domingo, fevereiro 03, 2008

Herói ou vítima propiciatória?



Correia de Campos é o mais competente político português em matéria de saúde pública. Mas as coisas são o que são

Os processos reformistas são sempre muito complexos e habitados por contradições cuja ponderação deve ser feita prudentemente. Num primeiro momento, a força das opiniões e dos interesses instalados, os hábitos e as rotinas, o receio do desconhecido e a incomodidade da mudança agregam-se numa formidável coligação que pode ser espúria, mas que não deixa de ser eficiente.
Por isso, nos processos reformistas, a questão central é a passagem do ponto de não-retorno, ou do "rubicão", momento a partir do qual já não há outra alternativa que não seja seguir em frente. Se esse ponto for ultrapassado, começa a desagregar-se a coligação de resistências. Esta mutação é sempre gradual e também não isenta de sobressaltos, mas autoconsolida-se se as reformas começarem a produzir efeitos.
A própria passagem do "rubicão" não é, ela própria, isenta de turbulências. Gosto, por isso, de a comparar à passagem da barreira do som. E não isenta de riscos: ou porque ilusoriamente se julga que esse é o ponto de chegada e não um novo ponto de partida, ou porque se tenta ainda cautelosamente navegar em termos que permitem admitir o regresso (como se a vista do sucesso fosse um momento de descompressão, pois a adrenalina gerada pelas dificuldades era, afinal, o verdadeiro sustentáculo) e com isso se começa a andar à roda, ou porque se procura seguir um caminho que surja como alternativo e menos dificil, na esperança de que por aí também se alcance a terra prometida. Ou até mesmo porque se pensa que "agora é a descer", quando isso, afinal, é pura ilusão de óptica.

Os processos reformistas são desgastantes e exigem uma estamina muito elevada dos que os lideram. A personalização das questões, a utilização (fácil) de falhas que são muitas vezes o resultado da resistência à mudança ou os estertores da agonia das soluções em perda, a barragem dos media, tudo isso são factores que liquidam mais do que um reformador e que podem fazer recuar as reformas. Como se o ímpeto reformista fosse uma espécie de acne juvenil, uma ilusão ou uma teimosia que passam com o tempo.
Lembrei-me disto tudo a propósito da saída do Governo do ministro Correia de Campos. Que há dias afirmei publicamente ser provavelmente essencial (como teria sido a saída da ministra da Educação, mas isso são outras histórias), não para acabar com as reformas, mas para que possam ser concretizadas.

Correia de Campos é sem dúvida o mais competente político português em matéria de saúde pública. É um homem frontal e corajoso, que vai à luta, que dá a cara e enfrenta os adversários tentando desmontar os seus argumentos. É-me pessoalmente muito simpático, por isso; e admiro a sua verticalidade e inteligência. E até admiro a sua teimosia e a capacidade que tem de cometer erros, que é timbre de pessoas com o seu carácter.

Mas as coisas são o que são. Por um conjunto variado de questões (a maior das quais, sem dúvida, é a força dos interesses que enfrentou) tinha-se tornado parte do problema e não da solução. A crispação pessoalizada nele da sociedade civil, a hostilidade dos media, as críticas públicas de relevantes socialistas estavam a tornar inaudível a sua mensagem e seguramente que a base de apoio do PS (e as eleições autárquicas estão a chegar...) iria cada dia estar mais agressiva.O resultado seriam crescentes pressões para que arrepiasse caminho, para que tentasse conciliar o inconciliável, para meter o rossio na betesga, para chegar à terra prometida sem dores, para que alguma coisa mudasse e tudo ficasse na mesma. E se ele não cedesse acabaria afastado sem glória em nome do (inevitável) pragmatismo.

Fez bem em sair, com o seu prestígio intacto. Não por não ter cometido erros, mas por ter tido razão. Ficar seria inútil ou prejudicial.

Agora o importante é a resposta a algumas perguntas: já foi passado o "rubicão" das reformas? A nova ministra vai continuar a estafeta com a mesma estratégia e com a mesma determinação? Haverá vontade política para não ceder? Não existirá a tentação de recuar para as águas calmas da inércia e para a estagnação dos portos de abrigo? Não haverá a ilusão de que se podem fazer reformas sem desagradar, sem ferir interesses instalados?
A resposta a estas questões é decisiva para o Sistema Nacional de Saúde. Se este não for reformado e viabilizado, o que virá a seguir - que não tenhamos ilusões - é pura e simplesmente o fim do SNS. E é decisiva para Portugal, pelo sinal que dará durante estes dois cruciais anos: recuar aqui será o fim de Sócrates, pois ele já passou o "rubicão" há algum tempo, só podendo sobreviver se continuar em frente.

A resposta a estas questões irá permitir saber se Correia de Campos foi um combatente que se sacrificou pela sua causa ou mais uma vítima propiciatória no altar do arcaísmo português.
Imagine-se o que desejo. Admita-se aquilo em que acredito. Pondere-se aquilo que temo. E cá estarei um dia para concluir.
José Miguel Júdice, JP 01.02.08