sábado, outubro 28, 2006

Entrevista - A. Vaz Carneiro


Gestão Hospitalar
Que tipo de medicina é que se pratica em Portugal?
António Vaz Carneiro –No meu sentir, a medicina portuguesa é de bastante boa qualidade. Digo isto porque há índices objectivos que nos mostram tal. De uma maneira geral, nas áreas mais importantes nós temos serviços de saúde de boa qualidade. Como é óbvio, haverá áreas mais bem providas que outras…

GH
Como por exemplo?
AVC – O mundo cardiovascular todo, até pela sua importância, tem serviços mais avançados e com melhores resultados que outros que sejam mais raros ou mais complexos de montar, nomeadamente, as tecnologias que são muito dispendiosas. Os dados objectivos, nomeadamente, em termos de saúde pública, são bons.

GH
Vê grandes diferenças relativamente à União Europeia ou aos Estados Unidos?
AVC – Na União Europeia a maior parte dos países tem é mais dinheiro para a Saúde. E isto significa maior capacidade de oferta de cuidados. Não significa necessariamente melhor qualidade de cuidados. Significa, sim, mais oferta, mais capacidade dos doentes poderem aceder ao sistema.
Não é possível comparar com os Estados Unidos. Eu estive lá seis anos e não há comparação possível. Os Estados Unidos não têm um sistema de saúde, têm milhares. A maneira como todos os sistemas estão montados é a de uma economia liberal, não existem políticas de saúde, a bem dizer… quando muito, poderão existir localmente em alguns Estados ou cidades. Há profundas desigualdades nos Estados Unidos que nós cá, na Europa, enfim, gostamos de pensar que não temos…
Hoje em dia já há 46 milhões de americanos que não têm seguro de saúde. E isto significa que estas pessoas só têm um processo de serem tratadas. É ir ao serviço de urgência, um tratamento que todos os hospitais, privados ou públicos, são obrigados a dar de graça. A pessoa fica com medicamentos para dois, três dias, e não compra mais porque não tem dinheiro… Isto ao lado de hospitais de ponta extraordinários, com tecnologias fantásticas, que fazem coisas que mais ninguém faz no mundo.
O Hospital de Santa Maria é melhor que alguns que eu conheci nos Estados Unidos, é pior que outros.
GH – Recordando os 46 milhões de americanos sem cuidados de saúde. Acha que as medidas que o actual Governo está a tomar e a tendência para se apontar os seguros de saúde complementares como a saída, acha que Portugal está a ir pelo mesmo caminho?
AVC – Não necessariamente. Não sou um político de saúde nem um gestor…

GH
Mas tem uma opinião.
AVC – Tenho. Não acho necessariamente uma ideia má que nós paguemos suplementarmente a saúde, para além dos impostos que pagamos. A maior parte dos portugueses continua a estar completamente isenta e não me repugna pensar que as classes média e média alta possam pagar extra. Pessoalmente, não tenho qualquer problema em chegar a um hospital público e pagar uma taxa moderadora.

GH
É a favor das taxas moderadoras também para os internamentos?
AVC – Não me parece uma ideia assim extraordinária, na medida em que o internamento é compulsivo. Não estou a ver como é que vamos conseguir uma medida que seja racionalizadora desse internamento, porque ele ou é preciso ou não é.

GH
Se a decisão cabe inteiramente ao médico acha que é justo que seja o doente a pagar…
AVC – Lá voltamos ao mesmo! É uma questão social. Aceitamos ou não que as pessoas da classe média e média alta, que têm bom poder de compra, devam pagar extra independentemente da maneira como entraram? Há pessoas que acham que não, porque nós pagamos impostos e é uma posição inteiramente legítima e muito honesta. Há outros que acham que devemos pagar suplementarmente. As quantias que estamos a falar, sejamos honestos, são muito baixas! Isto é uma questão ideológica. A medicina em Portugal está extraordinariamente politizada. A meu ver, desagradavelmente politizada. Muitos
aspectos que nós devíamos discutir deveriam ser no campo estritamente técnico-profissional e transforma-se tudo em política. Se se quer construir um hospital, deve ver-se se a explosão demográfica nesse sítio o justifica, no caso afirmativo, que tipo de hospital, há estudos que se fazem…

GH
O argumento é válido para o encerramento dos blocos de partos, serviços de urgência, SAPs?
AVC – Absolutamente! Nesse aspecto, sinto que a maneira como o processo de decisão política foi levado, parece-me exemplar. É criado um conjunto de 'experts', que se assumem como tal, dão aconselhamento técnicoprofissional ao ministério e este segue. Não me parece haver outra maneira de ter uma decisão racional.
É claro que as pessoas vão sempre pensar que vão ser prejudicadas, mas não é possível termos recursos para toda a gente por igual. Nisso concordo inteiramente com o que está a ser feito! Porque me parece que o processo é muito inteligente. Nada disto está a ser feito em gabinetes fechados, são métodos de decisão perfeitamente transparentes e eu apoio isso. Mesmo que isso possa ter preços políticos.
Apesar de tudo, não acho que a decisão política deva ser baseada na evidência científica apenas. Estas decisões têm factores políticos, culturais, económicos. Mas, se vou tomar uma decisão de fundo, como melhorar a qualidade do sistema que me obriga a fechar blocos de partos, a fechar serviços de urgências, como é que posso encolher os ombros e não o fazer?
As pessoas não se convenceram ainda que não há dinheiro para tratar toda a gente a cem por cento. Não é possível! Não há nenhum país do mundo que consiga assegurar os cuidados de ponta a toda a gente. O que nós queremos é uma média boa.

GH
Não se revê nas críticas ao ministro da Saúde de falta de diálogo, vindas, por exemplo dos autarcas?
AVC –Os autarcas conhecem bem as populações locais mas os autarcas não pagam a saúde. Ou nós temos a capacidade de fazer uma descentralização absoluta dos serviços de saúde e dizemos aos autarcas vocês passam a ter este 'budget', temos uma política nacional e não pode haver 500 TAC's, mas os senhores fazem o que entendem com o vosso hospital, isto é, organizem-se e aos serviços de saúde e nessa altura eu aceito todas as críticas dos autarcas. O que eu acho absolutamente inaceitável que depois de um processo bem feito, bem explicado - e ao contrário do que eles diziam, eu acho que o ministro explicou bem - que os autarcas venham com os seus interesses locais. Faz parte da política mas isso não me parece legítimo.
Quando um serviço de partos é cuidadosamente analisado e se sabe que é preciso um número mínimo de X partos por ano para garantir a qualidade do que se está a fazer, como é possível que se diga que se quer manter esse serviço de obstetrícia aberto? Por mais incómodos que as pessoas tenham, mais vale ter o parto com mais segurança, nem que tenha de me deslocar 50 quilómetros, do que para minha comodidade fazer dois quilómetros e arriscar-me a ter complicações obstétricas para a mãe e o filho.

GH
A medicina que se faz em Portugal neste momento é baseada na evidência?
AVC – É parcialmente baseada, como é no mundo inteiro. O problema é que, nos últimos 30 anos, explodiu completamente a produção dos dados científicos. A posição eticamente defensável que nós devemos usar os dados científicos para apoiar decisões clínicas e, por tabela, decisões de administração e gestão e políticas, provém do facto de hoje em dia termos muito boa evidência científica, ela estar disponível para a podermos ir buscar e ser interpretável e aplicável fora dos sítios onde são feitos os estudos. Assim, parece-me impossível e errado não pegar nessa evidência científica para não apoiar, nomeadamente, a decisão política. É quase um imperativo ético que tenhamos de utilizar esta informação para melhorar a qualidade do nosso trabalho e das nossas decisões.
Apesar de utilizarmos esta evidência científica não a utilizamos bem. Há hoje em dia um processo de produção de dados científicos de alta qualidade e o grande desafio aqui é fazê-los chegar às pessoas.

GH
Onde é que falha esse processo?
AVC – Nós hoje já temos processos de informação muito bons, através das tecnologias de informação mais modernas, já temos instrumentos, programas, livros electrónicos, que nos permitem 'on real time' num serviço de urgência, numa unidade de cuidados intensivos, num centro de saúde, ter, em dois minutos, uma resposta precisa, cientificamente sólida, de alta qualidade. Isto já é possível. O grande desafio está em fazer chegar aos profissionais de saúde, médicos e não só, esta informação atempadamente, no momento em que estão a ter interface com o doente.

GH
Mas o que falha?
AVC – A construção do sistema tecnológico de informação. Ele está montado aqui dentro, na Faculdade e no Hospital de Santa Maria, 24 horas por dia. Fora daqui já não se pode aceder, porque é fechado por uma questão até de 'royalties' dos programas. Primeiro, temos então de construir o substrato tecnológico para poder distribuir a informação toda. Em segundo lugar é preciso um investimento e 'know-how' para saber que informação é que vamos disponibilizar. Até porque a questão, hoje em dia, é que há informação a mais! Publicam-se quatro milhões
de livros por ano!

GH
Quem faria essa triagem?
AVC – As classes profissionais lideradas pelos académicos. Mas que fique claro: não acho que seja apenas o mundo académico. Cada uma das profissões - médicos, enfermeiros, farmacêuticos - deve ter grupos de 'experts' - para seleccionarem aquilo que é entendido como relevante, de alta qualidade e que seja aplicável.
O desafio não é tratar cada vez menos doentes com doenças mais raras, com tratamentos mais dispendiosos, é, sim, levantar a média do tratamento. E isso significa chegar a milhares de profissionais.

GH
Será fácil implementar esse sistema em Portugal?
AVC – Vai devagar, são investimentos vultuosos. A tecnologia é nova, não é fácil de montar, mas já há países onde estão bastante adiantados: Inglaterra, Canadá, Alemanha, França, Nova Zelândia, Austrália. A minha proposta é ir buscar essa experiência.

GH
Como está a investigação médica em Portugal?
AVC – A investigação básica está de boa saúde, a investigação clínica quase não existe. Ou seja, na básica, temos excelentes grupos, que publicam nas melhores revistas dos mundos. A investigação clínica existe muito pouca…

GH
Porquê?
AVC – Porque é complexa de fazer. Não há dinheiro e não há pessoas. Estou a falar de qualquer tipo de estudos em doentes, com questões que importam aos doentes, com técnicas que possam ser aplicadas aos doentes, para doenças que os doentes têm. É uma área difícil a dos ensaios clínicos, a dos estudos de diagnósticos… há já muito coisa é nos estudos epidemiológicos observacionais, o que se chama a investigação dos serviços de saúde ou dos resultados em saúde. Fazer um centro universitário de investigação para ensaios clínicos pode querer dizer ter 400 a 600 pessoas a trabalhar só para isso. É uma área muito complexa, mas temos esperança de a desenvolver em Portugal, nomeadamente, começando pelos ensaios clínicos.

GH
O que significou para si ter um trabalho seu publicado no 'British Medical Journal'?
AVC – Foi a nossa coroa de glória! É um prémio importantíssimo. Fizemos uma meta-análise, olhando todos os ensaios clínicos publicados até hoje, em que houvesse um controlo do colesterol, simultaneamente, em doentes diabéticos e não-diabéticos. Seleccionámos 12 artigos que foram cuidadosamente escrutinados e descobrimos que, quer em cuidados primários, quer em cuidados secundários, a modulação do colesterol, quer com estatinas quer com fibratos, diminui em 23% o risco cardiovascular nos diabéticos e em 21% nos não-diabéticos, demonstrando assim que o impacto é muito superior nos diabéticos. Nós estamos convencidos que os diabéticos devem fazer logo um anti colesterol desde que tenham um diagnóstico feito. Este trabalho suporta a ideia que devemos ser muito agressivos em doentes com diabetes e com colesterol, mesmo que este esteja relativamente normal, porque vai evitar complicações.
Este estudo foi integralmente desenhado aqui no CEMBE, teve uma chamada de capa da revista e um editorial e já recebemos mensagens a dizer que ele já foi abstraído para a maior parte das bases de dados mais importantes do mundo. Esta é uma das áreas em que Portugal pode ganhar muito: é dominar bem esta tecnologia, ter boas ideias e fazer investigação secundária.

GH
O que é que o Centro está a estudar agora?
AVC – Está a estudar doenças cardiovasculares, acima de tudo, e estamos também a fazer investigação sobre diabetes e doenças neurológicas. A fazer estudos observacionais e, esperamos, eventualmente, participar, no futuro, em ensaios clínicos.

GH
Em que se baseou o trabalho que apresentou na IIª Conferência de Farmacoeconomia?
AVC – Pediram-me para responder a pergunta simples: o que é que um gestor hospitalar deve saber, por exemplo, sobre a introdução de novos medicamentos hospitalares. Estes são medicamentos de eficácia comprovada, de manuseamento e seguranças difíceis, para doenças uniformemente graves. O problema que se põe hoje com medicamentos, quer hospitalares quer não, é que quando aparece um novo, ele vem para um grupo onde já dois, três, seis. A questão é saber o que é que ele traz de novo, a mais, para a patologia que vamos tratar. Isto é, devo ou não devo - eu, gestor - introduzir no meu hospital esta molécula, que é habitualmente muito dispendiosa. Os medicamentos hospitalares baratos que há são os clássicos, os novos não são baratos. O que eu defendo é que existem hoje metodologias, informação, que permite fazer aquilo que fizemos com as estatinas com todos os medicamentos.
Por exemplo, os anti-hepatite B crónica, que são quatro medicamentos. Eu sou um gestor e de repente aparece um medicamento novo. Como é que eu sei que o devo utilizar, em que subgrupo de doentes, haverá restrições em termos terapêuticos, ou seja, efeitos secundários que eu vou ter de tratar? Para responder a isto só há uma hipótese e foi isso que defendi na Conferência: as pessoas devem fazer revisões sistemáticas da literatura ou sobre as moléculas individuais ou sobre as patologias. Sabendo nós que o 'gold standard' da determinação da eficácia de uma terapêutica é o ensaio clínico caracterizado por objectivo controlado - o 'Randomized Clinical Trial' (RCT) – quantos RCT é que tenho dessa molécula? Em que amostras é que foram feitas? Posso combinar estes estudos todos? Quando surge este novo medicamento devo pensar se vale a pena introduzi-lo em termos de eficácia, de segurança. E o custo/eficácia justifica a diferença ou não? Tenho doentes em que consigo provar a sua eficácia e que esse impacto deve pago?
Há uma fase disto que eu defendo que deve ser feito a montante, pelo INFARMED, mas há uma fase que deve ser feita no hospital. Não me parece possível estar à espera de um instituto central que se iria criar para produzir isto, porque cada hospital cobre uma população diferente. Para decidir bem, neste campo, é indiscutível lançar mão da ciência.

GH
Não acha que actualmente essas decisões são muito mais economicistas que outra coisa?
AVC – Acho que deve ser o medicamento mais barato desde que não baixe a qualidade. E muito daquilo que a gente faz não necessita de medicamentos novos. Para certos subgrupos de doentes sim, mas para a grande quantidade de doentes de muitas patologias não é preciso o último medicamento.

GH
E no caso de doenças como o cancro ou o HIV/SIDA?
AVC – Se há um novo retroviral ou citostático têm de ser olhados como qualquer outro medicamento. Tem de se ver os ensaios clínicos, em que populações foram aplicados, que tipo de doentes é que trataram, para poder fazer uma transposição desses resultados todos para o meu centro.

GH
Nesse processo os médicos e os gestores não estão de costas voltadas?
AVC – Estão, mas cada vez menos. A minha esperança é que os médicos e os gestores aceitem a linguagem comum que é a ciência.

GH
Qual é a sua definição de Farmacoeconomia?
AVC – É uma ciência que estuda o impacto do custo dos medicamentos para o tratamento de doenças no serviço nacional de saúde. A Farmacoeconomia mais não é que atribuir um preço a uma eficácia.

GH
A indústria farmacêutica não é a má da fita?
AVC – A indústria faz o seu papel e parece-me injusto ser a má da fita. Eu percebo que indústria ganhe muito dinheiro porque são os únicos que fazem os medicamentos. As técnicas de marketing muito agressivas vêm da realidade que é a indústria vive debaixo de uma pressão brutal para ter resultados. Está na Wall Street e eles têm de vender os medicamentos. Cabe-nos a nós, profissionais, pôr um bocadinho de ordem nisto. A indústria faz o seu papel…

GH
Mesmo os delegados de informação médica?
AVC – Eu não recebo delegados de informação médica! Porque não preciso. Se eu quiser saber quais são os tamanhos das caixas ou quantos comprimidos tem telefono para o INFARMED ou para a casa-mãe. Eu teria vergonha na cara se um delegado me ensinasse alguma coisa sobre um medicamento!
Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 21 Out 2006