segunda-feira, dezembro 04, 2006

Estou a Salvar o SNS

O ministro da Saúde, António Correia de Campos, 64 anos, quer manter o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como está: com uma maioria de hospitalização pública e diz que a sua transformação num modelo em que há um sector privado forte também pago pelo estado não está na agenda política. Na entrevista que concedeu à VISÃO, confessa não se sentir apoiado pelos privados no combate às listas de espera e algumas dificuldades na relação com este sector na gestão do hospital público Amadora-Sintra
Francisco Galope e Isabel Nery / VISÃO nº 717 30 Nov. 2006

VISÃO: O sector privado está a contratar equipas inteiras dos hospitais públicos. Isto pode causar instabilidade nos serviços públicos?
CORREIA DE CAMPOS
: Têm-me chegado rumores de insegurança. Para analisar esse problema tive uma reunião com todas as direcções dos hospitais centrais da área de Lisboa da área de Lisboa. E tomámos medidas para aprofundar o corte entre o privado e o público nos corpos dirigentes dos hospitais.

Assistimos a um boom dos hospitais privados, com uma série de novos projectos; já há um milhão e meio de portugueses com seguros de saúde. O privado já não é propriamente uma realidade de franjas?
Pode haver um milhão de portugueses com seguro privado, mas esses seguros não cobrem 100% dos riscos de saúde. Cobrem riscos muito seleccionados, antes dos 65 anos e não cobrem ninguém que já esteja doente. O que há são seguros privados adicionais, um topping up, que pode ter milhão e meio de segurados. Mas deles, não decorre nenhuma cobertura integral de saúde.
Em segundo lugar, as unidades que estão aí a abrir, têm apenas uma coincidência temporal de investimentos que se iniciaram há três ou quatro anos. Não é nada do outro mundo.

Sim, mas como vê esta evolução recente?
Enquanto ministro da Saúde tenho de responder à pergunta se este aparecimento de unidades privadas vai prejudicar o sector público. Tenho dito sempre que não, desde que haja uma separação completa entre estas instituições. E isso é importante porque o sector privado tem sido visto como de qualidade inferior ao sector público, porque não tem recursos humanos profissionalizados. Agora começa a tê-los e onde os tem, a qualidade igual à do sector público.
Temos todo o interesse que o sector privado tenha qualidade e que dê exactamente as mesmas garantias que dá o sector público, apesar de, como sabe, a maioria dos portugueses optar sempre pelo público, quando têm um risco mais grave de saúde.
Se as novas instituições, com excelente qualidade física, vierem a atrair pessoas do sector público em regime completo, fico encantado da vida. Queremos que o privado seja um sector de qualidade, autónomo, com vida própria e não que fique puramente pendurado no sector público.

O controlo do que se faz no privado, o facto de a Inspecção-Geral da Saúde ter pouca ou nenhuma autonomia...
Ter tido... É que isso mudou agora. A Inspecção-Geral do Serviço de Saúde vai ter capacidade de intervenção no sector privado.

E terá pessoas? Uma das coisas de que havia queixas era a falta de recursos humanos para fiscalizar.
Não tenho razões de queixa da qualidade, da competência nem da falta de recursos humanos da Inspecção-Geral...

Mas agora haverá um espectro de trabalho muito maior.
Com certeza! Se o espectro de trabalho aumentar, terão a correspondente ampliação de recursos. Mas também não vamos desatar a entrar no sector privado a torto e a direito. A nossa prioridade é o público. A intervenção no privado será muito pontual e em casos muito especiais. Não vamos agora começar a invadir o sector privado com inspecções a torto e direito.

A nova legislação surgiu devido ao crescimento acelerado dos privados?
Não, já era uma necessidade muito grande. Há uma responsabilidade do Estado. Se licencia uma unidade privada, tem de poder verificar se as coisas estão a correr bem. Não estamos nada interessados numa intervenção inquisitorial sobre o sector privado.
O nosso dever é garantir que, além da boa reputação que as unidades privadas têm no mercado, tenham também uma qualidade intrínseca, verificada pelos poderes normais de verificação de qualidade. Aliás, o sector privado tem alinhado muito nisso. O Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) foi um dos primeiros a obter a sua certificação de qualidade. Eles são os primeiros interessados nessa matéria. Aí, tenho a certeza que nunca teremos problemas com o sector privado.

Mas com o número de unidades que têm surgido e as que estão por abrir, não se corre o risco de se ter um sector privado dependente do público? Onde é que vão eles buscar os clientes? Ao público?
Não vão ter clientes em regime convencionado com o sector público. Não estão previstas convenções gerais com essas novas unidades privadas. Terão cidadãos que lá vão livremente e pagam do seu bolso ou, através de seguros. Poderão surgir convenções pontuais, em áreas onde o SNS apresente insuficiências. Ou seja: não vamos transformar o SNS, que tem uma maioria de hospitalização pública (cerca 80% das camas) num modelo francês, belga ou suíço, em que há um sector privado forte que é também pago pelo Estado. Isso não está na nossa agenda política.

E porque não? Se os privados oferecerem um serviço melhor?
Porque não temos dinheiro nem mecanismos para os avaliar e porque já temos imensas dificuldades e problemas no único hospital público que é gerido por privados – o Amadora-Sintra. Portanto, não vamos arranjar mais problemas, vamos mas é valorizar o sector público. Eu fui designado ministro da Saúde para gerir o SNS.

Mas, no caso das listas de espera cirúrgicas, recorre-se ao privado e fica mais barato...
Sabe quanto é que isso representa? Qual a intervenção dos privados nas listas de espera? Menos de 10 por cento! Também nós estávamos convencidos que haveria um boom privado nessa área, mas isso nunca se verificou. A verdade é que a abertura foi total para com o sector privado e este não manifestou mais do que um interesse marginal. E não está a dar mais do que um contributo marginal para a resolução dos problemas das listas de espera.

Estas movimentações no privado podem ser interpretadas como sendo os grupos a posicionarem-se para a corrida às parcerias público-privadas, demonstrando assim que têm capacidade técnica e de gestão. Não se estará aqui a abrir uma caixa de pandora?
Isso tem de lhes perguntar a eles. Suponha que eles fazem propostas de convenções magníficas de preços mais baixos que no SNS, incluindo as diferenças para as servidões públicas de urgências, de formação profissional etc. Nessa altura, serão propostas interessantes. Neste momento, não há propostas em cima da mesa. Deixe-os desenvolver-se, deixe-os aparecer. E, com certeza, faremos algumas convenções em áreas pontuais onde estejamos em insuficiência. Como em radioterapia, por exemplo.

Com as alterações recentes à Unidade de Missão, haverá também alguma mudança no modelo de parcerias público-privadas?
O modelo das parcerias mantém-se para os quatro projectos, já em marcha. Nos da chamada segunda vaga, o modelo será avaliado caso a caso. Em alguns desses novos hospitais, a construção poderá ficar a cargo do sector privado, mas a gestão público no público.

Alguns privados ambicionam uma fatia de 50% do SNS.
Não há nada impossível neste mundo, mas não vai ser fácil.

Qual poderia ser então a fatia dos privados?
A que existe actualmente é perfeitamente legítima e aceitável. Temos 80% das camas hospitalares públicas e 20% privadas.

Comparando algumas taxas moderadoras com as tarifas cobradas pelo privado a clientes com seguros de saúde, notamos que a diferença não é assim tão grande? Um exemplo: no público, a taxa moderadora para uma TAC custa 17,4€, no privado, o utente de um dos seguros mais representativos paga 20...
Não! ‘tá enganado! ‘tá enganado! Isso só existe nos meios tecnológicos mais caros. Nas TAC e nas ressonâncias magnéticas é que há taxas moderadoras mais altas. Não estará a confundir com as tabelas do sector privado ao público?

Há muita gente, coberta pelo seguro, a dizer que prefere ir a uma unidade privada. Dizem que esperam menos e que pagam quase a mesma coisa...
Óptimo. Podem ir. Isso é o mercado a funcionar, não é mal nenhum nem nenhum pecado.

Não é bom para o SNS...
Então não é? Não tem de fazer essa despesa, fica mais aliviado em termos quantitativos e pode tratar melhor os que lá vão.

Não dá uma péssima imagem do sector público: caro e ineficiente?
Se o sector privado tivesse um atendimento modelar, óptimo. Mas o que se verifica é que, em alguns casos, o padrão de atendimento passa do público para o privado, porque as pessoas são, basicamente, as mesmas. A conclusão a tirar disso é que, no sector público (e eu sou responsável é pelo sector público) temos de melhorar consideravelmente os padrões de atendimento.

Há um grupo de trabalho para avaliar a sustentabilidade do SNS...
Essa comissão, que termina os seu trabalho em Março de 2007.

E perspectivam-se alterações ao nível do financiamento do SNS?
Não muda nada a não ser aquilo que está no artigo 38 e 39 do Orçamento de Estado: o alargamento das taxas moderadoras aos internamentos (cinco euros até ao limite de 10 dias) e às cirurgias em ambulatória (cinco euros), mantendo-se as isenções que abrangem 55% da população. Em Março, em função das conclusões do relatório da comissão, logo veremos.

Se fica tanta gente de fora, as novas taxas moderadoras adiantam alguma coisa? Uma comparação muito simples: num ano são 7,5 milhões de euros. É o que custa o tratamento de dois mil doentes com cancro. Vale a pena ou não?
Discutir a sustentabilidade é partir do princípio que ela pode não existir.
Muito simplesmente temos de partir do princípio que os gastos em saúde crescem muito mais depressa que o Produto Interno Bruto. É só isto. Como se torna sustentável? Por vezes crescem, como no passado, muito mais depressa que o orçamento inicial. Era sempre preciso chegar ao fim do ano e fazer orçamentos rectificativos. Só em 2006 é que isso não acontece e no próximo ano. Tenho a certeza, que este ano e no próximo cumpro o Orçamento.
E depois de 2007?
A partir de 2008, muitas coisas podem acontecer. Tudo leva a crer que a economia melhorará e, nessa altura, há-de haver outras possibilidades de solucionar a situação. É evidente que não posso, todos os anos, reduzir o preço dos medicamentos em 6% nem congelar o crescimento dos meios complementares de diagnóstico.

Conseguir isso tem-lhe dado muitas dores de cabeça?
Sem boas contas, não há bom Serviço Nacional de Saúde. Fui contratado para isso. Tenho três objectivos. O primeiro, a reforma dos cuidados de saúde primários, através das unidades de saúde familiares (USF). O segundo é tapar o buraco negro da ausência de cuidados continuados aos idosos. Estamos a criar, aos poucos, através de um programa progressivo, que atingirá os 30% das necessidades em três anos. Só em 10 anos atingiremos a totalidade das necessidades. Terceira prioridade: boas contas.

Essa já passou para terceira. A entrevista que deu ao Público, em Agosto, foi muito polémica, porque pôs o dinheiro como primeiro objectivo.
Acho que a crítica foi muito justa. Estava tão preocupado...

As críticas mudaram a sua forma de encarar as coisas?
Não mudei. Sempre pensei que as outras eram prioritárias. São medidas essenciais e estruturantes. Mas acho a crítica absolutamente justa. Não o querendo fazer, dei a noção falsa de que estava obcecado com a execução orçamental.

E quanto vai custar tapar o buraco negro da ausência de cuidados continuados?
Daqui a três anos, quando tivermos 30% da cobertura são cerca de 300 milhões de euros. Temos os recursos para isso garantidos, através das receitas dos jogos sociais.
Sente-se injustiçado quando o próprio PS o critica?
Hui, que exagero! Qual PS?

Jorge Coelho, por exemplo.
Ele fez duas declarações. A primeira: «espero que o Governo não se baseie exclusivamente nos pareceres dos técnicos, por muito ilustres que eles sejam». Aí não há nenhuma discordância sob este ponto de vista. Nunca nenhum governo pode seguir as linhas de orientação dos técnicos, por muito bons que eles sejam. Sobre o trabalho técnico incide uma análise política e uma apreciação. A política é a arte do possível.
A segunda: «Há gordura a cortar, então comece-se por outros sectores que não a saúde». Eu aí discordo. Se há gordura a cortar é também aí que se deve dar o exemplo, porque essa gordura pesa no funcionamento do SNS, na sua agilidade. O SNS só se mantém se for cortada alguma da gordura, porque esta o torna presa fácil dos predadores.

Ou seja, não terminará o seu mandato, como chegou a ser afirmado na Assembleia da República, como o «coveiro do SNS?
Termino este mandato, daqui a três anos, provavelmente, como a pessoa que recuperou o SNS. É esse o meu objectivo. A pessoa que inverteu a queda para o abismo do SNS. O meu compromisso com os portugueses é salvar o Serviço Nacional de Saúde. E é isso que estou a fazer.