sábado, janeiro 12, 2008

Rede de Urgências


"Ou há coragem para pegar nisto ou o sistema vai colapsar"

Peritos da comissão das urgências avisam que é crucial avançar, apesar da contestação. Há 230 doentes, por dia, em cada urgência .
Perante a contestação popular ao fecho de vários serviços de urgência, o PÚBLICO falou com dois responsáveis da comissão técnica que propôs esta reforma. António Marques e José Manuel Almeida reconhecem que os cidadãos recorrem às urgências porque o sistema não dá resposta às suas expectativas, mas frisam que a requalificação tem de avançar. "Ou temos coragem de pegar nisto neste momento ou daqui a uns anos o sistema vai colapsar", avisa António Marques, porta-voz da comissão.

PÚBLICO - Há um ano apresentaram a proposta final de requalificação de rede de urgências. Agora, lamentam que o ministro da Saúde ainda não tenha clarificado, formalmente, quais são os serviços de urgência a manter e a encerrar. Por que é que isso é tão necessário?

ANTÓNIO MARQUES - O trabalho da comissão não se resumiu à proposta de pontos de rede a considerar, foi muito mais amplo. Fizemos uma proposta de recomendações para a organização dos cuidados urgentes/emergentes e uma proposta de rede de referenciação (que define o encaminhamento dos doentes entre urgências). A implementação pode ser gradual. Agora, saber qual é o alvo tem que ser já. Isto é crucial. Se não tenho rede de referenciação real, não consigo fazer investimentos. Estou paralisado.

PUBLICO - A proposta de referenciação que entregaram há quinze dias não inclui alguns serviços de urgência, como o do Curry Cabral (Lisboa), cujo fecho propunham, mas que o ministro já anunciou que se vai manter aberto.

A. M. - Essa é uma decisão política do senhor ministro. Por isso é que nós queremos uma lista formal a dizer: isto sim, aquilo não. Não nos basta saber pelos jornais. [Quanto à referenciação], elaborámos uma proposta genérica que considera a referenciação primária, secundária e terciária.

JOSÉ MANUEL ALMEIDA - Se temos um traumatizado grave, não faz sentido ir para o serviço mais próximo porque de facto perde-se mais tempo se este não tem as valências necessárias. A urgência apropriada nem sempre é a mais próxima.

PUBLICO - Mas por que razão é que a referenciação é tão importante?

J. M. A. - O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem duas regras, a hierarquia e a referenciação - que implica complementaridade entre instituições. Mas não pode ser uma referenciação qualquer. Deve ser uma que garanta que é um instrumento de gestão para planear investimentos.

PUBLICO - O ministro diz que 55 por cento da reforma das urgências já está concretizada.

J. M. A. - Isso terá que lhe perguntar a ele. Esta reforma tem a profundidade duma reforma do SNS, é o pilar.

PUBLICO - A vossa proposta não contemplou o problema das situações agudas...

J. M. A. - Tivemos o cuidado de aferir o conceito que resolve isto: o da consulta aberta. Acordámos isto com a Unidade de Missão dos Cuidados de Saúde Primários. Do ponto de vista do cidadão, urgência é ter que ir ao médico depressa. Mas a rede de urgências foi pensada para os que estão em perigo de vida.

A. M. - Uma boa parte das pseudo-urgências e SAP só vêem situações não urgentes, eventualmente agudas e que não põem em risco a vida.

PUBLICO - Mas são 5 milhões de atendimentos por ano...

A. M. - Temos que assumir uma política da verdade. Não posso pôr rótulo de urgência num serviço sem que este tenha logística para isso. Uma urgência tem, pelo menos, que estabilizar um doente grave para depois o transferir.

PUBLICO - Mas quem chamou SAP ou SASU (Serviço de Atendimento a Situações Urgentes) a estes serviços foi alguém do Ministério da Saúde.

A. M. - Isto é um problema de confusão de conceitos. Para as pessoas, tudo o que não é programado é urgência. Os portugueses habituaram-se a pensar que a porta de entrada no SNS é o serviço de urgência. E isto é errado.

PUBLICO - O problema é que as pessoas continuam muitas vezes a não ter resposta nos centros de saúde, por isso é que recorrem aos hospitais. Não seria melhor aguardar pela conclusão da reforma dos cuidados de saúde primários antes de avançar para as urgências?

A. M. - As reformas - estas duas e também a do pré-hospitalar - têm de avançar em paralelo. São assuntos diferentes mas tocam-se. Haverá sítios onde se conseguirá andar mais depressa, outros mais devagar.

PUBLICO - A verdade é que o país não sabe ainda qual é o mapa final.

A. M. - Tem que ser formalizado.

PUBLICO - E se o ministro não clarificar quais são os pontos de rede?

A. M. - Os timings têm a ver com gestão do processo político. Mas à medida que tempo vai passando os problemas vão-se agravando e a confusão vai aumentando. As reformas vão sendo adiadas. E o que se está a tentar fazer neste momento é algo que já foi adiado muitas vezes. Ou temos coragem de pegar nisto neste momento ou daqui a uns anos o sistema vai colapsar. Serviços vão ter de encerrar, não porque não tinham legitimidade para existir, mas sim porque não há ninguém para os assegurar.

J. M. A. - Temos que responder ao Presidente da República. O SNS está com dificuldades em gerir o seu próprio sucesso. Estas reformas não são para desestruturar, mas para salvar o SNS. O sistema não está a ser capaz de corresponder às expectativas das pessoas. E por isso as pessoas vão ao serviço de urgência. Esta é uma mensagem que PR tem de perceber. Não pode olhar para isto sob ponto de vista da contestação.

PUBLICO - Mas as pessoas que protestam, por exemplo, devido ao fecho do serviço de urgência de Anadia...

J. M. A. - Anadia tem uma consulta aberta. Até lhe posso dizer que no primeiro dia foram 90 pessoas à consulta e no segundo 80, apesar de toda aquela bagunça à porta. O que quer dizer que os cidadãos não pensam todos o mesmo. E é preciso notar que a consulta aberta já é um acréscimo de qualidade, porque o médico acede ao processo clínico do doente. O SAP é uma má oferta desse ponto de vista. Por outro lado, as pessoas estão a falar dos encerramentos, mas tem de se falar nas aberturas. Nós propusemos 26 aberturas de serviços de urgência básica [em centros de saúde]. E algumas eram no sentido de reconverter um SAP num verdadeiro SU.

PUBLICO - Mas só abriu um por enquanto, em Odemira...

J. M. A. - O ritmo a que esta reforma é feita não é da nossa competência.

PUBLICO - Na prática, para as pessoas, foram encerrados dezenas de SAP e seis serviços de urgência hospitalares.

J. M. A. - Que foram substituídos por consultas abertas à noite. E nenhum desses era um verdadeiro SU.

PUBLICO - Mas, se calhar, as pessoas preferem ter um serviço mais simples e mais próximo do que andar muitos quilómetros até um serviço mais bem apetrechado.

J. M. A. - As pessoas não têm que andar muitos quilómetros, têm que ter acesso fácil a médico. O que é exigível é que tenham um 112 funcionante e resposta pré-hospitalar.

PUBLICO - Os portugueses recorrem muito às urgências?

J. M. A. - A média diária de procura nas urgências são 230 pessoas por cada serviço.

PUBLICO - Isso é muito ou pouco?

A. M. - Comparando com a realidade internacional, é muito.

PUBLICO - Há muita gente que morre por causas evitáveis?

J. M. A. - O estudo mais recente revela que, em Portugal, o risco de morrer por trauma e para a mesma lesão é o dobro dos países nórdicos. E em alguns destes países o número de urgências por habitantes é inferior ao nosso. A diferença é que eles estão organizados. A mortalidade evitável tem a ver com defeitos de organização e não com negligência. Em Portugal morre-se muito por traumatismos e também de AVC e enfarte.

A. M. - É preciso que fique claro que, apesar das discordâncias que possam existir, o facto é que as coisas estão a mexer. Este ministro e este Governo estão a ter coragem e a avançar, quando os últimos governos têm sucessivamente adiado as reformas necessárias.

"É demasiado caro investir num helicóptero só para ter um táxi"
"Vamos gastar uma pipa de massa nos helicópteros sem aproveitar as potencialidades [destes meios]?", pergunta António Marques. O porta-voz da comissão técnica para a requalificação das urgências critica o facto de os três novos meios aéreos previstos para reforço de emergência pré-hospitalar não terem médico a a bordo.

PÚBLICO - O que é que pensam da refoma da emergência pré-hospitalar em curso, nomeadamente da colocação de viaturas de suporte imediato de vida (SIV) em alguns dos locais onde têm sido fechados serviços?

ANTÓNIO MARQUES - É óbvio que o INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica) tem que ter mais meios. Mas uma grande parte das ambulâncias estão nos bombeiros. Por isso temos que chegar a um acordo com os bombeiros sobre qual deve ser a rede de ambulâncias de emergência. Mas é preciso fazer um estudo para saber quantas são necessárias e aonde devem estar. Numa visão estratégica para futuro, é necessário investir sobretudo em quem anda dentro das ambulâncias. E isso implica a profissionalização dos serviços mínimos. Não tenho nada contra o voluntariado, acho que tem prestado grande serviço ao país. Mas os serviços mínimos têm que ser para alguém que tem tempo para aprender, que faz muitas vezes e que tem de ser profissionalizado. E a profissionalização deve passar pelos técnicos de emergência médica.

PUBLICO - Paramédicos, à semelhança do que existe noutros países?

A. M. - Sim. Não vale a pena inventar o que já está inventado. Sabe como a maior parte dos paramédicos surgiram nos EUA? Os socorristas na guerra do Vietname, quando regressaram aos EUA, começaram a trabalhar na emergência e percebeu-se que podiam ser rentabilizados para acidentes de viação, porque já sabiam lidar com traumatizados. Nós tivemos o nosso Ultramar e não o aproveitámos. A comissão apresentou a proposta do técnico de emergência médica há cerca de um mês e esta agora está a ser estudada.

PUBLICO - E o que pensam das viaturas de suporte imediato de vida (SIV) que o INEM tem colocado em vários pontos do país?

A. M. - Antes de inventar uma coisa nova, tenho que perceber qual é a estratégia. Não devo fazer uma gestão reactiva, arranjar uma solução para tapar um buraco.

PUBLICO - Isso significa que estão contra o facto de estas viaturas terem apenas enfermeiros?

A. M. - Não se trata de médicos ou enfermeiros. Não estamos contra a participação de não médicos no socorro, nem dizemos que é preciso ter um médico em todas as ambulâncias. O que dizemos é que quando um não médico actua no pré-hospitalar, seja tripulante de ambulância ou enfermeiro, deve ficar muito claro qual é o controlo médico. Para defender o doente e para proteger a pessoa que está a cumprir o protocolo. Não concordamos é que se ponha o carro à frente dos bois e que se criem situações em que há equipas a fazer não se sabe bem o quê.

JOSÉ MANUEL ALMEIDA - A questão dos SIV que é mais incomodativa é que se tratou de uma resposta a uma situação concreta. Não teve nada a ver com uma gestão integrada. Em Odemira [colocou-se uma viatura deste tipo] porque morreram pessoas.

PUBLICO - E em relação aos três novos helicópteros que vão ser colocados no terreno em breve e que, a crer no que foi já anunciado, não vão ter médico a bordo, apenas enfermeiro?

A. M. - É demasiado caro investir num helicóptero só para ter um táxi. Vamos gastar uma pipa de massa nos helicópteros sem aproveitar as potencialidades dos helicópteros? Porque a grande vantagem do helicóptero não é tirar uma pessoa daqui e pô-la no hospital ao lado, é levá-lo para o sítio mais adequado. Se tenho um grande queimado em Bragança talvez tenha de o levar para Coimbra por não ter vaga no Porto. Se já é complicado, quando temos médico e enfermeiro, responder às exigências de um doente grave, que fará se o enfermeiro tiver de fazer tudo sozinho. Ainda por cima, no ar as pressões atmosféricas têm implicações, os doentes sangram mais, é um desafio médico muito superior.

PUBLICO - Mas não há médicos em número suficiente...

A. M. - O argumento de que não há médicos para assegurar as escalas dos helicópteros não cola. Estamos a falar em três escalas, não em trinta.


Três é o número de helicópeteros que vão ser colocados no terreno. Os técnicos duvidam da sua eficiência . Urgências sobrelotadas devido "a picos" de procura . Fechos não tiveram impacto na procura dos serviços, garantem especialistas
PÚBLICO - Como é possível que alguns serviços de urgência continuem a rebentar pelas costuras?

JOSÉ MANUEL ALMEIDA - É a falência dos cuidados de saúde primários.

PUBLICO - Mas como se explica que em algumas urgências o número de doentes chegue a ser superior ao dobro da média, como aconteceu nos hospitais de Aveiro e da Feira, que passaram de 300, 350 doentes/dia para 600?

ANTÓNIO MARQUES - Há sempre aumento por altura das festas, porque os centros de saúde fecham quatro ou cinco dias. Quando fechou a urgência de Ovar mas se manteve a consulta aberta muitas pessoas sem problemas urgentes foram à Feira. Alguém não explicou às pessoas que o que fechou foi o conceito de serviço de urgência verdadeiro.

J. M. A. - Em Aveiro houve um pico e os picos acontecem de vez em quando. Aliás, o hospital tinha tido mais doentes no mesmo dia do ano anterior. [A demora no atendimento da senhora que morreu depois de aguardar quatro horas] foi um problema de encaminhamento.

PUBLICO - Mas não é verdade que o fecho de SAP e de urgência tiveram um impacto nas urgências hospitalares?

J. M. A. - Os SAP da minha área de influência (Centro Hospitalar de Coimbra) já fecharam há mais de um ano. Fui analisar o impacto no meu SU. Tínhamos em média 17 doentes [provenientes destas áreas] e passaram para 19 um ano depois. Isto é uma prova que os SAP não eram uma urgência. Em relação ao hospital da Anadia, foram transferidos cinco doentes por dia no período de fecho, no meio daquela bagunça, com manifestações... Os próprios doentes sentem que aquilo não é uma urgência.

A. M. - Muito do que sucedeu foi por falta de informação, porque as pessoas continuaram a ter consultas abertas. Estas consultas estão agora a ser geridas pelos cuidados de saúde primários.
Entrevista de Alexadra Campos, JP 12.01.08

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