é encaminhado para a saúde. Temos de encontrar uma forma de canalizar os recursos da Segurança Social e das seguradoras. Perde-se muito dinheiro que deveria reverter para o sector público e que iria melhorar muito a prestação de cuidados de saúde. Paralelamente, temos uma política de recuperação de custos, isto é, uma taxa moderadora paga pelos utilizadores do serviço e que reverte a favor da instituição de saúde.
GHServe assumidamente para financiar o serviço?
CSP
– Sim. Não é muito, mas é alguma coisa. Depois, temos aquilo a que chamamos a iniciativa de Barmaco, que é uma forma de co-financiamento e co-gestão com a população, a nível regional. A população organiza-se quanto à cobrança e à gestão de fundos, em conjunto com a administração dos hospitais regionais ou sectoriais.
GHÉ uma espécie de sociedade entre o hospital e a população de uma determinada região…
CSP – Sim. Todos contribuem para o fundo e todos participam da gestão desse mesmo fundo.
GHComo está a Guiné ao nível de equipamentos, sejam infra-estruturas, sejam dispositivos e aparelhos clínicos?
CSP – Temos falta. Neste momento estamos numa fase de reestruturação de alguns hospitais. Temos hospitais em fase de reconstrução ou ampliação. Posteriormente serão equipados. Vamos melhorá-los, isto porque há que diminuir as evacuações dos hospitais regionais para os hospitais centrais. Queremos criar uma resposta adequada, que não sobrecarregue os hospitais centrais. Os hospitais regionais têm sido espaços de trânsito, onde os pacientes são monitorizados e, depois, enviados para os hospitais centrais.
GHQuem têm sido os países amigos da Guiné?
CSP
– Temos um hospital que está a ser construído pelos chineses. O Brasil tem oferecido a terapêutica antiretroviral. Portugal também tem ajudado: está a apoiar na reconstrução de um hospital e no abastecimento de outro. Por outro lado, Portugal tem sido uma ajuda muito importante na evacuação de doentes. Temos evacuado muitos doentes, principalmente com problemas renais e cardiovasculares. Depois temos Cuba, que é um parceiro tradicional principalmente no que se refere à formação. Existem muito professores cubanos a leccionar na Guiné. Embora haja colaboração na prestação de serviços, a principal ajuda de Cuba é na formação. Paralelamente, existem uma série de Organizações Não Governamentais (ONG) que nos apoiam.
GHE qual a origem dos prestadores privados? São investidores estrangeiros?
CSP – Não. Os privados, na sua maioria, são guineenses mas, aos poucos, temos vindo a assistir a um crescente investimento estrangeiro. Temos investidores a chegar do Senegal, do Líbano, da Índia, da China, de Israel…
GHEstão claramente abertos ao investimento estrangeiro?
CSP
– Estamos, mas de alguma forma vamos ter de coordenar a situação para que não percamos o controlo da situação e para que o crescimento deste sector não seja desorganizado. Uma das áreas que nos preocupa imenso é a do exercício farmacêutico. Há uma proliferação de farmácias e não sabemos qual a sua proveniência…
GH Não existe um instituto do medicamento?
CSP Não. Acabámos de aprovar em Conselho de Ministros um decreto regulador do exercício das farmácias, porque é uma área muito sensível.
GHCom um risco sério da comercialização de medicamentos contrafeitos…
CSP – Esse é um dos problemas. Sem controlo, corremos esse risco.
GHNa Guiné existe formação em Farmácia? Têm farmacêuticos?
CSP – Existe formação, mas temos poucos profissionais. Temos técnicos de farmácia, mas existem zonas onde é muito difícil fazer a coordenação destas farmácias. Temos de formar mais técnicos, porque não temos os suficientes.
GHNeste cenário, de inúmeras dificultares, quais são aquelas que mais o preocupam? Se tivesse os meios e os fundos necessários por onde começava?
CSP – Investia na capacitação e formação dos recursos humanos. Paralelamente, investia nas infraestruturas e equipamentos hospitalares. A partir daí, acredito, conseguiríamos ter uma resposta adequada.
GHExistem metas para a formação?
CSP – Está projectada a necessidade de profissionais para os próximos quatro anos. Estamos a preparar a formação de especialistas no estrangeiro, em Cuba.
GHE em Portugal?
CSP – Já enviámos. Houve uma época em que tivemos muitos médicos a fazer formação em Portugal. Não voltaram. Temos mais médicos formados fora do que os que estão a trabalhar no país. Acredito que só melhorando a parte salarial podemos recuperar esses profissionais, doutra forma não acredito que voltem. Temos muita gente formada e bem formada, só que as condições para regressar à Guiné-Bissau não são atraentes.
GHQuando pensa que vai ser possível ultrapassar esta situação e melhorar os salários dos profissionais?
CSP
– Depois das eleições (16 de Novembro passado), se o Partido Africano pela Independência de Guiné-Bissau, ao qual eu pertenço, ganhar as eleições, haverá uma melhoria dos salários. A partir daí, terá de haver um reajuste. Temos de conseguir reter os nossos quadros.
GHQuais são as principais fontes de riqueza da Guiné?
CSP – Temos a indústria madeireira e a pesca. Temos uma agricultura de subsistência. Na época colonial, a Guiné exportava arroz, agora importamos. Se conseguíssemos recuperar alguma capacidade já seria bom, pelo menos para não precisar importar. Temos indicadores de que existe fosfato e, dentro de alguns anos, começaremos a explorar este recurso.
GHComo vive a população?
CSP – A maioria da nossa população é rural, são camponeses. Vivem da agricultura e da pecuária. Não há mais nada. Em Bissau, temos o comércio informal. Temos uma taxa muito elevada de analfabetismo. E, a Educação e a Saúde são duas áreas que têm de andar de mãos dadas. Por mais que invistamos em formação e infraestruturas na Saúde, enquanto a instrução da nossa população for baixa, dificilmente as pessoas vão perceber o que pretendemos delas, ao nível da Saúde. Por exemplo, queremos aumentar o número de partos assistidos mas para conseguir isto temos que aumentar o nível de conhecimento da população. As mulheres grávidas têm de ser acompanhadas, depois as crianças têm de ser vacinadas e ainda é muito difícil fazer tudo isto. Temos de investir seriamente na área da Educação. O povo ainda não entende…
GHA população está consciente do que é a Sida? Existe muito preconceito?
CSP – Temos duas realidades: as pessoas que sabem alguma coisa sobre a doença, e que rejeitam os familiares infectados; aqueles que desconheçam a doença, por completo, ou a entendem como qualquer outra doença, como a gripe ou o paludismo. Por mais que lhes expliquemos não têm noção do risco.
GHQual é a faixa etária mais afectada?
CSP – Os jovens, entre os 15 e os 20 anos – desde o início da actividade sexual. Apesar dos aconselhamentos temos zonas muito afectadas. Quanto à prevenção e uso do preservativo, existem zonas onde a religião tem uma influência muito grande; onde é muito difícil conseguir modificar comportamentos.
Ainda temos outro problema para resolver e que tem de ver com a mentalidade e a cultura: a mutilação genital feminina. Ainda existe um grupo da população que mantém esta prática.
GHA mentalidade é um dos obstáculos mais difíceis de ultrapassar…
CSP
– Veja, por exemplo, o problema da cólera. É uma doença que tem que ver com princípios básicos de higiene. Lavar as mãos e manter a casa limpa são medidas simples de prevenção. No entanto, as pessoas não entendem. A tradição é muito forte. Existem rituais onde se concentram grande número de pessoas para comer, beber e dançar. Sem higiene, estes acontecimentos depressa se transformam em focos de propagação da doença.
GHMas, antes de mais, seria necessário assegurar o saneamento básico à população… água canalizada e esgotos são infra-estruturas que, por si só, melhoram as condições de saúde…
CSP – Sim, acredito que depois de estarem garantidas as condições básicas, será mais fácil educar a população. É verdade que a cólera, sendo uma doença, é um problema do Ministério da Saúde, mas é também um problema de saneamento que tem de ser resolvido.Neste momento estamos a passar por uma grave epidemia de cólera. Quando esta crise tiver passado, vamos ter de nos sentar, com os outros intervenientes, e mostrar-lhes que não podemos esperar pela próxima epidemia. Temos de investir em saneamento básico rapidamente. Para combater a cólera é preciso um plano interministerial.
GHQual a dimensão da actual epidemia de cólera?
CSP – Foi declarada em Maio. Desde então até agora (início de Novembro), há cerca de 12 mil pessoas afectadas.
GHComo actuam numa situação destas?
CSP
– Sempre que é detectada uma situação suspeita, normalmente diarreia, há uma equipa que vai à casa do doente onde é feita a desinfecção da habitação e das dez habitações em redor, de modo a quebrar a cadeia de transmissão. O problema é que numa situação de epidemia não é possível acorrer a todo o lado. Basta haver dez doentes – dez doentes significam mais de 100 casas para desinfectar. É muito difícil.
GHÉ um desafio sobrevier na Guiné-Bissau. Qual é que vossa esperança média de vida?
CSP – Estava nos 41 anos. Agora estamos próximos dos 46 anos. Se as pessoas cumprissem os planos de vacinação, se procurassem atempadamente os serviços de saúde…
GHMas é possível assegurar esses cuidados mínimos?
CSP – Não, ainda não. Para vacinar temos condições, mas as mães não levam as crianças. A cobertura deixa muito a desejar. Se tivéssemos uma boa cobertura na vacinação e de planeamento familiar, acredito que poderíamos melhorar os nossos resultados.
GH Acredita que poderá mudar a Saúde da Guiné-Bissau?
CSP
– Estou optimista. Temos cada vez mais crianças na escola. Antes pensávamos que a mudança passava por influenciar o comportamento dos adultos. Não é verdade. São as crianças que influenciam os adultos. São elas que levam para casa a informação e quem gera a mudança de hábitos.
GHO que é que lhe tira o sono? O que gostaria de deixar feito enquanto ministro da Saúde?
CSP – Neste momento? Neste momento é a cólera que não me deixa dormir. Gostaria que a cólera desaparecesse de uma vez por todas. Depois, gostaria de poder dizer que consegui baixar a taxa de mortalidade materno-infantil.
entrevista de marina caldas, GH n.º 40

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