sexta-feira, novembro 24, 2006

Reformar o SNS

Caro Aidenós

Ainda bem que há quem pense e esteja disponível para dialogar e aprofundar o que mais nos interessa (SNS). Continue a desinquietar o blogue sem «medos» (não inovar, enfastiar).
Não querendo deixar de contribuir deixo-lhe aqui algumas questões para reflexão.
Há 3 pontos que considero inquestionáveis, seja a necessidade de: 1º) Acabar com a concentração de poderes no SNS; 2º) Todos os actores do SNS cumprirem o seu papel MESMO (e não o doutrem); 3º) Acabar com a promiscuidade e incentivar o profissionalismo.

O conceito do SNS que apresenta é apelativo, traduz uma determinada posição que se respeita, porém nada tem apenas vantagens (também desvantagens e riscos), e isso cria a oportunidade para debate.

Definir (“não ficcionar”) o que integra o SNS? Unidades privadas integradas no SNS?
Ninguém duvida que não é possível dar tudo a todos (muito menos à porta, alta qualidade, inovador, grátis,...) e há muito que existe consenso (peritos) sobre a necessidade de definir o pacote de cuidados que se garante. Porque nunca foi definido? Para além da “relutância em acolher a inovação” do SNS há que considerar a pressão de: 1º Profissionais e seus representantes (ex. associações); 2º Prestadores privados/convencionados; 3º Opinião pública (ex. associação de doentes, jornalistas, políticos). Comentário: É necessário, não será fácil.

Quanto a integrar entidades na «avaliação e controlo pelo SNS» após garantir as «condições exigíveis previamente definidas e divulgadas» parece-me bem se:

a)- As ditas condições, diria requisitos, fossem mesmo semelhantes ás exigidas aos HH públicos:
i) Acreditação/certificação para assegurar a qualificação dos profissionais, a qualidade e segurança necessária dos outros inputs, a qualidade organizacional e clínica e a disponibilidade de meios suficiente (também fora das “horas de expediente”);
ii) Coordenação de cuidados e troca de informação sobre os doentes;
iii) Exercício no respeito pelas regras gerais do SNS (apropriação, RRH, financiamento);

b)- Fosse limitada e condicionada:
i) Aposta em quem já produziu, inequivocamente, bons resultados para o SNS;
ii) Em áreas e especialidades em que o SNS tem resposta insuficiente (não acrescentar oferta onde SNS tem já capacidade excedente e deverá cortar oferta);
iii) Perspectiva de repartição (SNS/Parceiro privado) dos ganhos económicos obtidos e das inovações introduzidas.

Questiona-se no entanto:

-Os privados que (agora) nem a produção dão a conhecer (mesmo dos integrados na rede não se conhecem os custos, ex. Amadora-Sintra), estão dispostos a serem «avaliados e controlados»?
-Se o SNS não controla agora sequer “bem” a sua facturação e não avalia devidamente os seus gestores e resultados vai conseguir depois avaliar e controlar mais alguns privados?

2ª- Financiamento igual ou equitativo?

O financiamento deve ser igual quando a produção e condições o forem. A simples aplicação das tabelas do SNS aos privados leva a pagamento não equitativo porque estamos perante doentes e produção em condições diferentes, o que inflaciona os custos dos HH do SNS (beneficia quem os cobrar sem as sofrer), p. ex.:

a)-Doentes diferentes: SNS tende a ter doentes mais “pesados”/problemáticos (ex. mais idosos, mais graves/ com complicações, mais dependentes e casos sociais);

b)- Produção diferente:
i) Prevalência na facturação privada de inúmeros doentes no internamento que são “de dia” (ex. cataratas, retirar material de ortopedia, canal cárpico);
ii) Maioria dos doentes chegam já estudados pelo SNS, pelo que o custo é apenas do tratamento (cirurgia e internamento e não custo diagnosticar na CE ou no internamento – se admissão é pela urgência);
iii) O “upcoding” será menos acentuado no SNS;

c)- Requisitos diferentes:
i) HH do SNS tem servidões que aumentam os custos de todos os cuidados (SU/emergência, ensino e formação);
ii) Outros requisitos actuam no mesmo sentido (ex. qualificação dos profissionais e quadros pessoal);

d)- Produção urgente Vs programada e focalizada:
i) Nos HH do SNS % significativa provém da urgência, donde maior custo (estadia e MCDT necessários até diagnóstico, mau uso da capacidade e recursos ociosos);
ii) Quem tiver menor gama de produção terá menores custos (ganhos por escala de produção e benefícios da curva de experiência). Os ganhos não ocorreriam se o SNS não respondesse em todos os restantes, pelo que os benefícios devem ser partilhados;
Considera-se ainda que deveria haver ajustamento financeiro cf resultados (qualidade, satisfação doentes).

3ª- Grande liberdade de escolha?
Naturalmente todos gostaríamos de ter total liberdade de escolha em todos os serviços públicos (saúde, educação, etc.), porém há quem apresente pelo menos 3 argumentos contra:

a)- Estado garante um serviço, mas não pode oferecer toda a escolha...
O Estado esgota o seu dever ao oferecer “aquele” serviço (quer o produza, concessione ou adquira). Cumpre o dever de garantir equidade (retirou em impostos para assegurar o acesso a bens semi-públicos e, por solidariedade e para benefício geral, não se paga o preço). Quem quiser melhor (qualidade, serviço, disponibilidade, tempo de espera) pagará o preço, fora do sistema público (para isso pode constituir fundos e seguros, que o Estado «concede» economia fiscal). Todos reconhecem que o serviço público deve ser de qualidade, mas (...). Compreende-se que a produção pública de educação e saúde (com os problemas que sempre terá) para satisfazer e corresponder às preferências de todos (nivelamento por cima, se pagar e for entendida apenas como “um direito”) esgotaria rapidamente o Orçamento do Estado.

b)... se o consumidor não tem informação e o prescritor pode ser o prestador privado...
Quando o consumidor paga o preço e escolhe (sabe o que quer e as alternativas existentes – qualidade,disponibilidade, ...) «tudo bem», há decisão racional e a mão invisível faz o resto. Em saúde nada disso se passa e o doente: não sabe o que precisa; não sabe nada das alternativas; não paga o preço. Acresce que, por vezes, quem prescreve não é independente de quem irá executar no privado/ convencionado (por vezes é o mesmo). Geram-se então 2 problemas:
i) Possibilidade de indução da procura pelo médico (prescrição defensiva ou “just in case”; prescrição no interesse do prestador);
ii) Risco moral (não prevenir a doença porque se terá tudo de graça; na dúvida, já que não se paga, esgotar as possibilidades disponibilizadas, omitir que já se tem medicamentos/se fez consulta ou mesmo pedir a prescrição de X). Esta situação é tanto mais grave quanto maior acesso (liberdade de escolha, serviço próximo e horário conveniente, sem restrições administrativas ou clínicas) e liberdade de prescrição houver.

c)... deseja-se pretendem-se resultados e saúde, não muitos actos e contactos.
Em saúde, finalmente, mais do que fábricas de actos (ainda que muito eficientes tecnicamente) o que se pretende é a saúde e apropriação, não é o consumismo/“shopping around” sem garantir apropriação (fica mais caro á comunidade e pode trazer riscos acrescidos ao doente) (vide Porter em “Redefining Health Care”). Ora a maior liberdade de escolha e o interesse económico do prestador (consumidor nada paga) pode provocar:
i) Produção de mais actos, alguns inapropriados, ineficazes ou duplicados;
ii) Maior fragmentação e menor coordenação de cuidados (como já temos...) o que aumentará os custos, mas não os resultados nos doentes (saúde, qualidade de vida).

NOTA: Haveria ainda que considerar que a relação entre cuidados e saúde muitas vezes é pequena, noutras é nenhuma ou é mesmo contraproducente (ex. queda ou infecção de doente que não precisava de ir ao SU). Daí que quanto mais caros e perigosos forem os cuidados (hospitalares, sofisticados) melhor deva ser o controlo – ao contrário dos cuidados de proximidade, porque o MF conhece o doente e a sua história, custo é baixo e pode despistar doenças.

Entre nós há quem afirme que:
i) 20% do que se paga a convencionados não terá sequer sido produzido e que o SNS não controla, ou tem controlo ineficaz, o que adquire (ERS);
ii) “actual sistema de convenções fere o princípio de mercado, em que a qualidade gera a procura, porque os mesmos agentes controlam simultaneamente a oferta e procura” (Prof. Manuel Antunes);
iii) São públicos os sucessivos desencontros/ diferendos de contas no Amadora-Sintra (contas por fechar desde 2002, segundo JN de 21/11/06). Há também a suspeita que haverá “upcoding” e problemas de qualidade (ex. profissionais sem qualificação) e a convicção de que os privados de saúde têm todos ganho muito mais, nos últimos anos.
Comentário: SNS já não controla “bem” o que paga aos convencionados o que acontecerá se houvesse maior abertura? Já há muita fragmentação e falta de coordenação de cuidados, maior abertura não provocará ainda mais inapropriação e desperdício?

4ª- Competição ou cooperação em saúde?
A esta questão tenho por hábito responder: os dois. Porquê e Como?
Porque não havendo concorrência no SNS promover-se-á a regressão para o serviço simples e a conformidade burocrática (com a lei e regras), eliminar-se-á o risco e a motivação para inovar, para gerir melhor e responder com “melhoria contínua” a clientes (externos e internos). O risco de perder clientela/financiamento e do serviço definhar ou mesmo desaparecer, geram motivação para melhorar em todos os aspectos (clínicos, gestão, serviço prestado), vs “coutada de mercado” (área geográfica), “fazer como os outros e como sempre fizemos” (restantes serviços públicos funcionam mal, porque seria o nosso diferente?). Se os CP escolherem HH cf qualidade, a responsividade e o serviço prestado, e daí resultarem consequências financeiras, então os serviços (gestores, profissionais) têm motivação para melhorar (nota: situação INVERSA à das Unidades Locais de Saúde). Daqui resultará melhoria de comportamento e atitude dos profissionais perante o doente e perante a necessidade de melhor qualidade e de redução do desperdício.
Concorrência limitada (“gerida”) de modo a não provocar: obsessão por nºs e lucros; deixar a descoberto o que “não compensa” (áreas, especialidades; “doentes-problema”). Nos HH do SNS, entre eles ou com outros HH e serviços, apenas dentro do quadro legal/regulamentar e sem ferir ou prejudicar, entre outros: cumprimento do contrato, planeamento, RRH, apropriação, regras de encaminhamento e coordenação de cuidados.
Em áreas em que os ganhos da especialização sejam elevados, como alta tecnologia e valências altamente diferenciadas, em que há benefícios importantes de qualidade E de eficiência (está provado), a concorrência só será muito limitada e entre Centros. No restante e onde a dimensão não traz qualquer benefício visível (ex, cataratas), deve haver concorrência entre HH e Serviços, promovida quer pelos CP (médicos assistentes), que facilitarão a escolha, quer directamente pelos doentes (via SU em casos urgentes).
Os HH do SNS deveriam poder concorrer com os privados, o que exigiria algumas transformações e muito melhor resposta, quer através de serviços inovadores (walk-in clinic e Centros de Diagnóstico e Tratamento, por ex.) quer de serviços tradicionais bem geridos (ex. Quartos Particulares). Nas condições actuais esta concorrência é difícil, requerendo mais avaliação e exigência, seja do SNS ou doutros clientes (ex. subsistemas).

5ª- Inovação e avaliação (de gestores e resultados)?
Estes aspectos constituem 2 problemas conhecidos do modo público de produção público e melhoram com a implementação de medidas de gestão, nomeadamente mas não em exclusivo:
i) Mudanças de estatuto (para empresa e para CIT);
ii) Financiamento objectivo e através de contratos-programa ($ segue o doente);
iii) Separação de funções do SNS (ex. financiamento, gestão, avaliação). Algumas destas mudanças exigirão, para produzir resultados: efectividade na direcção (estratégia), liderança e controlo nas Unidades (recrutamento objectivo e exigente, facilitação e monitorização primeiro, avaliação de resultados e consequências, depois); um sistema de informação e análise “á altura” (o que agora não acontece, de modo nenhum); mudanças radicais na forma de liderar os profissionais e de gerir os processos; funções de apoio e avaliação (activas e eficazes).
O apoio, facilitação e difusão de boas práticas de gestão é uma função transversal a todo o SNS e, por isso mesmo, deve ser planeada, organizada e controlada – não exigirá grandes meios mas pode gerar bons resultados nos diferentes níveis, actividades e áreas de actuação (assim exista “bem”) (nota: recomenda-se numa primeira fase a focalização em actividades e projectos que garantam simultaneamente eficiência E qualidade e segurança).
A avaliação e o controlo (este = àquela mais actuação subsequente) deve existir, para as Unidades e para os gestores, pressupondo:
i) Uma adequada definição de objectivos, metas e padrões de referência;
ii) A definição prévia das consequências dos diferentes resultados;
iii) Um “bom” sistema de informação e análise (qualidade, tempo, formato adequado aos clientes) que alimente os diferentes níveis e interessados;
iv) Que a função de apoio esteja a funcionar;
v) Que exista efectiva possibilidade de mudança (flexibilidade, poder e responsabilidade nos diversos níveis).
Questão: nada disto existe “bem” no SNS, existirá depois para entidades privadas?
Semmisericórdia