domingo, janeiro 27, 2008

ACF, entrevista


"Menos profissionais para fazer mais"
Convicto de que os médicos são os melhores gestores de hospitais, Adalberto Campos Fernandes põe ordem no ingovernável Santa Maria desde 2005. Com a auto-estima dos profissionais diz ter conseguido uma unidade para mais 15 anos

Consta nos corredores' que vai ser o próximo ministro da Saúde.
Pois...Fico muito lisonjeado com esse tipo de comentário mas também já constou que eu ia para o sector privado fazer coisas muito importantes. Isso só serve a nossa auto-estima e mais nada do que isso.

O ministro interfere na gestão?
O ministro fala connosco regularmente, como fala com outros hospitais, e tem-nos dado sempre uma grande autonomia. Nós trabalhamos sempre num ambiente de grande confiança e identificação com os objectivos gerais do Ministério da Saúde e isso foi um ingrediente muito importante no sentido de irmos depressa e bem.

O que mais satisfação lhe deu mudar?
Eu formei-me em Santa Maria. Fiz aqui os meus primeiros tempos de internato e quando aqui entrei, em Junho de 2005, tive a percepção de que, em muitos locais por onde passava, era o mesmo hospital que eu tinha conhecido há 20 e muitos anos. Senti algum desânimo e descrença e quando o senhor ministro nos desafiou a provar que seria possível reverter a tendência de ingovernabilidade do hospital nós acreditámos e acreditámos no conjunto dos profissionais. Hoje o registo é de grande envolvimento e participação. Se for pelos corredores e falar com os profissionais sente isso. Não tenho dúvidas de que recuperámos muito da auto-estima perdida. Fizemos aquilo que é a obrigação de um órgão de gestão: dar aos profissionais altamente diferenciados e habilitados as condições mínimas de desempenho com segurança e eficácia e aos doentes os mínimos de conforto - estamos a falar de coisas muito simples, como os espaços públicos, as instalações sanitárias, as unidades de internamento. Estamos a falar de atribuir ao doente que usa o hospital público o mínimo de dignidade que o faça sentir o conforto necessário.

Tem as contas em dia?
Sim. Temos três anos consecutivos positivos mas o objectivo dos hospitais não é dar lucro, no sentido económico e financeiro. Há também que desmistificar esta ideia. O lucro destina-se ao único propósito que é reinvestir na modernização, conforto e reequipamento. É isso que nós temos feito. O que temos poupado do lado dos custos tem sido reorientado para o investimento.

Santa Maria é o 'fim de linha' para os casos complicados. Foi sentido algum efeito da reestruturação das Urgências?
Absolutamente nenhum. Temos tido uma afluência ao Serviço de Urgência marginalmente crescente, pouco significativa de ano para ano. Temos variações: tem crescido menos a Urgência de Pediatria e mais a de adultos, mas o número de utentes é relativamente estável.

Qual é a lista de espera?
A mediana geral está em cinco meses mas estamos muito melhor do que no ano passado e do que há dois anos.

O controlo biométrico foi polémico mas está funcionar. Como está a decorrer o processo?
O controlo biométrico não é, e nunca foi, uma arma de arremesso contra nenhum grupo profissional que exerce a sua actividade no sector público. Trata-se apenas de cumprir aquilo que é um imperativo legal, que é o controlo da assiduidade, mas é mais do que isso. É utilizar estas novas ferramentas electrónicas para desmaterializar todos os processos de controlo de assiduidade, faltas, férias, licenças... Portanto, há todo um conjunto de procedimentos de natureza administrativa de regulação dos funcionários com os hospitais que podem ser desmaterializados. Entendemos esta ferramenta como um sistema integrado de gestão de recursos humanos que dá, inclusivamente, aos próprios directores de serviço e às pessoas com responsabilidade de enquadramento a possibilidade de fazer uma gestão mais transparente e efectiva das próprias equipas. Isto não invalida que a biometria conviva com a flexibilidade, que é própria da natureza do trabalho médico. Estamos convencidos hoje, como sempre estivemos, que depois de apresentadas a explicação e a solução iria ser aceite sem nenhum tipo de dramatismo e iria servir, sobretudo, o aspecto último que é a modernização dos hospitais. Estamos a evoluir para a implementação do processo clínico electrónico e os acessos de segurança por via biométrica são muito úteis.

A informação clínica fica com um acesso mais restrito. O processo passa a ser mais seguro?
Seguramente, mais do que o registo em papel. Hoje já utilizamos no Serviço de Urgência o "Alert" - um sistema livre de papel em que a relação dos profissionais com os equipamentos é feita através da biometria -, e todo o bloco operatório está informatizado com um sistema de relação biométrica. Com a implementação de outras funcionalidades - como a prescrição electrónica quer de medicamentos quer de meios completares de diagnóstico e terapêutica, mas também a imagem digital - nós estaremos em condições de, no final deste ano, ter o processo clínico electrónico.

O sistema de controlo biométrico já está completamente instalado?
Estamos a meio do caminho. O hospital é muito grande, tem muitos colaboradores e há todo um processo de parametrização da aplicação que gere os recursos humanos. Mas também de formação, que quase tem de ser feita pessoa a pessoa. No primeiro trimestre deste ano, já com o Pulido Valente integrado no Centro Hospitalar Lisboa Norte, teremos concluída essa implementação.

O que mudou com o facto de ter deixado de ser apenas o administrador de Santa Maria para passar a ser também do Pulido Valente? Mudou alguma coisa ou foi só um cargo?
Não e seria muito negativo se tivesse sido por esse motivo. O sistema de saúde tem dinâmicas que são conhecidas de todos nós e temos que encontrar soluções nos modelos de organização que sejam, em cada momento, melhor adaptadas às necessidades das populações. Há muitos anos que o Hospital de Santa Maria trabalhava com o Hospital Pulido Valente, servindo a mesma área geográfica de referência local, regional e nacional, e integrava a mesma unidade de Saúde. Dir-lhe-ia que já existia uma prática de trabalho muito próxima, aliás, o Serviço de Urgência já era comum e partilhado por equipas conjuntas. Esta integração e gestão empresarial dos activos acrescentam património económico e financeiro. Acrescenta valor, sobretudo, do ponto de vista assistencial porque passámos a ter melhor organização dos meios. Tínhamos dois pequenos Centros de Urologia e passámos a ter um, vamos instalar no Pulido Valente um grande Centro de Cirurgia do Ambulatório de âmbito regional, estamos a ultimar negociações com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para a venda de um edifício que nos permite instalar, também no perímetro do hospital, uma Unidade de Cuidados Continuados Integrados de Saúde com 100 camas, vamos instalar uma Unidade de Cirurgia bariátrica - para a cirurgia da obesidade mórbida -, e uma Unidade de Fisiopatologia Respiratória vocacionada para a patologia do sono. De uma forma muito simples, esta junção torna o agrupamento hospitalar mais sinérgico e consegue a potenciar a resposta, sobretudo, em aéreas onde as listas de espera ainda são muito grandes.

Vai precisar de mais médicos.
Não, necessariamente. Vamos, sobretudo, precisar de continuar a trabalhar na reforma do modelo organizativo, introduzindo políticas internas de autonomia e de gestão por objectivos associadas a incentivos. Se o sector público for capaz de organizar o seu modelo de trabalho como o sector privado, alocando a remuneração e os incentivos àquilo que é a actividade assistencial e à qualidade dos cuidados prestados, o sistema comporta-se da mesma maneira. Eu até diria que, no limite, precisaremos de menos profissionais para fazer mais. Veja o exemplo do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica de Coimbra.

Mas, por exemplo, um especialista recém-formado ganha 1700 euros.
Ainda ganha. Eu sou um defensor forte de um serviço público qualificado, capaz de responder em patamares de qualidade e de diferenciação técnica muito elevada e isso não se consegue sem enquadramento técnico-científico, sem carreiras médicas e sem equipas. A medicina a retalho não existe. A medicina é um exercício que vive do trabalho de equipa e, portanto, exige hospitais com complexidade, com equipas multidisciplinares e, sobretudo, que os mais velhos continuem sempre a enquadrar os mais novos. O que é preciso fazer, e creio que está a ser feito - as orientações que o ministro da Saúde tem dado vão nesse sentido - , é introduzir um novo paradigma de gestão de recursos humanos e evoluir para mecanismos diferentes.

Ganha mais quem mais trabalha...
Sim, mas nunca prejudicando os critérios de qualidade, as necessidades de enquadramento técnico-científico e, portanto, a boa passagem de testemunho da competência profissional de uns para os outros. Autonomia na gestão, responsabilidade pelos cuidados prestados, um grande enfoque na segurança e na qualidade. Não podemos ter o princípio da normalização absoluta das estruturas de remuneração.

E como funciona em Santa Maria e no Pulido Valente?
Ainda estamos muito próximos daquilo que é o modelo de remuneração tradicional da Administração Pública. Em todo o caso, estamos a ensaiar já, em Radioterapia e em Ortopedia, modelos que se aproximam do Centro de Responsabilidade. Estamos convencidos de que, este ano, poderemos ter a possibilidade de concretizar experiências de criação de Centros de Responsabilidade nessa área. Também gostaríamos de ir por esse tipo de solução em áreas onde a pressão das listas de espera é muito forte, como a Oftalmologia.

É engraçado ter referido a satisfação pessoal porque os sindicatos dizem que "os privados não aliciam médicos, o sector público é que os empurra porque não os trata com respeito". Santa Maria é a excepção?
Não tenho a imprudência de classificar Santa Maria como uma excepção, até porque acredito que há muitos outros exemplos bons pelo país fora. O que eu lhe digo é que isso não foi feito por ninguém deliberadamente. Houve um arrastar de situações e uma degradação institucional - física muitas vezes - , que conduziu a que, nalguns momentos, muitos profissionais trabalhassem em condições que eu classificava, ou classifico, como quase heróicas. É preciso termos a noção de que, de uma forma geral, quem serve o Serviço Nacional de Saúde (SNS) o faz com grande entrega e em condições muito difíceis. Não creio que não estejamos em condições de considerar este bem público tão importante que é o SNS como um bem estimável. Portanto, temos de fazer todos os possíveis para o dignificar e dignificar é dar condições de trabalho que sejam aceitáveis.

Os médicos ainda fazem muitas horas extraordinárias?
Fazem as que são necessárias. O problema das horas extraordinárias tem que ver com a reconfiguração do modo de pagamento do trabalho médico, que é uma questão que nos ultrapassa a nós hospital. Mas o que se passa em Santa Maria é igual ao que se passa nos outros hospitais. Uma coisa garanto: as horas extraordinárias que são pagas são as necessárias para manter os níveis de segurança e de prontidão que um hospital como este tem que ter.

Gostava de ter mais médicos ou os que tem dão conta do recado?
Os que temos, de uma forma geral, dão conta do recado mas estamos sempre muito atentos aos jovens médicos que acabam a sua formação e que se especializam. Muitas vezes retemo-los.

Os tais que ganham 1700 euros.
Sim. Mas temos a capacidade, até porque somos um hospital com um grande número de internos, de ir regenerando o nosso tecido profissional e compensando as reformas.

O hospital não pode pagar mais?
Pode se fizer um contrato individual de trabalho. Há hospitais que estão a fazer isso mas temos tido alguma prudência. Até que esteja definido um equilíbrio entre carreiras e posições de carreira é imprudente que os hospitais, de uma forma relativamente acrítica, possam estar a estabelecer contratos de natureza individual que possam comprometer o equilíbrio. Numa organização com milhares de profissionais como a nossa, imagine o que é esse equilíbrio ser perturbado. Temos esperança que este ano de 2008 possa trazer algumas novidades sobre essa matéria e que ajude os hospitais, quer através de relações laborais quer através de Unidades Autónomas de Gestão ou de Centros de Responsabilidade, introduzir sistemas de incentivos.

Pensa ficar mais três anos?
Temos uma responsabilidade grande com o Centro Hospitalar Lisboa Norte, quer será lançado dentro de semanas.

O utente vai sentir alguma diferença?
Vai sentir à medida que as intervenções forem feitas. Eu falei-lhe da integração de serviços, da criação de áreas novas... Seguramente, que o utente vai notar cada vez menos tempo de espera para marcar uma consulta, para ter acesso a uma cirurgia ou a um meio complementar de diagnóstico e de terapêutica e cada vez melhores condições de tratamento. Sobretudo, vai ter a percepção de que os profissionais, para além de muito competentes, se encontram a trabalhar com a maior felicidade em ambas as instituições.

Qual é o sector que lhe dá mais 'dores de cabeça' nas despesas?
As despesas cresceram muito em hospitais como este, de fim de linha - somos o primeiro Centro de Sida no país e um dos maiores Centros de Oncologia a seguir ao IPO -, mas é, naturalmente, a área do medicamento. O medicamento está muito relacionado com a inovação terapêutica, que é fundamental para que as pessoas vivam cada vez mais tempo e melhor, mas comporta custos muito elevados. Apesar de tudo, temos conseguido manter as metas fixadas pelo Ministério da Saúde no crescimento e, sobretudo, uma negociação dinâmica com a indústria farmacêutica.

Tem pago a tempo e horas?
Temos melhorado os prazos médios. Estamos com prazos muito melhores do que tínhamos.

E que são de?
Não queria ter falta de precisão mas, neste momento, talvez 200 dias.

Notou diferenças com as novas regras para a aquisição de medicamentos inovadores, que agora têm de passar pelo Infarmed?
Não porque as Direcções Clínicas, em articulação com a Comissão de Farmácia e de Terapêutica, intervêm rapidamente. E, em circunstâncias limite, elas próprias tomariam a decisão de fazer a incorporação do fármaco.

Que sector gostaria de ter melhorado e não conseguiu?
Eu continuo a dizer que este hospital tem uma responsabilidade muito grande por ser de fim de linha e tem uma relação muito forte com a Faculdade de Medicina de Lisboa. Neste momento, estamos a trocar ideias no sentido de ver em que medida se podem aproximar as componentes hospitalar e da faculdade na óptica de se estabelecerem laços mais fortes, nomeadamente, na perspectiva de um grande Centro Académico de Medicina. Esse é um desafio estratégico para um hospital como o Santa Maria. Creio que a modernização da plataforma tecnológica é um processo que estará concluído dentro de um ou dois anos e há um aspecto fundamental que é a construção de um novo edifício pequeno de três pisos na parte de trás do hospital, onde concentraremos blocos operatórios, cuidados intensivos e hospitais de dia.

Tem luz verde e dinheiro?
Sim. Aliás, grande parte desse dinheiro faz parte das reservas próprias do capital do hospital e que permitirá garantir a subsistência em boas condições do Santa Maria para os próximos 15 anos.

Tem data marcada para abrir?
Este ano serão lançados os concursos para projecto e as obras iniciar-se-ão no princípio de 2009. Penso que em 2011/2, o edifício estará pronto. Permitirá que Lisboa possa ter três hospitais de grande importância para a cidade e para a região: Lisboa Ocidental, Lisboa Norte (que somos nós como o Pulido Valente) e Central (com o Hospital de Todos-os-Santos, que já foi anunciado).
Vera Lúcia Arreigoso, semanário expresso, edição n.º 1839, 26.01.08

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