domingo, fevereiro 03, 2008

Um país zangado


Com o petróleo a cem dólares e a perspectiva de uma crise séria, não é fácil dar a volta ao texto
As remodelações provocam, em geral, mais problemas do que aqueles que resolvem. Repare-se: José Sócrates substituiu dois ministros que estavam sob fogo cerrado das oposições e dos jornais. Pensou, talvez, que, por um lado, essa pressão abrandaria e, por outro lado, que aqueles que o criticavam por se ter tornado surdo às críticas, pelo menos reconhecessem que fez bem em dar-lhes ouvidos. Mas não foi nada disso que aconteceu. O que vieram dizer as oposições e muitos dos comentadores mais inteligentes e cotados foi que Sócrates sucumbiu às pressões do PS, cedeu ao clamor da rua - e, por causa disso, está praticamente acabado -, que outros ministros deviam sair também, que a remodelação não serve para nada se as políticas se mantiverem, ou que será campanha eleitoral no caso de se alterarem. Claro que, se os recém-chegados ao Governo ou o próprio primeiro-ministro tivessem proclamado que, a partir de agora, tudo passaria a ser diferente nas áreas remodeladas, seriam zurzidos da mesma forma e pelas mesmas vozes, porque, aí, o Governo estaria a mudar de política e de programa em função dos ministros que Sócrates se lembra de demitir ou de nomear.

Não deve ser fácil ser prior de uma freguesia assim. E o caso de Correia de Campos, verdadeiro e único motivo desta remodelação, foi curioso e deveras extraordinário. Há uma semana, toda a gente lhe falava ou falava dele com duas pedras na mão; depois da remodelação, raro foi o comentário à sua saída que não contemplasse a piedosa mas forte suspeita de que o homem teve coragem e tem razão quanto às políticas que estava a tentar aplicar.

São, na verdade, escassos e muito duvidosos os ganhos políticos das remodelações, especialmente quando destinadas a amaciar os humores de um país zangado, humores que os «media» reflectem e potenciam largamente. As remodelações são feitas só porque é preciso fazer alguma coisa quando o país - ou aquela parte do país que consegue fazer mais barulho nas televisões -, começa a ficar furioso e este ou aquele ministro cai na insustentável situação de patinho feio, como foi o caso de Correia de Campos: aquele em que se polarizam todas as críticas e males do mundo.

Em boa verdade, o ministro não caiu só porque houve uma dúzia de casos polémicos em torno do encerramento de urgências, SAP e blocos de partos. Ou porque Manuel Alegre decidiu que era tempo de trazer de novo ao palco o já conhecido auto da divergência e talvez secessão. Correia de Campos caiu, ou foi sacrificado, porque as mexidas na saúde mexeram com as pessoas, sim, mas também porque os funcionários públicos se sentem mais pobres e mais inseguros no emprego, porque os professores já só pensam em reformar-se o mais depressa possível, porque os militares perceberam que o seu belo subsistema de saúde foi ao ar e porque raros são os sectores que não apresentam, pelo menos, uma razão de queixa. Uns por terem, de facto, razões de queixa, outros porque, em Portugal, a queixa é uma doença contagiosa. Certo é que ela alastrou de tal maneira nestes anos de combate ao défice que, entre o salário que pouco sobe e a prestação da casa que não pára de subir, o país se mostra inseguro e zangado. Com o petróleo a cem dólares e a perspectiva de uma crise económica séria, não vai ser fácil dar a volta ao texto.

Marinho, o provocador

O novo bastonário da Ordem dos Advogados escandalizou o mundo político e muitos dos seus colegas de profissão quando decidiu falar de corrupção em voz alta. Fê-lo em termos pouco comuns entre nós e o problema está mesmo em ter falado em voz muito alta. A corrupção é uma moléstia que, por natureza e definição, medra no segredo e na discrição. O que mais lhe convém é precisamente que se fale dela por metáforas, alegorias e paráfrases.

António Marinho faz o contrário e comporta-se como o velho elefante da loja de porcelanas. Com esta diferença: ele não parte a loiça por acaso ou falta de jeito, mas sim com a deliberada intenção de a partir. Por isso vai lembrando que diz o que diz porque está a cumprir um programa sufragado pela maioria dos advogados.

Isto de os advogados, enquanto classe profissional, aparecerem a pretender liderar o discurso contra a corrupção é um tanto bizarro. E só se explica porque quem ganhou as eleições para bastonário não foi exactamente o causídico Marinho Pinto, mas António Marinho, o comentador de Justiça na TV - que, aliás, acumulou durante anos o jornalismo e o foro, profissões bem difíceis de compatibilizar no plano dos respectivos códigos éticos. A sua eleição e o seu desempenho, no estilo desassombrado e provocador que é o seu, constituem um grande e potencialmente perigoso desafio à Ordem estabelecida. Mas um desafio de que o bastonário sairá sempre ganhador porque o lugar lhe dá estatuto e projecção pública para prosseguir, eventualmente noutras instâncias - políticas ou mesmo partidárias por exemplo - a causa que agora abraçou.

Dito isto, a corrupção existe e todos temos a sensação de que floresce dia a dia. Que Marinho fale muito alto e incomode os ouvidos mais sensíveis, incluindo os da sua classe profissional, não deve constituir problema. Pode ser que, assim, alguém o ouça.
Fernando Madrinha, semanário expresso, edição 1840 de 02.02.08