quarta-feira, novembro 08, 2006

O Rationale das Taxas Moderadoras

Havendo reduções nas listas de espera, os “mais pobres” ganham bem-estar. [...]Faz agora dois anos que desenvolvi e quantifiquei, detalhadamente, este modelo.
Foi recebida com desagrado geral, a inesperada decisão do ministro da Saúde de criar novas taxas moderadoras para os internamentos e as cirurgias em ambulatório.
O ex-director geral da Saúde, C. Sakellarides chamou-lhes mesmo “taxas de punição dos doentes”, por corresponderem a “consumos forçados”.
Mas, mais importante ainda, é irmos à raíz da questão, ao ‘rationale’ (i.e., ao fundamento jurídico e económico) em que ela assenta.
Para um economista, o artigo 64º da Constituição tem uma interpretação inequívoca.
Nele se diz que o Serviço Nacional de Saúde, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, é tendencialmente gratuito.
Isso implica, no longo prazo, que não haverá taxas moderadoras; e, no curto e médio prazo que, se elas existirem, devem ser diferenciadas.
Diferenciadas, por condições económicas (consoante os escalões de rendimento do IRS); e diferenciadas por condições sociais (consoante a gravidade dos riscos de doença ou de exclusão social).

Acresce que esta diferenciação também é recomendada pela teoria económica.

Pita Barros, provavelmente o nosso melhor investigador académico na área da Saúde, em artigo recente na Imprensa, argumenta que “do ponto de vista da eficiência, para se obter um efeito similar de restrições de consumo de serviços de Saúde, em rendimentos mais altos terá que se usar uma taxa moderadora mais elevada”.

A este ‘rationale’, proponho que se acrescente um outro.

A Constituição (que, a meu ver, proíbe o ‘opting out’) não impede os cidadãos de exercerem o seu direito de escolha, entre o SNS e os prestadores privados, desde que possuam um seguro de Saúde.
Mas este direito – racionado pela capacidade económica – viola o carácter universal e geral do direito à protecção da Saúde.
O seu significado económico é que só “os mais ricos” podem escapar às listas de espera do SNS, encontrando atendimento imediato nos prestadores privados, por terem “meios” para pagar as franquias (e os prémios) dos respectivos seguros de saúde.
Esses “meios” são o preço sombra dessa ineficiência do SNS (as listas de espera).
O interessante é que, se houver um incentivo que induza os “mais ricos” a optarem por prestadores privados, as listas de espera no SNS diminuem e passam a incluir apenas “os mais pobres”; e, se este corte de procura for suficientemente forte, estas listas tenderão mesmo a acabar.
Esse incentivo é que as taxas moderadoras deverão subir, mas apenas para “os mais ricos”, e sem que elas deixem de ser, para eles, tendencialmente gratuitas; isso consegue-se se, apesar da subida, elas continuarem a ser inferiores às “franquias” exigidas nos seguros de Saúde.
Mais, se o ganho de receita assim obtido for “redistribuído”, alargando as isenções para os “mais pobres” nos seus “consumos forçados”, estes ganharão em bem-estar (convém lembrar que, por exemplo, uma ressonância magnética lhes “custa” 19 euros).
E, havendo reduções nas listas de espera, os “mais pobres” ganham bem-estar adicional relevante porque se reduz o racionamento do seu direito de escolha, assim se caminhando para o cumprimento integral do preceito constitucional.
Por outro lado, este tipo de “redistribuição”, exclusivamente com estes objectivos de bem-estar, não colide com a função clássica de redistribuição de bem-estar que é assegurada pela progressividade da tributação em IRS.

Faz agora dois anos que desenvolvi e quantifiquei, detalhadamente, este modelo.

Fazia parte de um Governo que foi objecto de um inédito despedimento colectivo, por parte de um afável, palavroso e mediano Presidente da República que conseguiu assim entrar na História, embora em nota de rodapé.
Na altura, alguns fazedores de opinião e putativos candidatos a futuras lideranças políticas criticaram com acinte este modelo, sem o conhecerem ou, se o conheceram, foram suficientemente ignorantes para o não perceber.

Perdoai-lhes, Senhor porque, graças à oportunidade que surgiu de escrever este artigo, eu já pude saldar as minhas contas com eles.
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Mário Patinha Antão, Ex-secretário de Estado adjunto da Saúde
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