segunda-feira, janeiro 07, 2008

Manuel Sobrinho Simões


"Na Saúde temos melhores resultados do que em qualquer outro sector da Administração Pública".

Manuel Sobrinho Simões é, sem dúvida, uma referência e um dos nomes mais consensuais em Portugal. É o cientista. É o investigador. É o homem que nos relembra que, em Portugal, também é possível ir mais longe na área da Medicina e da Investigação. À frente do IPATIMUP, Sobrinho Simões tem conseguido unir a sua equipa e fazer a diferença na investigação do cancro. Na entrevista à GH, esta personalidade nacional fala na necessidade de se investir na Educação para a Saúde; analisa os “disparates científi co-pedagógicos” no ensino da Medicina , e ainda o peso (ou egoísmo) das corporações ligadas ao sector.

Gestão HospitalarO IPATIMUP é hoje um centro de referência internacional no que diz respeito a investigação do cancro. Considera que é um caso isolado, no panorama nacional, ou sente que noutros locais do país há indícios positivos de mudança neste domínio? Quais os que gostaria de salientar, em caso afirmativo?

Sobrinho Simões – Para além do IPATIMUP, existem, em Portugal, sobretudo
nos Centros do IPO do Porto, Coimbra e Lisboa, vários grupos de investigação em cancro de nível internacional.

Gestão HospitalarQual o papel que o Estado deve assumir na Investigação cientifica básica e qual o papel que deve ser reservado para a Indústria Farmacêutica?

SS – O Estado deve assegurar uma fracção substancial das verbas necessárias para
a investigação científica básica (Se não for o Estado a fazê-lo, não sei quem será) e
garantir que a distribuição dessas verbas é feita de acordo com critérios de avaliação internacionalmente aceites. Da indústria farmacêutica espera-se o estabelecimento de parcerias nos domínios da investigação científica aplicada e da inovação. O que é crucial, seja qual for o tipo de investigação, é manter a exigência de qualidade e a competitividade em termos internacionais.

Gestão HospitalarConsidera que a aposta para melhorar a saúde dos portugueses passa por dar mais importância à Educação para a Saúde? De que maneira considera que tal aposta devia ser feita?

SS – Não tenho quaisquer dúvidas quanto à importância insubstituível da educação, tanto para a saúde, como para tudo na vida. Não vejo alternativa ao reforço da eficiência da escola (pré-primária, primária, secundária, …) já que a educação para a saúde é basicamente a mesma da educação para a profissão, ciência, cultura, cidadania. Já agora um desejo: era também bom poder contar, neste movimento pro-educação, com o exemplo dos pais, professores, médicos, políticos.

Gestão HospitalarO papel do doente, na gestão da sua doença, está a mudar.
Acha que os portugueses estão preparados para aceitar este papel, mais interventivo, relativamente à sua doença? Porquê?

SS – Os portugueses não vão ser diferentes dos outros povos no que diz respeito à necessidade de se adaptarem ao novo paradigma da relação médico-doente. Estou convencido que já estão, aliás, a ser mais sujeitos-da-acção do que no passado, embora persistam na sociedade portuguesa alguns estigmas civilizacionais descoroçoantes (Apesar de já termos, quase todos, telemóvel, não conseguimos utilizar de forma inteligente a Internet; e continuamos a ser frequentemente incapazes de explicar de uma forma escorreita “quando adoecemos” ou “onde nos dói”).

Gestão HospitalarFalemos de cancro. Em que patamar se encontra a investigação internacional para combater este problema que, segundo estudos internacionais, vai continuar a fazer parte das preocupações das gerações futuras? Estamos perto de encontrar a cura?

SS – Graças, sobretudo, ao aumento da longevidade das populações o número de
casos de cancro tem aumentado e vai continuar a aumentar. Apesar deste aumento, a mortalidade por cancro tem vindo a diminuir na maior parte dos países da União Europeia e da América do Norte desde o fim da década de noventa. Estes resultados traduzem diagnósticos cada vez mais precoces e tratamentos cada vez mais eficazes para muitos tipos de cancro. Mesmo que não seja possível curar todos os cancros – e não vai ser – vamos continuar a descobrir formas de controlar cada vez melhor um maior número de doenças oncológicas.

Gestão Hospitalar Há estigma social relativamente ao doente com cancro? Em que domínios se sente mais?

SS – A evolução neste aspecto tem sido boa e penso que a maioria dos doentes com cancro já não é estigmatizada socialmente.
Já ninguém, ou quase ninguém, acha que o cancro é um castigo divino, muitos doentes falam abertamente da “sua” doença, e os meios de comunicação social usam cada vez menos a expressão “doença prolongada”.
Entretanto e apesar de estar a ser mais interiorizada a noção de que o cancro é uma doença crónica, controlável em muitos casos, o medo de ter ou poder vir a ter um cancro continua a assustar imenso as pessoas, seja qual for o seu nível sócio-cultural. Não vai ser fácil mudar as coisas neste aspecto.

Gestão HospitalarHá quem diga que, em Portugal, há falta de oncologistas para tratar o número de doentes vítimas de cancro. O que se pode fazer para combater esta situação?

SS – Não sei se há falta, absoluta, ou relativa, de oncologistas em Portugal. Seja qual for a situação, vale a pena enfatizar as vantagens em articular as politicas de formação desses especialistas com uma fortíssima aposta a montante: educação no sentido da prevenção primária, institucionalização do rastreio dos cancros e lesões pré-cancerosas rastreáveis, e ênfase no diagnóstico precoce.

Gestão HospitalarOs profissionais de Saúde portugueses, em geral, estão preparados para lidar com os doentes de cancro ou precisavam de uma formação contínua mais direccionada para o problema?

SS – Responder em meia dúzia de linhas não é fácil. Sobressimplificando, penso que seria vantajoso reforçar a formação em oncologia no currículo da licenciatura em medicina e na pós-produção e educação contínua dos especialistas em clínica geral e familiar. Por estranho que pareça, a minimização dos problemas da maioria dos doentes com cancro passa mais por aqueles especialistas e pelos internistas do que pelos oncologistas.

Gestão HospitalarO Professor tem sido muito crítico relativamente ao ensino da Medicina em Portugal. O que devia ser alterado? Porquê?

SS – Temos, antes de mais, de não continuar a aumentar o número de alunos, pois já ultrapassámos largamente a capacidade máxima das estruturas existentes. Depois, precisamos de mudar o currículo no sentido de tornar a aprendizagem da
clínica tão precoce quanto possível, em articulação com a aprendizagem das ciências básicas, e de reduzir a fragmentação disciplinar.
Finalmente, precisamos de mudar a forma como avaliamos os resultados do ensino. Entre outros disparates científico-pedagógicos temos de acabar com os inúmeros exames unidisciplinares e com a recompensa à memorização automática e à retórica, em detrimento da avaliação do “compreender” e do “saber fazer”.

Gestão HospitalarCostuma dizer-se que se não houver vontade política, as outras vontades – individuais ou mesmo de grupo - acabem por ter efeitos menores, ou por não ter qualquer efeito. Pela sua experiência, quando olha para a Saúde em Portugal pensa que tem havido falta de vontade política no que diz respeito a acessibilidade e a qualidade de serviços prestados ao cidadão?

SS – Penso que vontade politica há. O que não tem havido é planeamento estratégico, organização e força suficientes para corrigir algumas das assimetrias do nosso Sistema Nacional de Saúde.

Gestão HospitalarMuitas vezes a Saúde parece desenvolver-se ao sabor das vontades das diferentes corporações –Médicos; Farmacêuticos; Enfermeiros, etc. – é uma reacção natural ou, em Portugal, este estado de coisas tende a perpectuar-se e a ser contrária ao que devia ser?

SS – É verdade que o peso específico (e o egoísmo) das corporações tem tornado a governação muito difícil entre nós.
O problema não é mais grave na saúde do que na justiça, educação, transportes, energia… Pelo contrário. Na saúde temos, em Portugal, melhores resultados do que em qualquer outro sector da administração pública. O desafio passa em conseguir canalizar de forma socialmente positiva as motivações e a energia das corporações que se movem no universo da saúde. Não sei se tal será possível mas tenho a certeza de que é fundamental assentar numa série de princípios: a) Prestigiar as profissões e os profissionais. Com o novo-riquismo da Europa dos negócios e dos lucros gerados pelas “oportunidades” financeiras, temos vindo a dar cabo das profissões no nosso Pais e assim não vamos a lado nenhum. (Aviso à navegação: é preciso perceber que se queremos ter bons profissionais, sejam médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos, ou outros, precisamos de lhes pagar bastante mais do que lhes pagamos actualmente); b) Melhorar, muito, o planeamento estratégico com clarificação de “quem é que manda” e de quais são os instrumentos disponíveis; c) Institucionalizar a avaliação externa e independente das organizações, dos resultados e das pessoas, com recompensa ao mérito e prestação de contas.
Estou convencido que se as corporações forem integradas num sistema com estas características e, sobretudo, se sentirem que o Poder reconhece o valor insubstituível das profissões e dos profissionais, será possível melhorar a governação na saúde (e no resto).

Gestão HospitalarO Serviço Nacional de Saúde (SNS), universal e tendencialmente gratuito, tende a acabar ou, em sua opinião, apesar das reformas em curso vai sofrer apenas ajustes a uma realidade nova, marcadamente mais global e mais economicista?

SS – Pelo que ficou dito atrás percebe-se que tenho muito orgulho no que foi possível fazer no âmbito do nosso Serviço Nacional de Saúde e que teria portanto muita pena se o destruíssemos. Agora que precisamos de o adaptar aos novos paradigmas da organização da saúde, do desenvolvimento das ciências biomédicas, da relação médico-doente, da empresarialização, isso precisamos.

Gestão HospitalarO sector privado está a crescer em Portugal. Que análise faz a este crescimento? Ineficiência do SNS? Mais capacidade dos privados?

SS – O sector privado está a crescer em Portugal e ainda bem. O sistema no seu
todo beneficiará imenso da competição, pela positiva, entre diferentes tipos de agentes. Será preciso, no entanto, assegurar a independência mútua dos dois sectores, isto é, garantir que não há promiscuidade e, muito menos, parasitismo. É também preciso que o Estado não se sinta desobrigado, pelo facto de haver áreas bem cobertas pelo sector privado, de assegurar a prestação de cuidados de saúde aos segmentos mais desfavorecidos da população (Temos, infelizmente, cada vez mais pessoas pobres ou muito pobres e cada vez mais velhinhos e seria inaceitável que o Estado não lhes desse a protecção a que têm direito).

Gestão HospitalarO Professor Manuel Sobrinho Simões foi mandatário do Dr. Miguel Leão, a bastonário da Ordem dos Médicos. Muitos colegas seus terão fi cado surpreendidos. O que o levou a tomar esta atitude?

SS – O Dr. Miguel Leão convidou-me para mandatário nacional, apresentou-me
o seu programa e as listas de mandatários e membros para os diferentes órgãos e comissões, discutiu comigo os assuntos em que discordávamos (em alguns continuamos a discordar) e eu tive muito gosto em aceitar o convite.

Gestão HospitalarQue análise faz à forma como decorreu a campanha eleitoral para a OM?

SS – Correu como correram as anteriores campanhas sempre que houve mais do que uma lista. Isto é, falou-se muito (e nem sempre bem) de pessoas e de tricas pessoais e praticamente não se discutiram os programas. Foi pena, mas não foi pior que o debate do Orçamento na Assembleia da República.

Gestão HospitalarO médico do futuro tem alguma coisa ver com o Dr. House que vemos na televisão?

SS – Penso que não. Embora o médico do futuro tenha que ser um médico-cientista (a medicina deixou de ser só uma profissão e uma arte, para ser também uma ciência), ele terá sobretudo que ser uma pessoa capaz de comunicar com os doentes e os seus familiares. O compromisso entre a quantidade assustadora de informação científica e as boas práticas fará com que o (bom) médico do futuro tenha de privilegiar muito mais a relação pessoal com o doente do que apostar em ser um Sherlock Holmes a la Dr. House.
entrevista de Marina Caldas, GH n.º 32

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