Entrevista Miguel Gouveia
Gestão Hospitalar (GH) – Como é que vê as recentes medidas do Ministério da Saúde?
Miguel Gouveia (MG) – Há aqui um conjunto de medidas muito grande e um conjunto muito diferente de problemas que estão na origem destas medidas. Nós temos uma rede de hospitais que foi delineada nos anos 70 quando as acessibilidades e a distribuição da população eram completamente diferentes e que foi delineada, também, para uma altura em que a tecnologia na área da saúde implicava tempos de internamento hospitalares relativamente longos. Agora, temos um mapa do País completamente alterado com novas comunicações que mudam a geografia prática do acesso aos cuidados de saúde. Ao mesmo tempo, tivemos mudanças radicais na tecnologia dos cuidados de saúde que fazem com que as demoras médias sejam muito mais curtas. Além disso, com toda a ênfase no hospital de dia, nas cirurgias ambulatórias, temos uma utilização muito menor do internamento hospitalar.
Em todo o mundo estão a dar-se revoluções do parque hospitalar, fechar serviços, fechar hospitais. Sob este ponto de vista, não é mais do que adequar o ‘stock’ de capital que tínhamos em infraestruturas na área da saúde às necessidades com as novas tecnologias.
Por exemplo, nos Estados Unidos, o Estado de Nova Iorque está a fechar uma percentagem relativamente grande dos seus hospitais. O que se está a passar em Portugal é o que se está a passar noutras parte do mundo.
GH – Nesta área, pelo menos, considera infundadas as acusações de economicismo?
MG – Sou economista, portanto, uma acusação de economicismo não me faz chorar muito! Muitas vezes as pessoas atiram com acusações de economicismo quando querem que outros paguem as contas.
É natural que, da parte do Ministério da Saúde, numa altura em que, nos últimos anos, as despesas têm continuado a crescer em ritmos superiores aos do PIB haja alguma preocupação de fazer uma contenção de custos. Temos esta nova realidade económica e tecnológica relativamente à qual, se não fizessemos nada, teríamos um sistema de saúde cada vez mais obsoleto relativamente às necessidades da população. Por outro lado, há um argumento que os peritos utilizaram - e que o ministro Correia de Campos invocou várias vezes - que tem sido algo muito estudado na economia da saúde. A ideia é ter poucos locais onde o volume das intervenções muito técnicas e muito especializadas é grande. Escolher a concentração é claramente uma via muito positiva. Há enormes economias de escala, economias de aprendizagem, que levam a melhores resultados em termos de saúde, de segurança, em termos de efectividade das intervenções. Todas as intervenções cirúrgicas e todo o tipo de intervenções tecnologicamente sofisticadas têm uma grande componente de experiência, de aprendizagem,de ‘on the job training’. Pensar que se podem ter unidades pequenas a fazer pequenos volumes de intervenções é perfeitamente errado do ponto de vista da própria qualidade do processo.
GH – Mas é este o caminho para controlar as despesas ou existem outras áreas de intervenção?
MG – Tem a ver com a própria qualidade técnica dos serviços prestados. Está muito estudado o facto de intervenções mais diferenciadas, quase todo o tipo de cirurgias um bocadinho mais complexas, terem muito a ganhar com a concentração e com elevados volumes. E isto nem sequer tem a ver com economia mas, sim, com a qualidade técnica dos serviços.
Uma segunda parte, que é a da consolidação hospitalar, tem a ver com o facto de, com as novas tecnologias, serem precisas menos camas. Não faz sentido ter hospitais espalhados por todo o lado. Faz sentido ter um parque hospitalar mais sofisticado e mais pequeno. O que acontece é que muitos cuidados, que antes eram de internamento, agora levam apenas a tratamento em ambulatório. O que sobra e que continua a ficar no hospital é tecnologicamente mais pesado que no passado. Pode-se poupar custos em alguns serviços, mas esses custos vão surgir onde os mesmos doentes vão ser tratados de forma tecnologicamente mais sofisticada. Não é nada óbvio que se gerem, assim, tantas poupanças como isso.
GH – Então onde é que se pode cortar nas despesas da Saúde?
MG – Tivemos duas experiências muito interessantes na Europa – a experiência finlandesa nos anos 90 e, nos 80, já tinha acontecido a mesma coisa na Irlanda. São países que, por causa de crises de finanças públicas, uma situação à qual não somos estranhos, registaram-se mudanças relativamente radicais no seu sistema de saúde em que, em dois ou três anos, a percentagem do PIB dedicada à saúde decresceu de forma significativa – um por cento. O que, no montante global considerado, é enorme. E, quer no caso da Irlanda quer no caso da Finlândia, essa redução ocorreu e quando olhamos para a esperança de vida e para todos os indicadores normais de saúde na população nada foi alterado. Portanto, aparentemente, foi possível cortar as despesas de saúde em 1% do PIB sem que seja óbvio que isso tenha tido reflexos maus na saúde da população.
Isto é a prova que existe muita ineficiência no sistema que é possível retirar. Mas se nós retirarmos, por um passe de mágica, 1%, 2%, 3% de gordura ao sistema nacional de saúde e o tornamos muito eficiente, a longo prazo as despesas em saúde vão continuar a crescer imenso. E isso é razoável por uma razão muito simples: o que o sistema de saúde produz é tempo e qualidade de vida, que é uma coisa que as pessoas valorizam muito. Estarmos a gastar muito num sector que produz algo com muito valor não é necessariamente mau. Os custos são grandes mas os benefícios são ainda maiores.
GH – Falando de ineficiência, fala-se de desperdício e há áreas em que se pode cortar, como nos medicamentos. Mas a medida de impôr um tecto de crescimento de 4% não tem funcionado.
MG – A realidade que existe acerca de todo o tipo de medidas que são feitas de forma cega e global é sempre a história de apertar um balão cheio de ar. Apertamos e o balão fica mais pequeno mas, depois, o ar vai para outro lado.
Tipicamente o que acontece quando temos medidas destas, globais, é que a indústria, que tem muita criatividade, acaba sempre por encontrar outros lugares onde fazer crescer a despesa. São medidas que têm sempre impacto a curto prazo, mas a longo prazo há sempre uma compensação e, no final, a medida acaba por sempre muito menos eficaz.
Por outro lado, há aqui algumas coisas nas medidas que têm vindo a ser tomadas que me parecem males menores. Quando estive na comissão de avaliação dos hospitais SA fiquei com a nítida sensação que, apesar de em alguns hospitais as comissões de farmácia e terapêutica funcionarem relativamente bem e serem criteriosas a seleccionar os novos medicamentos que adoptam, noutros hospitais o critério para comprar novos medicamentos era praticamente inexistente. Lembro-me de um hospital onde o presidente do conselho de administração me mostrou uma pilha de pedidos onde, mesmo que ele só desse autorização para um terço, passávamos de três listas telefónicas para uma lista telefónica.
Além de tectos gerais, que podem não funcionar muito bem, acho que o que vai ter mais impacto a longo prazo é que a admissão de novos medicamentos nos hospitais passa a ser decidida centralmente e não fica sujeita à discrição de cada hospital. Não é o ideal mas provavelmente é um mal menor.
GH – Não era preferível ter começado a reforma pela questão do financiamento em vez da reestruturação dos serviços?
MG – Nós podíamos fazer tábua rasa e pensar como seria o sistema ideal. Na prática já temos um sistema muito complexo e isso significa que se quisermos fazer coisas que saiam de decretos- lei e sejam implantadas no terreno temos de fazer mudanças mais delimitadas, passo a passo. Visões grandiosas fazem óptimos discursos mas não funcionam na prática.
À medida que os anos passam, fico mais velho e mais cínico e sou cada vez mais adepto de não se ter as grandes visões. Acho preferível que se avance em pequenos passos quando há oportunidade para isso, seja qual for o sistema. Conseguir um sistema perfeito, isso nunca vai acontecer.
GH – Qual seria a solução de financiamento para o nosso sistema?
MG – Em primeiro lugar, a ideia de termos um financiamento da Saúde através do Orçamento de Estado é uma ideia que, apesar de alguns possíveis defeitos, continua a ser a ideal. Eu não gosto da ideia de um imposto consignado para a Saúde por uma razão muito simples. Porque, mais tarde ou mais cedo, a Saúde não vai ter as mesmas despesas que esse imposto, ou este tem receitas a mais e as pessoas vão começar a gastar rapidamente porque dizem que o dinheiro é deles, portanto a quantidade de desperdício aumenta muito. Ou, então, o imposto não dá receitas suficientes e continua a ser o Orçamento de Estado a pagar e, então, para quê um imposto consignado?
GH – Não defende o aumento de impostos para subsidiar a Saúde?
MG – Se nós, como sociedade – e esse parece ser o caso da maior parte dos países desenvolvidos – continuarmos a ter aumentos das despesas públicas de saúde e se não houver contenção orçamental noutras áreas, mais tarde ou mais cedo temos de aumentar os impostos. É uma pressão que existe a cada ano que passa.
A questão é se aumentamos os impostos mais que o rendimento nacional.
Mesmo que fizéssemos reformas – se cortássemos gorduras - o processo dinâmico de novas tecnologias para aumentar a quantidade e a qualidade da vida das pessoas continuaria e, portanto, as pessoas exigiriam isso no seu sistema de saúde e as despesas acabariam por aumentar a prazo.
GH – O ‘opting-out’ seria uma solução?
MG – Tenho uma tese que tem uma raiz histórica. Nós, antes do 25 de Abril, tínhamos um sistema com Caixas de Previdência, de sectores profissionais, embora de forma muito incipiente e com uma cobertura deficiente da população. Mas tínhamos, no fundo, vários pequenos sistemas de saúde, tínhamos ainda as Misericórdias, as Casas do Povo, tínhamos um sistema muito diversificado. Acho que, para a sociedade portuguesa, era o sistema que funcionava. Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, provavelmente, tínhamos experimentado o mesmo processo histórico que os países que têm sistemas bismarquianos do Norte da Europa– a Alemanha, Bélgica, Holanda, etc. Esses sistemas iam crescendo e, passado algum tempo, teríamos uma cobertura de 100% da população.
Obviamente que em 1974 tínhamos uma situação muito má e com todo o radicalismo da época revolucionária ninguém teve paciência – provavelmente isso é compreensível – para um processo de sedimentação e crescimento que demorasse muitos anos e criou-se, em 76, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e optou-se pelo modelo britânico. Esse não era, no entanto, o modelo que estava mais adaptado à sociedade portuguesa. Prefiro outro modelo em vez de um SNS gigantesco, centralista, que é o proprietário das infraestruturas, o patrão que contrata todos os profissionais de saúde, que é por ele que passa o financiamento, que é por ele que passa tudo. Acho que isso não funciona em Portugal. Países pequenos, muito homogéneos em população, até podem não se dar mal – como os países escandinavos, mas o sistema, em Portugal, precisa de estar muito mais descentralizado e muito mais perto das pessoas. Devia existir um conjunto de sistemas mais diversificados, que deviam continuar a ser financiados através de impostos. No fundo, cada pessoa tinha uma espécie de capitação que era utilizada para pagar os cuidados de saúde, fosse qual fosse o sistema onde escolhia estar. Nós poderíamos chegar a esse sistema a partir do SNS, tal como existe hoje, através do ‘opting-out’. As pessoas iam saindo, mas iam para outra coisa qualquer, no fundo para os subsistemas.
Na minha opinião, e tudo isto teria que ser feito através de um processo muito gradual, se conseguíssemos fazer com que as bolsas de subsistemas em regime de ‘opting-out’ crescessem no país, o sistema ia ficar mais complexo– não é bonito – mas acredito que, na prática, acabaria por responder muito melhor às necessidades da população portuguesa em termos de Saúde.
GH – Está em total desacordo com o Governoque quer acabar com os subsistemas existentes?
MG – Acho isso o caminho errado. Estou em total desacordo. O Governo, o Ministério da Saúde, pensam que podem ter melhorias que, se calhar, até podem ser viáveis a curto prazo, mas a longo prazo vai ser muito pior.
GH – O argumento é o de estabelecer a igualdade entre todos os utentes.
MG – A igualdade não é fazer com que toda a gente tenha de vestir o mesmo fato. A igualdade é que todas as pessoas possam escolher o fato que quiserem. Tínhamos, de facto, aquilo que os sociólogos designam por aristocracias operárias. Grupos, de certa maneira privilegiados, que conseguiam ter melhores sistemas que o resto da população. Acho que o caminho é fazer com que o resto da população, aos poucos, tenha acesso aos mesmos sistemas.
GH – Está-se a nivelar por baixo?
MG – Está a nivelar-se por baixo. E está a nivelar-se para um sistema muito centralizado que, pura e simplesmente, não se adequa à maneira como nós funcionamos – politicamente, economicamente e socialmente.
GH –Acha que o futuro poderá passar pelos seguros privados?
MG – No sistema de ‘opting-out’ e nos sistemas bismarquianos nunca há SNS e depois complementos. Há verdadeiras alternativas. Se não existirem subsistemas, instituições que possam ser a espinha dorsal para verdadeiros sistemas alternativos, os seguros de saúde só estão interessados em ser complementos, não resolveremos nenhum dos problemas centrais do Serviço Nacional de Saúde. Em alguns dos casos, os seguros complementares dão mais conforto para grupos com maiores rendimentos. Os seguros de saúde complementares, que são usados pela élite política, social e económica, aliviam a pressão para o sistema ficar todo na mesma e, em geral, mau.
GH –Temos uma saúde a duas velocidades.
MG – É o que nós temos há muito tempo. As pessoas com boas posses económicas têm um padrão de consumo dos cuidados de saúde em que utilizam a medicina privada e depois, na altura das intervenções caras, utilizam o sistema público. Ainda por cima com autoestradas directas de acesso através dos contactos com os profissionais de saúde que conhecem no sistema privado. É o mais América Latina que se pode ter.
GH – Acha que a empresarialização é a solução para controlar os gastos de saúde?
MG– O que encontrámos quando estivemos a avaliar os hospitais SA - confirmado por estudos posteriores do Tribunal de Contas – é que a empresarialização dos hospitais públicos teve alguns ganhos de eficiência. É um pequeno passo que não é mau. Pessoalmente, acho que era mais muito mais radical se em vez de se ter gasto tanto capital político na empresarialização se tivesse investido mais – em atenção política, em monitorização e expeditação do processo – nas parcerias público-privadas. Que neste momento é um processo demoradíssimo, caríssimo.
GH – Na construção e gestão?
MG – Temos de ter vários formatos para experimentar e ver o que resulta.
GH – Como vê as taxas moderadoras nos internamentos? É correcto chamar-lhes moderadoras?
MG – Até que ponto é possível utilizar instrumentos como esse para modificar comportamentos de consumo de cuidados de saúde das pessoas? Se a introdução das taxas não mudar esses comportamentos não servem para nada.
GH – Nos internamentos, a decisão é dos médicos.
MG – Se pensarmos que o médico tem os interesses do doente em mente é uma maneira de conseguir influenciar o decisor, que é o próprio médico. Continua a haver muitas situações nos hospitais em que as pessoas continuam internadas por conveniência de serviço – para fazer exames, porque há escalonamento de férias e é difícil passar os processos dos doentes. Se toda a gente souber que o doente irá pagar mais por isso ninguém ficará indiferente. Por outro lado, fico um bocadinho espantado pela polémica que isto causou, porque 55% das pessoas, ou mais, estão isentas. Acho isto perfeitamente escandaloso! As nossas taxas de pobreza oficiais, medidas pelo Eurostat, são de 20%! Num país em que a taxa de pobreza é de 20% ter 55% de pessoas isentas, significa que há 35% que estão a mais.
Cinco euros por dia é, provavelmente, o custo da alimentação para muitas pessoas, mesmo com meios relativamente pobres. Estamos a falar de um montante muito pequeno. Não sei é se vale a pena pagar todos os custos políticos por uma coisa tão pequena.
GH – No seu contacto com os hospitais onde é que detectou mais falhas na gestão, mais desperdício?
MG – Essa é uma área difícil de resolver. Os exemplos que me chocaram mais estão relacionados com o caso de instituições onde havia directores de serviço muito dinâmicos, pessoas com uma extraordinária criatividade e energia, e que basicamente se dedicavam a fazer crescer o seu serviço. Mesmo que não houvesse nenhuma necessidade social para aquela especialidade naquela área. Era óptimo se conseguíssemos arranjar a criatividade e a inteligência desses directores e as puséssemos ao serviço de objectivos mais sociais.
Como a gestão dos hospitais não era muito disciplinada e havia uma grande autonomia – talvez até demasiada - estes directores de serviço, faziam crescer o seu império. Não era nada óbvio, neste caso, que isto contribuísse para o bem-estar social. Claro que o serviço crescia, claro que o director se podia orgulhar de ter cada vez mais camas, mais enfermeiras, mais actividades, mas até era numa área onde as necessidades sociais estavam a decrescer. Todo aquele empenho, do ponto de vista social, era um desperdício.
GH – Acha que a solução passaria por retirar autonomia aos hospitais e ter uma gestão centralizada?
MG – Essa é uma faca de dois gumes. Se fizermos uma gestão mais centralizada podemos ter menos destes comportamentos de ‘empire bulding’, destas situações peculiares que sobrevivem nestas instituições autónomas, que não têm uma verificação externa suficiente para as eliminar.
Por outro lado, a partir do momento que tenhamos um sistema muito centralizado, os administradores locais não têm iniciativa, portanto, não podem criar, não podem inovar, não podem procurar melhores soluções. Não se podem lembrar de novas formas de poupar ou, se se lembram, é difícil de as aplicar.
A virtude está sempre no meio e haverá sempre erros dos dois lados. É impossível ter uma solução perfeita. O ideal seria ter uma administração relativamente descentralizada mas onde o sistema de prestação de contas e o sistema de medição de resultados funcionasse muito bem. Estamos a fazer passos no caminho certo mas estamos longe do sistema ideal.
No fundo, o sistema de saúde pode parecer--se muito com uma multinacional que tem muitas filiais e as multinacionais criam formas de dar autonomia aos dirigentes locais em cada país mas, por outro lado, controlam sempre o que se passa. Algumas das técnicas que as multinacionais desenvolveram ao longo dos anos para gerir sistemas dispersos e complexos em áreas muito diferentes poderiam ser importadas pelos gestores do Serviço Nacional de Saúde. É uma ideia que talvez tenha alguma hipótese de funcionar. Por exemplo, uma das coisas que as multinacionais fazem para os quadros de topo é rodá-los de país para país. Ninguém fica muito tempo no mesmo. Não sei até que ponto isto resultaria nos hospitais.
Entrevista de Marina Caldas, Revista Gestão Hospitalar, Dez 2006
Miguel Gouveia (MG) – Há aqui um conjunto de medidas muito grande e um conjunto muito diferente de problemas que estão na origem destas medidas. Nós temos uma rede de hospitais que foi delineada nos anos 70 quando as acessibilidades e a distribuição da população eram completamente diferentes e que foi delineada, também, para uma altura em que a tecnologia na área da saúde implicava tempos de internamento hospitalares relativamente longos. Agora, temos um mapa do País completamente alterado com novas comunicações que mudam a geografia prática do acesso aos cuidados de saúde. Ao mesmo tempo, tivemos mudanças radicais na tecnologia dos cuidados de saúde que fazem com que as demoras médias sejam muito mais curtas. Além disso, com toda a ênfase no hospital de dia, nas cirurgias ambulatórias, temos uma utilização muito menor do internamento hospitalar.
Em todo o mundo estão a dar-se revoluções do parque hospitalar, fechar serviços, fechar hospitais. Sob este ponto de vista, não é mais do que adequar o ‘stock’ de capital que tínhamos em infraestruturas na área da saúde às necessidades com as novas tecnologias.
Por exemplo, nos Estados Unidos, o Estado de Nova Iorque está a fechar uma percentagem relativamente grande dos seus hospitais. O que se está a passar em Portugal é o que se está a passar noutras parte do mundo.
GH – Nesta área, pelo menos, considera infundadas as acusações de economicismo?
MG – Sou economista, portanto, uma acusação de economicismo não me faz chorar muito! Muitas vezes as pessoas atiram com acusações de economicismo quando querem que outros paguem as contas.
É natural que, da parte do Ministério da Saúde, numa altura em que, nos últimos anos, as despesas têm continuado a crescer em ritmos superiores aos do PIB haja alguma preocupação de fazer uma contenção de custos. Temos esta nova realidade económica e tecnológica relativamente à qual, se não fizessemos nada, teríamos um sistema de saúde cada vez mais obsoleto relativamente às necessidades da população. Por outro lado, há um argumento que os peritos utilizaram - e que o ministro Correia de Campos invocou várias vezes - que tem sido algo muito estudado na economia da saúde. A ideia é ter poucos locais onde o volume das intervenções muito técnicas e muito especializadas é grande. Escolher a concentração é claramente uma via muito positiva. Há enormes economias de escala, economias de aprendizagem, que levam a melhores resultados em termos de saúde, de segurança, em termos de efectividade das intervenções. Todas as intervenções cirúrgicas e todo o tipo de intervenções tecnologicamente sofisticadas têm uma grande componente de experiência, de aprendizagem,de ‘on the job training’. Pensar que se podem ter unidades pequenas a fazer pequenos volumes de intervenções é perfeitamente errado do ponto de vista da própria qualidade do processo.
GH – Mas é este o caminho para controlar as despesas ou existem outras áreas de intervenção?
MG – Tem a ver com a própria qualidade técnica dos serviços prestados. Está muito estudado o facto de intervenções mais diferenciadas, quase todo o tipo de cirurgias um bocadinho mais complexas, terem muito a ganhar com a concentração e com elevados volumes. E isto nem sequer tem a ver com economia mas, sim, com a qualidade técnica dos serviços.
Uma segunda parte, que é a da consolidação hospitalar, tem a ver com o facto de, com as novas tecnologias, serem precisas menos camas. Não faz sentido ter hospitais espalhados por todo o lado. Faz sentido ter um parque hospitalar mais sofisticado e mais pequeno. O que acontece é que muitos cuidados, que antes eram de internamento, agora levam apenas a tratamento em ambulatório. O que sobra e que continua a ficar no hospital é tecnologicamente mais pesado que no passado. Pode-se poupar custos em alguns serviços, mas esses custos vão surgir onde os mesmos doentes vão ser tratados de forma tecnologicamente mais sofisticada. Não é nada óbvio que se gerem, assim, tantas poupanças como isso.
GH – Então onde é que se pode cortar nas despesas da Saúde?
MG – Tivemos duas experiências muito interessantes na Europa – a experiência finlandesa nos anos 90 e, nos 80, já tinha acontecido a mesma coisa na Irlanda. São países que, por causa de crises de finanças públicas, uma situação à qual não somos estranhos, registaram-se mudanças relativamente radicais no seu sistema de saúde em que, em dois ou três anos, a percentagem do PIB dedicada à saúde decresceu de forma significativa – um por cento. O que, no montante global considerado, é enorme. E, quer no caso da Irlanda quer no caso da Finlândia, essa redução ocorreu e quando olhamos para a esperança de vida e para todos os indicadores normais de saúde na população nada foi alterado. Portanto, aparentemente, foi possível cortar as despesas de saúde em 1% do PIB sem que seja óbvio que isso tenha tido reflexos maus na saúde da população.
Isto é a prova que existe muita ineficiência no sistema que é possível retirar. Mas se nós retirarmos, por um passe de mágica, 1%, 2%, 3% de gordura ao sistema nacional de saúde e o tornamos muito eficiente, a longo prazo as despesas em saúde vão continuar a crescer imenso. E isso é razoável por uma razão muito simples: o que o sistema de saúde produz é tempo e qualidade de vida, que é uma coisa que as pessoas valorizam muito. Estarmos a gastar muito num sector que produz algo com muito valor não é necessariamente mau. Os custos são grandes mas os benefícios são ainda maiores.
GH – Falando de ineficiência, fala-se de desperdício e há áreas em que se pode cortar, como nos medicamentos. Mas a medida de impôr um tecto de crescimento de 4% não tem funcionado.
MG – A realidade que existe acerca de todo o tipo de medidas que são feitas de forma cega e global é sempre a história de apertar um balão cheio de ar. Apertamos e o balão fica mais pequeno mas, depois, o ar vai para outro lado.
Tipicamente o que acontece quando temos medidas destas, globais, é que a indústria, que tem muita criatividade, acaba sempre por encontrar outros lugares onde fazer crescer a despesa. São medidas que têm sempre impacto a curto prazo, mas a longo prazo há sempre uma compensação e, no final, a medida acaba por sempre muito menos eficaz.
Por outro lado, há aqui algumas coisas nas medidas que têm vindo a ser tomadas que me parecem males menores. Quando estive na comissão de avaliação dos hospitais SA fiquei com a nítida sensação que, apesar de em alguns hospitais as comissões de farmácia e terapêutica funcionarem relativamente bem e serem criteriosas a seleccionar os novos medicamentos que adoptam, noutros hospitais o critério para comprar novos medicamentos era praticamente inexistente. Lembro-me de um hospital onde o presidente do conselho de administração me mostrou uma pilha de pedidos onde, mesmo que ele só desse autorização para um terço, passávamos de três listas telefónicas para uma lista telefónica.
Além de tectos gerais, que podem não funcionar muito bem, acho que o que vai ter mais impacto a longo prazo é que a admissão de novos medicamentos nos hospitais passa a ser decidida centralmente e não fica sujeita à discrição de cada hospital. Não é o ideal mas provavelmente é um mal menor.
GH – Não era preferível ter começado a reforma pela questão do financiamento em vez da reestruturação dos serviços?
MG – Nós podíamos fazer tábua rasa e pensar como seria o sistema ideal. Na prática já temos um sistema muito complexo e isso significa que se quisermos fazer coisas que saiam de decretos- lei e sejam implantadas no terreno temos de fazer mudanças mais delimitadas, passo a passo. Visões grandiosas fazem óptimos discursos mas não funcionam na prática.
À medida que os anos passam, fico mais velho e mais cínico e sou cada vez mais adepto de não se ter as grandes visões. Acho preferível que se avance em pequenos passos quando há oportunidade para isso, seja qual for o sistema. Conseguir um sistema perfeito, isso nunca vai acontecer.
GH – Qual seria a solução de financiamento para o nosso sistema?
MG – Em primeiro lugar, a ideia de termos um financiamento da Saúde através do Orçamento de Estado é uma ideia que, apesar de alguns possíveis defeitos, continua a ser a ideal. Eu não gosto da ideia de um imposto consignado para a Saúde por uma razão muito simples. Porque, mais tarde ou mais cedo, a Saúde não vai ter as mesmas despesas que esse imposto, ou este tem receitas a mais e as pessoas vão começar a gastar rapidamente porque dizem que o dinheiro é deles, portanto a quantidade de desperdício aumenta muito. Ou, então, o imposto não dá receitas suficientes e continua a ser o Orçamento de Estado a pagar e, então, para quê um imposto consignado?
GH – Não defende o aumento de impostos para subsidiar a Saúde?
MG – Se nós, como sociedade – e esse parece ser o caso da maior parte dos países desenvolvidos – continuarmos a ter aumentos das despesas públicas de saúde e se não houver contenção orçamental noutras áreas, mais tarde ou mais cedo temos de aumentar os impostos. É uma pressão que existe a cada ano que passa.
A questão é se aumentamos os impostos mais que o rendimento nacional.
Mesmo que fizéssemos reformas – se cortássemos gorduras - o processo dinâmico de novas tecnologias para aumentar a quantidade e a qualidade da vida das pessoas continuaria e, portanto, as pessoas exigiriam isso no seu sistema de saúde e as despesas acabariam por aumentar a prazo.
GH – O ‘opting-out’ seria uma solução?
MG – Tenho uma tese que tem uma raiz histórica. Nós, antes do 25 de Abril, tínhamos um sistema com Caixas de Previdência, de sectores profissionais, embora de forma muito incipiente e com uma cobertura deficiente da população. Mas tínhamos, no fundo, vários pequenos sistemas de saúde, tínhamos ainda as Misericórdias, as Casas do Povo, tínhamos um sistema muito diversificado. Acho que, para a sociedade portuguesa, era o sistema que funcionava. Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, provavelmente, tínhamos experimentado o mesmo processo histórico que os países que têm sistemas bismarquianos do Norte da Europa– a Alemanha, Bélgica, Holanda, etc. Esses sistemas iam crescendo e, passado algum tempo, teríamos uma cobertura de 100% da população.
Obviamente que em 1974 tínhamos uma situação muito má e com todo o radicalismo da época revolucionária ninguém teve paciência – provavelmente isso é compreensível – para um processo de sedimentação e crescimento que demorasse muitos anos e criou-se, em 76, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e optou-se pelo modelo britânico. Esse não era, no entanto, o modelo que estava mais adaptado à sociedade portuguesa. Prefiro outro modelo em vez de um SNS gigantesco, centralista, que é o proprietário das infraestruturas, o patrão que contrata todos os profissionais de saúde, que é por ele que passa o financiamento, que é por ele que passa tudo. Acho que isso não funciona em Portugal. Países pequenos, muito homogéneos em população, até podem não se dar mal – como os países escandinavos, mas o sistema, em Portugal, precisa de estar muito mais descentralizado e muito mais perto das pessoas. Devia existir um conjunto de sistemas mais diversificados, que deviam continuar a ser financiados através de impostos. No fundo, cada pessoa tinha uma espécie de capitação que era utilizada para pagar os cuidados de saúde, fosse qual fosse o sistema onde escolhia estar. Nós poderíamos chegar a esse sistema a partir do SNS, tal como existe hoje, através do ‘opting-out’. As pessoas iam saindo, mas iam para outra coisa qualquer, no fundo para os subsistemas.
Na minha opinião, e tudo isto teria que ser feito através de um processo muito gradual, se conseguíssemos fazer com que as bolsas de subsistemas em regime de ‘opting-out’ crescessem no país, o sistema ia ficar mais complexo– não é bonito – mas acredito que, na prática, acabaria por responder muito melhor às necessidades da população portuguesa em termos de Saúde.
GH – Está em total desacordo com o Governoque quer acabar com os subsistemas existentes?
MG – Acho isso o caminho errado. Estou em total desacordo. O Governo, o Ministério da Saúde, pensam que podem ter melhorias que, se calhar, até podem ser viáveis a curto prazo, mas a longo prazo vai ser muito pior.
GH – O argumento é o de estabelecer a igualdade entre todos os utentes.
MG – A igualdade não é fazer com que toda a gente tenha de vestir o mesmo fato. A igualdade é que todas as pessoas possam escolher o fato que quiserem. Tínhamos, de facto, aquilo que os sociólogos designam por aristocracias operárias. Grupos, de certa maneira privilegiados, que conseguiam ter melhores sistemas que o resto da população. Acho que o caminho é fazer com que o resto da população, aos poucos, tenha acesso aos mesmos sistemas.
GH – Está-se a nivelar por baixo?
MG – Está a nivelar-se por baixo. E está a nivelar-se para um sistema muito centralizado que, pura e simplesmente, não se adequa à maneira como nós funcionamos – politicamente, economicamente e socialmente.
GH –Acha que o futuro poderá passar pelos seguros privados?
MG – No sistema de ‘opting-out’ e nos sistemas bismarquianos nunca há SNS e depois complementos. Há verdadeiras alternativas. Se não existirem subsistemas, instituições que possam ser a espinha dorsal para verdadeiros sistemas alternativos, os seguros de saúde só estão interessados em ser complementos, não resolveremos nenhum dos problemas centrais do Serviço Nacional de Saúde. Em alguns dos casos, os seguros complementares dão mais conforto para grupos com maiores rendimentos. Os seguros de saúde complementares, que são usados pela élite política, social e económica, aliviam a pressão para o sistema ficar todo na mesma e, em geral, mau.
GH –Temos uma saúde a duas velocidades.
MG – É o que nós temos há muito tempo. As pessoas com boas posses económicas têm um padrão de consumo dos cuidados de saúde em que utilizam a medicina privada e depois, na altura das intervenções caras, utilizam o sistema público. Ainda por cima com autoestradas directas de acesso através dos contactos com os profissionais de saúde que conhecem no sistema privado. É o mais América Latina que se pode ter.
GH – Acha que a empresarialização é a solução para controlar os gastos de saúde?
MG– O que encontrámos quando estivemos a avaliar os hospitais SA - confirmado por estudos posteriores do Tribunal de Contas – é que a empresarialização dos hospitais públicos teve alguns ganhos de eficiência. É um pequeno passo que não é mau. Pessoalmente, acho que era mais muito mais radical se em vez de se ter gasto tanto capital político na empresarialização se tivesse investido mais – em atenção política, em monitorização e expeditação do processo – nas parcerias público-privadas. Que neste momento é um processo demoradíssimo, caríssimo.
GH – Na construção e gestão?
MG – Temos de ter vários formatos para experimentar e ver o que resulta.
GH – Como vê as taxas moderadoras nos internamentos? É correcto chamar-lhes moderadoras?
MG – Até que ponto é possível utilizar instrumentos como esse para modificar comportamentos de consumo de cuidados de saúde das pessoas? Se a introdução das taxas não mudar esses comportamentos não servem para nada.
GH – Nos internamentos, a decisão é dos médicos.
MG – Se pensarmos que o médico tem os interesses do doente em mente é uma maneira de conseguir influenciar o decisor, que é o próprio médico. Continua a haver muitas situações nos hospitais em que as pessoas continuam internadas por conveniência de serviço – para fazer exames, porque há escalonamento de férias e é difícil passar os processos dos doentes. Se toda a gente souber que o doente irá pagar mais por isso ninguém ficará indiferente. Por outro lado, fico um bocadinho espantado pela polémica que isto causou, porque 55% das pessoas, ou mais, estão isentas. Acho isto perfeitamente escandaloso! As nossas taxas de pobreza oficiais, medidas pelo Eurostat, são de 20%! Num país em que a taxa de pobreza é de 20% ter 55% de pessoas isentas, significa que há 35% que estão a mais.
Cinco euros por dia é, provavelmente, o custo da alimentação para muitas pessoas, mesmo com meios relativamente pobres. Estamos a falar de um montante muito pequeno. Não sei é se vale a pena pagar todos os custos políticos por uma coisa tão pequena.
GH – No seu contacto com os hospitais onde é que detectou mais falhas na gestão, mais desperdício?
MG – Essa é uma área difícil de resolver. Os exemplos que me chocaram mais estão relacionados com o caso de instituições onde havia directores de serviço muito dinâmicos, pessoas com uma extraordinária criatividade e energia, e que basicamente se dedicavam a fazer crescer o seu serviço. Mesmo que não houvesse nenhuma necessidade social para aquela especialidade naquela área. Era óptimo se conseguíssemos arranjar a criatividade e a inteligência desses directores e as puséssemos ao serviço de objectivos mais sociais.
Como a gestão dos hospitais não era muito disciplinada e havia uma grande autonomia – talvez até demasiada - estes directores de serviço, faziam crescer o seu império. Não era nada óbvio, neste caso, que isto contribuísse para o bem-estar social. Claro que o serviço crescia, claro que o director se podia orgulhar de ter cada vez mais camas, mais enfermeiras, mais actividades, mas até era numa área onde as necessidades sociais estavam a decrescer. Todo aquele empenho, do ponto de vista social, era um desperdício.
GH – Acha que a solução passaria por retirar autonomia aos hospitais e ter uma gestão centralizada?
MG – Essa é uma faca de dois gumes. Se fizermos uma gestão mais centralizada podemos ter menos destes comportamentos de ‘empire bulding’, destas situações peculiares que sobrevivem nestas instituições autónomas, que não têm uma verificação externa suficiente para as eliminar.
Por outro lado, a partir do momento que tenhamos um sistema muito centralizado, os administradores locais não têm iniciativa, portanto, não podem criar, não podem inovar, não podem procurar melhores soluções. Não se podem lembrar de novas formas de poupar ou, se se lembram, é difícil de as aplicar.
A virtude está sempre no meio e haverá sempre erros dos dois lados. É impossível ter uma solução perfeita. O ideal seria ter uma administração relativamente descentralizada mas onde o sistema de prestação de contas e o sistema de medição de resultados funcionasse muito bem. Estamos a fazer passos no caminho certo mas estamos longe do sistema ideal.
No fundo, o sistema de saúde pode parecer--se muito com uma multinacional que tem muitas filiais e as multinacionais criam formas de dar autonomia aos dirigentes locais em cada país mas, por outro lado, controlam sempre o que se passa. Algumas das técnicas que as multinacionais desenvolveram ao longo dos anos para gerir sistemas dispersos e complexos em áreas muito diferentes poderiam ser importadas pelos gestores do Serviço Nacional de Saúde. É uma ideia que talvez tenha alguma hipótese de funcionar. Por exemplo, uma das coisas que as multinacionais fazem para os quadros de topo é rodá-los de país para país. Ninguém fica muito tempo no mesmo. Não sei até que ponto isto resultaria nos hospitais.
Entrevista de Marina Caldas, Revista Gestão Hospitalar, Dez 2006
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