JMS é fogo!
José Manuel Silva, bastonário em exercício da Ordem dos Médicos, afirma que José Sócrates é quem manda na Saúde, diz que a doente que morreu na Urgência do Hospital de Aveiro já percebeu as medidas e a política do ministro da Saúde e não tem dúvidas em dizer que o Serviço Nacional de Saúde está a ser destruído. Em nome de um perigoso pacto de regime entre o PS e o PSD para garantir os investimentos privados.
Correio da Manhã – Como é que está a correr esta experiência de bastonário em exercício?
José Manuel Silva – É uma experiência interessante. Aliás, para mim, todas as experiências novas são interessantes. E esta é uma posição nova, inesperada, temporária, que eu estava bem longe de imaginar que teria de viver. Mas, como tudo na vida, gosto de desafios e este é um desafio que encaro com empenho, com satisfação e com vontade de representar condignamente os meus colegas.
- Há colegas seus que o elogiam muito, dizendo que o senhor tem sido fogo. O ministro da Saúde, pelo contrário, diz que o senhor é um incendiário por ter ido à Anadia mostra-se contra o fecho da urgência local. Em que ficamos?
- Acho que nem uma coisa nem outra. Eu sempre levei tudo a sério na vida e como tal encaro de forma séria este papel em que me investiram temporariamente. E se, por coincidência, me delegaram competências, que são difíceis e pesadas e que são extremamente responsabilizadoras, num período de grande agitação na área da Saúde, naturalmente eu não podia atravessar este período em silêncio, tinha de responder à situação. Eu não fui à procura de incêndios, não fui à procura de fogos, nem de bombeiros, nem de problemas. As questões foram levantadas por quem manda na Saúde em Portugal e a resposta, julgo eu, tinha de ser esta.
- Quem é que manda na Saúde em Portugal?
- É o primeiro-ministro José Sócrates. É ele que manda.
- O ministro da Saúde não tem nada a ver com esta política?
- O ministro da Saúde limita-se a cumprir o programa do Governo. É um de muitos ministros que se sentam à mesa do Governo. Mas quem de facto manda, que dá as orientações, é o primeiro-ministro. Não pode ser de outra maneira. Mal seria que cada ministro fizesse aquilo que lhe apetecia ou que lhe desse na real gana. O coordenador e a pessoa que tem a última palavra na definição das políticas de todas as áreas é naturalmente o primeiro-ministro. O responsável é o primeiro-ministro. Aliás, se o primeiro-ministro não caucionasse, não se revisse na política de Saúde naturalmente já teria substituído o ministro ou ter-lhe-ia dado indicações para proceder de outra forma e implementar outra política.
- O ministro da Saúde concorda com o que está a fazer. Caso contrário já teria apresentado a sua demissão, não acha?
- Obviamente. Repare. Não quer dizer que tenha de concordar com tudo. Porque eu acho que quem se arroga ter grandes conhecimentos na área da Saúde não estaria a fazer certas coisas. Não compreenderia que fossem feitas por algum especialista na área da Saúde. Nomeadamente aquilo que tem sido objecto de maiores polémicas nos últimos dias, que são os encerramentos de forma totalmente desenquadrada das restantes reformas da Saúde e sem que as outras reformas da Saúde estejam a produzir resultados.
- Há qualquer coisa de errado nisso tudo?
- Há qualquer coisa de errado. E tanto que está errada que tem tido consequências que têm sido veiculadas na comunicação social.
- Situações graves para as pessoas?
- Obviamente. E com outros casos que felizmente não chegam ao conhecimento da comunicação social...
- Porque não acabam em mortes?
- Exacto. Mas que nós sabemos que existem no terreno. E, naturalmente como médicos, essencialmente como médicos, e acima de tudo, dentro da nossa posição institucional na Ordem dos Médicos, mas também como médicos individuais, como provedores dos doentes e das populações, não podemos deixar de denunciar as consequências e de chamar a atenção para a necessidade de implantar situações diferentes. E para a necessidade do percurso das reformas ter de ser feito de forma distinta.
- O ministro da Saúde diz que em poucos meses todos vão perceber a justeza das reformas em curso, nomeadamente dos encerramentos de urgências e SAP. É tudo uma questão de tempo? Ou é uma posição arrogante do ministro?
- Infelizmente, e mais uma vez, enfim, com todo o respeito pela situação, a doente falecida nas urgências do Hospital de Aveiro já compreendeu as medidas do senhor ministro. Não volta à urgência.
- Começa a ser uma situação dramática?
- Obviamente. Sabe. Contra factos não há argumentos e contra realidades não há teorias. Todos nós, que estamos a trabalhar no terreno, todos os que acompanham o que se passa no terreno, vêem que as coisas estão a piorar. Nomeadamente os doentes. Vão melhorar daqui a dez anos, daqui a cem anos? Não sei. Agora, neste momento, as coisas estão a piorar e eu não vejo qualquer indício que possam melhorar no futuro.
- Porquê?
- Porque não estamos a assistir a um plano integrado de reformas. Estamos a assistir à aplicação de medidas casuísticas. Se nos cingirmos às questões práticas dos últimos dias, vemos a aplicação de um relatório apenas na vertente dos encerramentos e não na restante e, ainda por cima, relatório esse que tem aspectos que são por nós criticados. Independentemente do valor, da competência e do respeito que temos pelos colegas que o elaboraram, que não está em causa. Mas, obviamente, se este relatório tivesse sido submetido a uma apreciação prévia da Ordem dos Médicos se calhar o resultado final teria sido diferente.
- Muito diferente?
- Claramente. Porque as críticas que temos feito ao relatório teriam sido feitas no momento exacto e teriam levado a modificações em diálogo com os colegas que o elaboraram. E sabe que o relatório parte de um princípio errado.
- Qual?
- Parte do princípio de que tudo o resto funciona bem. Ora como tudo o resto não funciona bem tem de haver desequilíbrios, tem de haver consequências infelizes. Se tudo o resto estivesse a funcionar bem, se calhar a implementação do relatório seria menos polémica. O próprio relatório diz que ele tem de ser enquadrado com a rede de emergência pró-hospital que não existe. O relatório tem de ser enquadrado com uma rede de referenciação dos doente urgentes, que não existe. O relatório parte do princípio que os centros de saúde dão a resposta adequada às necessidades das populações e não dão.
- O relatório fala numa situação ideal que não existe na realidade?
- Obviamente. Claro. Parte desses pressupostos. Como os pressupostos não se verificam no terreno, naturalmente que os desequilíbrios e as disfunções estão a ser agravantes.
- Como estas reformas são feitas de costas voltadas não só para a Ordem mas também para os médicos? Já não falo nas populações.
- Essa pergunta terá de ser feita ao senhor ministro da Saúde e mais uma vez ao senhor primeiro-ministro José Sócrates. A única coisa que eu posso dizer é que pela nossa parte, Ordem dos Médicos, estamos sempre disponíveis para prestar o nosso apoio e a nossa consultadoria técnica a qualquer Governo, a qualquer ministro ou a qualquer primeiro-ministro de Portugal. Assim nos queiram ouvir. Assim nos encarem como um parceiro com competências que se calhar outros não têm e convivências que outros não têm e queiram ouvir-nos e dialogar connosco sem qualquer reserva intelectual.
- E isso não tem sido feito.
- Não tem sido feito. E como somos impedidos de prestar esse apoio técnico, que é uma das funções nucleares da Ordem dos Médicos, a única coisa que podemos fazer é chamar a atenção e dizer atenção este não é o melhor caminho por isto e por isto. Nós não estamos contra nada. Nós estamos a favor dos doentes, do Serviço Nacional de Saúde, da qualidade da medicina que praticamos com os nossos doentes.
- Não há o risco de as populações se virarem contra os médicos?
- Repare. Quando estamos na ribalta das questões da Saúde é natural que algumas pessoas possam achar que os médicos têm a sua quota-parte de responsabilidade nos problemas do Serviço Nacional de Saúde. Encaramos isso com naturalidade. Agora a verdade é que nós, em termos pessoais e em termos colectivos como Ordem dos Médicos, estamos obviamente interessados em contribuir para a melhoria do sistema. Porque quem vai para médico é porque tem um determinado tipo de vocação. E a vocação é ajudar as outras pessoas, sem deixar de ser um ser humano, com os mesmos defeitos e qualidades de qualquer outra pessoa. Nós somos seres humanos como os outros. Temos é uma vocação e a vocação é tentar ajudar os outros na saúde e na doença. E com isso temos naturalmente a nossa retribuição por sentirmos que, de alguma forma, fomos úteis às outras pessoas. Aquilo que nós gostaríamos é que o Serviço Nacional de Saúde, em particular, e o Sistema Nacional de Saúde pudessem proporcionar aos doentes a máxima qualidade, o máximo conforto, o melhor estado de bem-estar físico, psíquico e social.
- Mas nem sempre é assim.
- Nós não queremos de forma nenhuma escamotear realidades. Tal como em todas as profissões, existirão pessoas com maiores e menores conceitos éticos, com maiores e menores sentidos do cumprimento das responsabilidades. Mas se há esses casos, naturalmente devem ser analisados e deve actuar-se em conformidade. Nós, como Ordem, temos o máximo interesse em separar o trigo do joio. Agora, também temos uma noção que é muito maior o ruído do que a realidade. E também temos a noção de que basta às vezes uma pequena crítica, uma pequena situação que é propalada pela comunicação social para facilmente toda a gente confundir a parte com o todo. Nós não temos qualquer dúvida de que 99 por cento dos médicos cumprem as suas obrigações. Haverá, como em qualquer outra profissão, quem não faz da mesma forma. Mas nessas situações temos de actuar pontualmente sobre elas. E nós estamos aqui também para dar o nosso contributo nesse sentido.
- Às vezes diz-se que os médicos se protegem uns aos outros.
- Não é verdade. Recentemente, em relação a um colega que passou uma certidão de óbito que veio a provar-se que era falsa, a penalização imposta pela Ordem dos Médicos foi muitíssimo mais grave do que a penalização imposta pelo tribunal. O que demonstra que a Ordem dos Médicos é rigorosa. Agora também há da parte do poder político um interesse em fragilizar o prestígio que a profissão tem junto das populações.
- A condição social dos médicos?
- Exactamente. Mas apesar de tudo, apesar de todas as críticas, e nós encaramos todas as críticas de forma positiva, a verdade é que no último inquérito feito à população sobre as classes profissionais os médicos continuaram a ser a classe profissional de topo em termos de respeito e consideração por parte da população. Eu acho que isso é extremamente significativo. E quando as pessoas são inquiridas individualmente sobre o conceito que têm, nomeadamente na medicina geral sobre o seu médico de família, a esmagadora maioria está satisfeita com o seu médico de família.
- O ministro da Saúde diz que está a salvar o Serviço Nacional de Saúde. A Ordem e os médicos dizem que as reformas estão a arrasar o Serviço Nacional de Saúde. Quem tem razão? Quem fala verdade?
- Não seria de esperar que, de qualquer Governo, viesse uma afirmação no sentido de destruir o serviço Nacional de Saúde. Aquilo que o Governo diz di-lo por razões políticas e quase por obrigação política. Não pode dizer que está a fazer as coisas erradas. Tem de dizer que está a fazer as coisas certas. Quem está no terreno, quem conhece os problemas da Saúde, quem se preocupa e analisa as coisas para além da demagogia política, não tem quaisquer dúvidas que o Serviço Nacional de Saúde está a ser progressivamente destruído. E mais. Eu considero até que existe neste momento um perigoso pacto de regime na área da Saúde.
- Pacto de regime entre PS e PSD? Secreto?
- Repare. Se nós assistimos ao facto dos grandes grupos económicos estarem a investir milhares de milhões de euros na área da Saúde e esperam naturalmente ter o mesmo nível de retribuição que em qualquer outro sector da economia há uma coisa que têm de ter a certeza. Na área da Saúde não vai haver ciclos políticos. Ou seja, não vai aparecer no futuro nenhum Governo que altere esta política.
- Um Governo do PSD irá fazer a mesma política?
- Obviamente. Como existem apenas dois grandes partidos que têm alternado no poder, esses dois grandes partidos têm que ter uma grande consonância na política de Saúde e os grandes grupos económicos têm de ter a certeza dessa consonância.
- Sem isso não haveria esse investimento?
- Não haveria porque as pessoas investem quando têm um elevado grau de certeza que o investimento é seguro. Portanto, é claro e é óbvio que existe um pacto de regime na área da Saúde que passa obrigatoriamente pelo emagrecimento do Serviço Nacional de Saúde para permitir que o enorme investimento privado, dos grandes grupos económicos, seja rentabilizado. E aquilo que nós assistimos, por exemplo, é que a pequena medicina privada independente está a acabar.
- Os consultórios? O tradicional consultório médico?
- Sim, está a acabar. Com todas as dificuldades que têm sido criadas vai ser muito difícil que o pequeno consultório individual consiga sobreviver no futuro. E isso para facilitar o retorno económico do investimento dos grandes grupos económicos.
- Cresce o investimento privado, emagrece o Serviço Nacional de Saúde?
- Claro. E repare que eu não tenho, com esta análise, nenhuma posição contra o sector privado. Pelo contrário. Deve existir um sector privado forte e um sector público forte. Porque a sã concorrência dos dois de forma transparente, sem sobreposições, permite que um estimule o outro e o segundo regule o primeiro. O Estado só tem capacidade de regular o sector privado se tiver um sector público forte. É a única forma de ter um verdadeiro poder regulador. Aliás, nós assistimos às enormes dificuldades que o Estado tem em controlar as contas do Amadora-Sintra. E é um único hospital.
- E dura há anos a polémica.
- Há anos que não há entendimento nas contas e que há um enorme desfasamento entre a opinião do Estado e a opinião grupo privado que gere o Amadora-Sintra. E estamos a falar de um único hospital. Ora imaginemos multiplicar isto por dez ou vinte. Será o caos porque o Estado português é demasiado desorganizado. Um relatório da Organização Mundial de Saúde, da década de noventa, tinha uma afirmação lapidar: um Estado desorganizado mais vale ser prestador dos cuidados do que regulador dos cuidados.
- Porquê?
- Porque corre muito menos riscos prestando os cuidados do que regulando uma coisa que não consegue regular de qualquer maneira. Não consegue regular, como temos visto no caso Amadora-Sintra. Nós vamos caminhar no sentido de um Estado cada vez menos prestador e cada vez mais regulador. E como temos visto o Estado português não consegue regular rigorosamente nada, desde logo porque não tem uma cultura democrática, não tem uma cultura de competência, não tem uma cultura de exigência, não tem uma cultura de rigor e não tem uma cultura de honestidade.
- Havendo esse pacto de regime, a destruição do Serviço Nacional de Saúde é irreversível? Mesmo contra a vontade dos médicos?
- Repare, os médicos não estão a ter uma postura contra esta política. Os médicos não têm capacidade de ser contra nada. O que nós tentamos fazer é chamar a atenção para os problemas, para as consequências e propor soluções diferentes. Isso não é ser contra nada. É ser a favor de um sistema que permitiu que Portugal atingisse níveis invejáveis na prestação de cuidados de Saúde a nível mundial. Não tenho qualquer dúvida que o melhor serviço público português é o Serviço Nacional de Saúde. E estar-se a atacar este serviço de forma demagógica e com base em inverdades demonstra que não aqui uma postura transparente na forma como a actual política está a ser implementada.
- Parece que estava tudo mal, que é preciso inventar tudo outra vez, não é?
- Nós não temos de inventar rigorosamente nada. Temos múltiplos sistemas de saúde em vários países do mundo e podemos analisar os respectivos resultados. Não temos de olhar, discutir ou defender teorias. Temos primeiro de analisar os resultados e depois procurar aquilo que afinal proporcionou melhores resultados. Se Portugal, com todas as suas limitações económicas de um pequeno País, conseguiu ter o 12 º melhor sistema de saúde do mundo como é que pode vir alguém dizer que o Serviço Nacional de Saúde funcionava mal?
- É estranho. Mas não é preciso fazer nada?
- É evidente que o Serviço Nacional de Saúde, tendo quase três décadas, precisa de ser modernizado, precisa de ser adequado às novas realidades. E nesse sentido nós estamos totalmente a favor dessa reforma. De uma reforma no sentido da melhoria do funcionamento do sistema. Mas na nossa perspectiva não é isso que está a acontecer. O que está a acontecer claramente é o emagrecimento do Serviço Nacional de Saúde e um ataque às regras mais básicas e aos alicerces mais nucleares do Serviço Nacional de Saúde. Não nos parece que alguém possa dizer de boa mente que está a tentar salvá-lo.
- A mensagem do Presidente da República do Ano Novo, em que falou da situação da Saúde, foi importante?
- O Presidente da República é eleito nominalmente e directamente pelas populações. Tem, portanto, uma grande responsabilidade. A principal é ser o intérprete das preocupações da população. E eu acho que nesses avisos que fez á navegação e dentro do que é o palavriado diplomático foi extremamente explícito na demonstração das suas preocupações e das reservas quanto à actual política de Saúde. É evidente que o senhor ministro da Saúde, como político que é, tentou virar o bico ao prego. Mas eu acho que foi patente para todos, para a população e para os comentadores políticos, que não teve forma de o fazer e que efectivamente o Presidente da República pôs o dedo na ferida, nomeadamente com a questão de que é preciso que nós percebamos bem para onde é que vai a Saúde em Portugal.
- Foi uma forte crítica?
- Fortíssima e que foi direita ao centro do alvo
PERFIL
José Manuel Silva nasceu em Pombal no dia 18 de Setembro de 1959. Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra. Casado, é medico internista dos Hospitais da Universidade de Coimbra, especialista em Lipidologia, uma área de estudo e tratamento dos hiperlipidemos, isto é, dos valores elevados de colesterol e triglicémios no sangue. É dirigente da Ordem dos Médicos há três anos, quando foi eleito pela primeira vez presidente do Conselho Regional do Centro, altura em que apoiou o candidato a bastonário José Manuel Boquinhas contra Pedro Nunes.
Em Dezembro, nas eleições da Ordem, foi reeleito presidente do Conselho Regional do Centro. Apoiante desta feita de Pedro Nunes, exerce até 16 de Janeiro as funções de bastonário em exercício da Ordem dos Médicos.
entrevista conduzida por antónio ribeiro ferreira, CM 06.01.08
Correio da Manhã – Como é que está a correr esta experiência de bastonário em exercício?
José Manuel Silva – É uma experiência interessante. Aliás, para mim, todas as experiências novas são interessantes. E esta é uma posição nova, inesperada, temporária, que eu estava bem longe de imaginar que teria de viver. Mas, como tudo na vida, gosto de desafios e este é um desafio que encaro com empenho, com satisfação e com vontade de representar condignamente os meus colegas.
- Há colegas seus que o elogiam muito, dizendo que o senhor tem sido fogo. O ministro da Saúde, pelo contrário, diz que o senhor é um incendiário por ter ido à Anadia mostra-se contra o fecho da urgência local. Em que ficamos?
- Acho que nem uma coisa nem outra. Eu sempre levei tudo a sério na vida e como tal encaro de forma séria este papel em que me investiram temporariamente. E se, por coincidência, me delegaram competências, que são difíceis e pesadas e que são extremamente responsabilizadoras, num período de grande agitação na área da Saúde, naturalmente eu não podia atravessar este período em silêncio, tinha de responder à situação. Eu não fui à procura de incêndios, não fui à procura de fogos, nem de bombeiros, nem de problemas. As questões foram levantadas por quem manda na Saúde em Portugal e a resposta, julgo eu, tinha de ser esta.
- Quem é que manda na Saúde em Portugal?
- É o primeiro-ministro José Sócrates. É ele que manda.
- O ministro da Saúde não tem nada a ver com esta política?
- O ministro da Saúde limita-se a cumprir o programa do Governo. É um de muitos ministros que se sentam à mesa do Governo. Mas quem de facto manda, que dá as orientações, é o primeiro-ministro. Não pode ser de outra maneira. Mal seria que cada ministro fizesse aquilo que lhe apetecia ou que lhe desse na real gana. O coordenador e a pessoa que tem a última palavra na definição das políticas de todas as áreas é naturalmente o primeiro-ministro. O responsável é o primeiro-ministro. Aliás, se o primeiro-ministro não caucionasse, não se revisse na política de Saúde naturalmente já teria substituído o ministro ou ter-lhe-ia dado indicações para proceder de outra forma e implementar outra política.
- O ministro da Saúde concorda com o que está a fazer. Caso contrário já teria apresentado a sua demissão, não acha?
- Obviamente. Repare. Não quer dizer que tenha de concordar com tudo. Porque eu acho que quem se arroga ter grandes conhecimentos na área da Saúde não estaria a fazer certas coisas. Não compreenderia que fossem feitas por algum especialista na área da Saúde. Nomeadamente aquilo que tem sido objecto de maiores polémicas nos últimos dias, que são os encerramentos de forma totalmente desenquadrada das restantes reformas da Saúde e sem que as outras reformas da Saúde estejam a produzir resultados.
- Há qualquer coisa de errado nisso tudo?
- Há qualquer coisa de errado. E tanto que está errada que tem tido consequências que têm sido veiculadas na comunicação social.
- Situações graves para as pessoas?
- Obviamente. E com outros casos que felizmente não chegam ao conhecimento da comunicação social...
- Porque não acabam em mortes?
- Exacto. Mas que nós sabemos que existem no terreno. E, naturalmente como médicos, essencialmente como médicos, e acima de tudo, dentro da nossa posição institucional na Ordem dos Médicos, mas também como médicos individuais, como provedores dos doentes e das populações, não podemos deixar de denunciar as consequências e de chamar a atenção para a necessidade de implantar situações diferentes. E para a necessidade do percurso das reformas ter de ser feito de forma distinta.
- O ministro da Saúde diz que em poucos meses todos vão perceber a justeza das reformas em curso, nomeadamente dos encerramentos de urgências e SAP. É tudo uma questão de tempo? Ou é uma posição arrogante do ministro?
- Infelizmente, e mais uma vez, enfim, com todo o respeito pela situação, a doente falecida nas urgências do Hospital de Aveiro já compreendeu as medidas do senhor ministro. Não volta à urgência.
- Começa a ser uma situação dramática?
- Obviamente. Sabe. Contra factos não há argumentos e contra realidades não há teorias. Todos nós, que estamos a trabalhar no terreno, todos os que acompanham o que se passa no terreno, vêem que as coisas estão a piorar. Nomeadamente os doentes. Vão melhorar daqui a dez anos, daqui a cem anos? Não sei. Agora, neste momento, as coisas estão a piorar e eu não vejo qualquer indício que possam melhorar no futuro.
- Porquê?
- Porque não estamos a assistir a um plano integrado de reformas. Estamos a assistir à aplicação de medidas casuísticas. Se nos cingirmos às questões práticas dos últimos dias, vemos a aplicação de um relatório apenas na vertente dos encerramentos e não na restante e, ainda por cima, relatório esse que tem aspectos que são por nós criticados. Independentemente do valor, da competência e do respeito que temos pelos colegas que o elaboraram, que não está em causa. Mas, obviamente, se este relatório tivesse sido submetido a uma apreciação prévia da Ordem dos Médicos se calhar o resultado final teria sido diferente.
- Muito diferente?
- Claramente. Porque as críticas que temos feito ao relatório teriam sido feitas no momento exacto e teriam levado a modificações em diálogo com os colegas que o elaboraram. E sabe que o relatório parte de um princípio errado.
- Qual?
- Parte do princípio de que tudo o resto funciona bem. Ora como tudo o resto não funciona bem tem de haver desequilíbrios, tem de haver consequências infelizes. Se tudo o resto estivesse a funcionar bem, se calhar a implementação do relatório seria menos polémica. O próprio relatório diz que ele tem de ser enquadrado com a rede de emergência pró-hospital que não existe. O relatório tem de ser enquadrado com uma rede de referenciação dos doente urgentes, que não existe. O relatório parte do princípio que os centros de saúde dão a resposta adequada às necessidades das populações e não dão.
- O relatório fala numa situação ideal que não existe na realidade?
- Obviamente. Claro. Parte desses pressupostos. Como os pressupostos não se verificam no terreno, naturalmente que os desequilíbrios e as disfunções estão a ser agravantes.
- Como estas reformas são feitas de costas voltadas não só para a Ordem mas também para os médicos? Já não falo nas populações.
- Essa pergunta terá de ser feita ao senhor ministro da Saúde e mais uma vez ao senhor primeiro-ministro José Sócrates. A única coisa que eu posso dizer é que pela nossa parte, Ordem dos Médicos, estamos sempre disponíveis para prestar o nosso apoio e a nossa consultadoria técnica a qualquer Governo, a qualquer ministro ou a qualquer primeiro-ministro de Portugal. Assim nos queiram ouvir. Assim nos encarem como um parceiro com competências que se calhar outros não têm e convivências que outros não têm e queiram ouvir-nos e dialogar connosco sem qualquer reserva intelectual.
- E isso não tem sido feito.
- Não tem sido feito. E como somos impedidos de prestar esse apoio técnico, que é uma das funções nucleares da Ordem dos Médicos, a única coisa que podemos fazer é chamar a atenção e dizer atenção este não é o melhor caminho por isto e por isto. Nós não estamos contra nada. Nós estamos a favor dos doentes, do Serviço Nacional de Saúde, da qualidade da medicina que praticamos com os nossos doentes.
- Não há o risco de as populações se virarem contra os médicos?
- Repare. Quando estamos na ribalta das questões da Saúde é natural que algumas pessoas possam achar que os médicos têm a sua quota-parte de responsabilidade nos problemas do Serviço Nacional de Saúde. Encaramos isso com naturalidade. Agora a verdade é que nós, em termos pessoais e em termos colectivos como Ordem dos Médicos, estamos obviamente interessados em contribuir para a melhoria do sistema. Porque quem vai para médico é porque tem um determinado tipo de vocação. E a vocação é ajudar as outras pessoas, sem deixar de ser um ser humano, com os mesmos defeitos e qualidades de qualquer outra pessoa. Nós somos seres humanos como os outros. Temos é uma vocação e a vocação é tentar ajudar os outros na saúde e na doença. E com isso temos naturalmente a nossa retribuição por sentirmos que, de alguma forma, fomos úteis às outras pessoas. Aquilo que nós gostaríamos é que o Serviço Nacional de Saúde, em particular, e o Sistema Nacional de Saúde pudessem proporcionar aos doentes a máxima qualidade, o máximo conforto, o melhor estado de bem-estar físico, psíquico e social.
- Mas nem sempre é assim.
- Nós não queremos de forma nenhuma escamotear realidades. Tal como em todas as profissões, existirão pessoas com maiores e menores conceitos éticos, com maiores e menores sentidos do cumprimento das responsabilidades. Mas se há esses casos, naturalmente devem ser analisados e deve actuar-se em conformidade. Nós, como Ordem, temos o máximo interesse em separar o trigo do joio. Agora, também temos uma noção que é muito maior o ruído do que a realidade. E também temos a noção de que basta às vezes uma pequena crítica, uma pequena situação que é propalada pela comunicação social para facilmente toda a gente confundir a parte com o todo. Nós não temos qualquer dúvida de que 99 por cento dos médicos cumprem as suas obrigações. Haverá, como em qualquer outra profissão, quem não faz da mesma forma. Mas nessas situações temos de actuar pontualmente sobre elas. E nós estamos aqui também para dar o nosso contributo nesse sentido.
- Às vezes diz-se que os médicos se protegem uns aos outros.
- Não é verdade. Recentemente, em relação a um colega que passou uma certidão de óbito que veio a provar-se que era falsa, a penalização imposta pela Ordem dos Médicos foi muitíssimo mais grave do que a penalização imposta pelo tribunal. O que demonstra que a Ordem dos Médicos é rigorosa. Agora também há da parte do poder político um interesse em fragilizar o prestígio que a profissão tem junto das populações.
- A condição social dos médicos?
- Exactamente. Mas apesar de tudo, apesar de todas as críticas, e nós encaramos todas as críticas de forma positiva, a verdade é que no último inquérito feito à população sobre as classes profissionais os médicos continuaram a ser a classe profissional de topo em termos de respeito e consideração por parte da população. Eu acho que isso é extremamente significativo. E quando as pessoas são inquiridas individualmente sobre o conceito que têm, nomeadamente na medicina geral sobre o seu médico de família, a esmagadora maioria está satisfeita com o seu médico de família.
- O ministro da Saúde diz que está a salvar o Serviço Nacional de Saúde. A Ordem e os médicos dizem que as reformas estão a arrasar o Serviço Nacional de Saúde. Quem tem razão? Quem fala verdade?
- Não seria de esperar que, de qualquer Governo, viesse uma afirmação no sentido de destruir o serviço Nacional de Saúde. Aquilo que o Governo diz di-lo por razões políticas e quase por obrigação política. Não pode dizer que está a fazer as coisas erradas. Tem de dizer que está a fazer as coisas certas. Quem está no terreno, quem conhece os problemas da Saúde, quem se preocupa e analisa as coisas para além da demagogia política, não tem quaisquer dúvidas que o Serviço Nacional de Saúde está a ser progressivamente destruído. E mais. Eu considero até que existe neste momento um perigoso pacto de regime na área da Saúde.
- Pacto de regime entre PS e PSD? Secreto?
- Repare. Se nós assistimos ao facto dos grandes grupos económicos estarem a investir milhares de milhões de euros na área da Saúde e esperam naturalmente ter o mesmo nível de retribuição que em qualquer outro sector da economia há uma coisa que têm de ter a certeza. Na área da Saúde não vai haver ciclos políticos. Ou seja, não vai aparecer no futuro nenhum Governo que altere esta política.
- Um Governo do PSD irá fazer a mesma política?
- Obviamente. Como existem apenas dois grandes partidos que têm alternado no poder, esses dois grandes partidos têm que ter uma grande consonância na política de Saúde e os grandes grupos económicos têm de ter a certeza dessa consonância.
- Sem isso não haveria esse investimento?
- Não haveria porque as pessoas investem quando têm um elevado grau de certeza que o investimento é seguro. Portanto, é claro e é óbvio que existe um pacto de regime na área da Saúde que passa obrigatoriamente pelo emagrecimento do Serviço Nacional de Saúde para permitir que o enorme investimento privado, dos grandes grupos económicos, seja rentabilizado. E aquilo que nós assistimos, por exemplo, é que a pequena medicina privada independente está a acabar.
- Os consultórios? O tradicional consultório médico?
- Sim, está a acabar. Com todas as dificuldades que têm sido criadas vai ser muito difícil que o pequeno consultório individual consiga sobreviver no futuro. E isso para facilitar o retorno económico do investimento dos grandes grupos económicos.
- Cresce o investimento privado, emagrece o Serviço Nacional de Saúde?
- Claro. E repare que eu não tenho, com esta análise, nenhuma posição contra o sector privado. Pelo contrário. Deve existir um sector privado forte e um sector público forte. Porque a sã concorrência dos dois de forma transparente, sem sobreposições, permite que um estimule o outro e o segundo regule o primeiro. O Estado só tem capacidade de regular o sector privado se tiver um sector público forte. É a única forma de ter um verdadeiro poder regulador. Aliás, nós assistimos às enormes dificuldades que o Estado tem em controlar as contas do Amadora-Sintra. E é um único hospital.
- E dura há anos a polémica.
- Há anos que não há entendimento nas contas e que há um enorme desfasamento entre a opinião do Estado e a opinião grupo privado que gere o Amadora-Sintra. E estamos a falar de um único hospital. Ora imaginemos multiplicar isto por dez ou vinte. Será o caos porque o Estado português é demasiado desorganizado. Um relatório da Organização Mundial de Saúde, da década de noventa, tinha uma afirmação lapidar: um Estado desorganizado mais vale ser prestador dos cuidados do que regulador dos cuidados.
- Porquê?
- Porque corre muito menos riscos prestando os cuidados do que regulando uma coisa que não consegue regular de qualquer maneira. Não consegue regular, como temos visto no caso Amadora-Sintra. Nós vamos caminhar no sentido de um Estado cada vez menos prestador e cada vez mais regulador. E como temos visto o Estado português não consegue regular rigorosamente nada, desde logo porque não tem uma cultura democrática, não tem uma cultura de competência, não tem uma cultura de exigência, não tem uma cultura de rigor e não tem uma cultura de honestidade.
- Havendo esse pacto de regime, a destruição do Serviço Nacional de Saúde é irreversível? Mesmo contra a vontade dos médicos?
- Repare, os médicos não estão a ter uma postura contra esta política. Os médicos não têm capacidade de ser contra nada. O que nós tentamos fazer é chamar a atenção para os problemas, para as consequências e propor soluções diferentes. Isso não é ser contra nada. É ser a favor de um sistema que permitiu que Portugal atingisse níveis invejáveis na prestação de cuidados de Saúde a nível mundial. Não tenho qualquer dúvida que o melhor serviço público português é o Serviço Nacional de Saúde. E estar-se a atacar este serviço de forma demagógica e com base em inverdades demonstra que não aqui uma postura transparente na forma como a actual política está a ser implementada.
- Parece que estava tudo mal, que é preciso inventar tudo outra vez, não é?
- Nós não temos de inventar rigorosamente nada. Temos múltiplos sistemas de saúde em vários países do mundo e podemos analisar os respectivos resultados. Não temos de olhar, discutir ou defender teorias. Temos primeiro de analisar os resultados e depois procurar aquilo que afinal proporcionou melhores resultados. Se Portugal, com todas as suas limitações económicas de um pequeno País, conseguiu ter o 12 º melhor sistema de saúde do mundo como é que pode vir alguém dizer que o Serviço Nacional de Saúde funcionava mal?
- É estranho. Mas não é preciso fazer nada?
- É evidente que o Serviço Nacional de Saúde, tendo quase três décadas, precisa de ser modernizado, precisa de ser adequado às novas realidades. E nesse sentido nós estamos totalmente a favor dessa reforma. De uma reforma no sentido da melhoria do funcionamento do sistema. Mas na nossa perspectiva não é isso que está a acontecer. O que está a acontecer claramente é o emagrecimento do Serviço Nacional de Saúde e um ataque às regras mais básicas e aos alicerces mais nucleares do Serviço Nacional de Saúde. Não nos parece que alguém possa dizer de boa mente que está a tentar salvá-lo.
- A mensagem do Presidente da República do Ano Novo, em que falou da situação da Saúde, foi importante?
- O Presidente da República é eleito nominalmente e directamente pelas populações. Tem, portanto, uma grande responsabilidade. A principal é ser o intérprete das preocupações da população. E eu acho que nesses avisos que fez á navegação e dentro do que é o palavriado diplomático foi extremamente explícito na demonstração das suas preocupações e das reservas quanto à actual política de Saúde. É evidente que o senhor ministro da Saúde, como político que é, tentou virar o bico ao prego. Mas eu acho que foi patente para todos, para a população e para os comentadores políticos, que não teve forma de o fazer e que efectivamente o Presidente da República pôs o dedo na ferida, nomeadamente com a questão de que é preciso que nós percebamos bem para onde é que vai a Saúde em Portugal.
- Foi uma forte crítica?
- Fortíssima e que foi direita ao centro do alvo
PERFIL
José Manuel Silva nasceu em Pombal no dia 18 de Setembro de 1959. Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra. Casado, é medico internista dos Hospitais da Universidade de Coimbra, especialista em Lipidologia, uma área de estudo e tratamento dos hiperlipidemos, isto é, dos valores elevados de colesterol e triglicémios no sangue. É dirigente da Ordem dos Médicos há três anos, quando foi eleito pela primeira vez presidente do Conselho Regional do Centro, altura em que apoiou o candidato a bastonário José Manuel Boquinhas contra Pedro Nunes.
Em Dezembro, nas eleições da Ordem, foi reeleito presidente do Conselho Regional do Centro. Apoiante desta feita de Pedro Nunes, exerce até 16 de Janeiro as funções de bastonário em exercício da Ordem dos Médicos.
entrevista conduzida por antónio ribeiro ferreira, CM 06.01.08
<< Home