Manuel Sobrinho Simões
"A sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde exige que racionemos"
O médico apresenta soluções para manter o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em tempo de cortes "brutais" e dá exemplos de racionamento, como limitar a dois o número de ecografias durante a gravidez. O professor universitário fala em fechar universidades e cursos para melhorar o ensino. O investigador pede um reforço e classifica de "indecente" a possibilidade de o Governo aproveitar a crise para destruir o tecido institucional público. E o avô está assustado com o futuro mais difícil que se adivinha. Todas as vozes numa só pessoa: Manuel Sobrinho Simões. Aos 64 anos, o rosto do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) está longe de pensar na reforma, ao contrário de muitos colegas de profissão.
Recentemente, num programa de televisão, falou na necessidade de racionar no Serviço Nacional de Saúde. O que queria dizer com isso?
Primeiro ponto: é difícil arranjar alguém que seja mais a favor do SNS do que eu. Farei tudo que estiver ao meu alcance para que o SNS se mantenha vivo e saudável. Segundo ponto: O caso da saúde é uma história de sucesso extraordinária. Nos países em que foi mudado o sistema no sentido da iniciativa privada a saúde piorou e ficou mais cara. Os EUA têm um sistema de saúde pior do que o nosso em todos os indicadores e muito mais caro. Portanto, não acho que em nenhuma circunstância seja defensável pensar em acabar com SNS ou sequer fragilizá-lo. Agora, o SNS não se aguenta como está e aí aparecem palavras e os verbos é que não são fáceis. O verbo racionar é infelicíssimo porque está muito ligado afectivamente à guerra.
Queria dizer racionar ou racionalizar?
As duas coisas. Infelizmente vai ser preciso racionar. Mas antes disso há medidas a tomar que são relativamente menos dolorosas, como planificar e separar o essencial do acessório. Odeio a palavra racionar, tem uma componente afectiva que não pode ser pior, mas a sustentabilidade do SNS exige que nós planifiquemos, separemos o essencial do acessório e racionemos. Três coisas que não podemos evitar.
Isso é tudo muito abstracto....
Dou-lhe um exemplo. Temos que decidir se vamos investir mais no diagnóstico pré-natal e na fertilização in vitroou mais no tratamento das pessoas idosas. Os recursos são finitos, não há dinheiro para tudo. Bater-me-ei até ao fim para ter um SNS sustentável, para isso precisamos de poupar, depois discutimos o racionamento, que tem de ser sempre encarado como a última solução.
O ministro da Saúde está pressionado para reduzir a despesa. Acha que o que se está a fazer são cortes cegos?
Não sei. Que são cortes brutais são, que seguramente não são inteligentes, não são. Também não faço a mínima ideia se é possível atingir este nível de poupança com medidas inteligentes. Temos uma literacia mínima, portanto as nossas discussões são sempre inquinadas por meia dúzia de bandeiras. Outro exemplo: se diminuir a quantidade de doentes que chegam ao Hospital de S. João [no Porto] e não precisavam de chegar, a qualidade melhora. Nesta altura, e isso é estúpido, os hospitais são pagos por acto médico, portanto o S. João não se importa de ter uma quantidade enorme de doentes nas consultas que, na sua maioria, deviam ter ficado nos centros de saúde ou nos hospitais periféricos. Quem perde são os doentes mais graves.
Mas indo ao concreto. Entre a procriação medicamente assistida e cuidar dos idosos?
Aí se não houver dinheiro já põe um problema seríssimo. Não sei.
Portugal é um país muito envelhecido...
Não, não. Nós não temos é crianças. O que somos é um país de doentes ou pelo menos de pessoas que se julgam doentes. Nós queixamo-nos mais porque somos periféricos, pequenos, pobres e assustados. Há uma negociação nossa com a fragilidade que é fruto da nossa experiência comercial. Na nossa cultura é quase malcriado dizer estou bem nunca estive tão bem na vida. A vitimização cria empatia, como temos uma vaga inspiração religiosa, não gostamos de desafiar Deus. Isso dificulta muito, de novo, a planificação de saúde, porque a valorização das queixas é muito difícil de fazer de uma forma objectiva. Vamos ter muita dificuldade em planificar. Mas planifica melhor a medicina de proximidade do que a de hospital central, melhor os enfermeiros que vão a casa do que o médico que vê o doente de tempos a tempos.
No tal programa de televisão, foi dado o exemplo da hemodiálise como algo que poderia ser pago pelos doentes com mais de 70 anos. Foi muito polémico. Concorda?
É um disparate. Não existe em nenhuma parte do mundo. Vamos ter que decidir outras coisas, como por exemplo quando interrompemos tratamentos. A nossa civilização acha que a morte é opcional e não é. Se calhar é mesmo melhor morrer em paz, com a família, não podemos continuar a prolongar tratamentos indefinidamente, fica caríssimo.
Para isso é preciso mais cuidados paliativos...
Os cuidados paliativos podem ser resolvidos com associações, com amizade, com ternura, não são caros do ponto de vista médico. E aí continuo a pensar que temos que recuperar rapidamente o nosso capital nas Misericórdias a sério.
Concorda com a devolução dos hospitais às Misericórdias?
Sim. Mas as Misericórdias não têm capacidade para gerir grandes hospitais. Falo de hospitais como o de Arouca, Vila Nova de Cerveira, Valença, Caminha, hospitais de cuidados continuados, de recuperação e reabilitação.
Dê-nos mais exemplos de racionamento
O racionamento que para mim é óbvio é o do número de ecografias durante a gravidez. Na Inglaterra fazem-se duas. Um bom médico faz só duas ecografias e é suficiente.
Mais?
Sou contra a taxa de médicos por habitante que em Portugal é maior do que na maior parte dos países europeus. Temos um problema de distribuição. Não acho que a solução seja fazer faculdades de medicina privada, já temos faculdades em excesso.
Em Portugal há hospitais a mais?
Há, isso é indiscutível. Aí é que é preciso também racionar. Nos medicamentos temos igualemente que fazer contas. Se não houver dinheiro para todos, temos que decidir os que vamos usar. Outra questão é, por exemplo, o problema das bandas gástricas para a obesidade. A pessoa que não quer fazer regime deve ter o mesmo direito a ter uma banda gástrica do que a pessoa que quer fazer regime? Se os recursos são finitos, tem que se decidir quanto do dinheiro público vai ser gasto em bandas gástricas e qual é a contrapartida que se pede aos cidadãos para terem acesso a isso. Não vale a pena as pessoas porem-se na posição de que tem que haver dinheiro para isso, porque não vai haver dinheiro para tudo.
As pessoas respondem que para a saúde tem de haver sempre dinheiro...
Mas não vai haver dinheiro para a saúde. E não é só cá em Portugal. Já não está a haver em parte nenhuma civilizada do mundo. A sociedade tem de ser capaz de aumentar a sustentabilidade do SNS à custa de mecanismos de prevenção e planificação.
Concorda com o co-pagamento? Acha que as pessoas que ganham mais deviam pagar mais? Ou o financiamento devia fazer-se só pela via dos impostos?
Não sei comparar as duas coisas. Até porque há muita fuga aos impostos em Portugal e portanto isso é o que me assusta mais. Seria a favor do co-pagamento para assegurar a sustentabilidade do SNS. Se a pessoa pode pagar... Uma coisa que quero que fique bem claro: sou totalmente a favor da existência de medicina privada. Mas acho que a medicina pública e o SNS são muito mais importantes para o país. Deve haver regras muito claras de articulação da medicina privada com a pública, não se pode admitir que a medicina privada viva de desnatar a medicina pública.
É isso que tem acontecido em Portugal?
É. Vamos a outra questão de racionamento, desta vez da privada. Acho muito bem que as pessoas que queiram escolham hospitais privados para ter as crianças. Agora, tinha de existir um acordo com os hospitais privados onde há partos e, quando as coisas dão para torto e elas vão parar às maternidades e hospitais centrais, parte do dinheiro que as pessoas tinham pago revertia para o público. Às tantas, temos tudo o que é rendível nos privados e tudo o que dá despesa é pago por todos nós.
Quando me fala destas escolhas e decisões difíceis entre o essencial e o acessório... Lembra-se do que aconteceu com as maternidades [foram fechadas várias, por entre os protestos da população]?
Isso das maternidades foi muito infeliz porque o ministro Correia de Campos tinha toda a razão. Foi uma medida inteligentíssima.
Mas acha que este "povo pequeno, assustado, pobre" (como lhe chamou) é capaz de aceitar estas decisões?
Não sei. As maternidades ou o tratamento de cancro são bons exemplos. Mas atenção: percebo que, para a pessoa que está em tratamento com quimioterapia ou radioterapia, a deslocação seja um sofrimento muito grande. Era preciso arranjar formas de deslocação que fossem o menos incómodas possível.
Está a falar da rede de referenciação do cancro. Mas ainda não avançou...
Não sei porque não avança. Mas tenho a certeza é que a ideia que as pessoas têm de que é muito bom ter um hospital ao pé de casa é uma estupidez. É uma estupidez daquelas!
Mas temos de levar os doentes aos sítios onde podem ser tratados.
Temos de racionalizar os transportes de forma a optimizar o transporte de doentes que não tenham possibilidade de se deslocar de outra maneira. Por exemplo, se há quatro doentes que vêm num transporte só se deve fazer um pagamento. Não um por cada doente. Se a pessoa tem possibilidade de andar, não é só porque está doente que deve vir de ambulância. Nesse caso paga, é mais barato, e vem de comboio ou de autocarro.
Mas aí a pessoa está a ser penalizada por estar longe do centro de tratamento.
Como está longe de uma escola ou de um tribunal. Esse é um problema menor num país como o nosso. É um problema social gravíssimo do ponto de vista da desertificação do interior... mas não é o problema das pessoas. O problema das pessoas é solúvel, até porque não são muitas. De resto, eu também sou a favor que nas regiões fronteiriças se usem os tratados europeus e, se houver bons hospitais em Espanha, devemos ir a Espanha. Há um custo de localização, de pouca sorte, que não se resolve aumentando uma oferta sem qualidade. E isso também é racionar. Não pode haver tantos hospitais a tratar cancro como há. Porque quem trata poucos cancros por ano, trata mal. Se me diz... ah, mas o povo não quer, paciência.
Ou manda o ministro embora como fez no caso das maternidades com o Correia de Campos.
Atenção que o Correia de Campos foi um excelente ministro da Saúde.
E o que diz do actual?
Não digo. Não conheço. Se querem que diga algo positivo, foi a recondução dos directores do S. João e IPO que tanto quanto sei não são próximos do partido do Governo. São excelentes gestores. E aqui dou outra ideia. Este tipo de eficiência de gestão pode ser usado como exemplo para hospitais semelhantes (cuidado, não se pode comparar coisas que são diferentes). O São João pode ser comparado com o Hospital da Universidade de Coimbra e com o Santa Maria (em Lisboa). Seria sempre a favor de usar exemplos concretos, em vez dos tais cortes cegos. Que também é muito raro na nossa cultura, que é muito retórica. As pessoas gostam dos tipos que falam, falam... Quando alguém faz muito coloca os pares em cheque e fere um maior número de interesses instalados.
São mudanças difíceis...
A grande resistência da sociedade portuguesa à transformação está na iliteracia. Continuamos a não saber o que nos interessa. Além disso, temos uma sociedade com corporações muito instaladas. Aí, as resistências são múltiplas. Nós podemos poupar imenso sem racionar. O que é uma estupidez é as pessoas começarem a chatear toda a gente se o velhinho de 70 anos vai ou não fazer hemodiálise quando podemos é diminuir imenso as pessoas que precisam de hemodiálise.
Acha que vamos conseguir sair da crise?
Acho que sim, apesar de tudo temos condições razoáveis. Temos um desenvolvimento muito grande da ciência e educação. Tivemos. Somos muito sensíveis ao estrangeirado, é uma das características do Portugal. Mas, se repararmos, estamos a reagir de uma forma muito mais organizada do que, por exemplo, os gregos, os espanhóis e italianos.
Temos mais espírito de sacrifício ou somos mais conformados?
Temos mais espírito de sacrifico. E, está bem, estamos mais calados mas isso é bom em termos de concertação social. Um dos grandes problemas para nós seria se, de repente, caíssemos num desespero tal que levasse, por exemplo, a um aumento da violência urbana.
Acha que isso não pode ainda vir a acontecer? Ainda estamos no início...
É verdade. E estou muito assustado. Mas a minha fuga é sempre para a frente, é fazendo. Mesmo aqui no Ipatimup, onde estamos a passar uma fase difícil. O Governo cortou de uma forma estúpida, a universidade cortou e as pessoas não nos pagam.
Que corte tiveram no orçamento?
Tínhamos um contrato com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de 1,6 milhões de euros por ano e reduziram-nos para o valor de 2005, 1,2 milhões. Este ano vamos aguentar com o dinheiro que tínhamos no banco. Mais dois anos assim e ou despedimos pessoas ou desligamos o aquecimento... ainda temos também o problema das prestações de serviços aos hospitais que também não estão a pagar.
A investigação está ser afectada pela crise?
Está muito bem porque ainda está com o lanço que teve com o ministro Mariano Gago. Está a ser afectada, mas apesar de tudo este ministro [Nuno Crato] é inteligente e a secretária de Estado [Leonor Parreira] é muito sensível à investigação. Esta decisão de passar para o orçamento de 2005 é do ano anterior, estes responsáveis mantiveram mas não diminuíram ainda mais. O futuro é assustador. Mas não estou tão preocupado com a ciência porque a ciência é internacional.
Somos premiados e respeitados, mas somos apoiados?
A nossa ciência está muito dependente do privado. Mas eu prefiro que exista a Champalimaud e a Gulbenkian do que não os ter. Não resolvo o meu problema com inveja. Ao menos que venham eles. Por outro lado, acho uma estupidez esta ideia de que é melhor emigrar.
Há fuga de cérebros?
Há muita gente que está a sair. O país ganha em criar condições para que muitos dos bons fiquem. Não é preciso que fiquem todos. Voltamos à saúde e ao ensino. No ensino também temos de racionar. Não podemos ter o número de universidades e politécnicos que temos. Temos dezenas de cursos de arquitectura, de psicologia... e os miúdos vão quase todos para o desemprego. Num país que está fragilizado, por razões circunstanciais e estruturais, o truque não é apostar em pessoas e fait-divers, é apostar em instituições. Mas os políticos não gostam de escolher instituições. Perdem votos.
Nem gostam de fechar universidades ou hospitais...
Exacto. O grande obstáculo, além das corporações, são os próprios políticos. Os políticos vivem das corporações por interposta pessoa.
E, ainda assim, acha que vamos conseguir sair disto?
Acho porque não temos alternativa.
Vamos sair disto diferentes?
Já estamos um bocadinho diferentes. Aumentámos as exportações... não vamos continuar a fazer auto-estradas... acho que nós, como povo, somos bons em situações de grande aperto, em catástrofes. Despertamos solidariedade, generosidade. Não somos bons é na manutenção.
O problema é que tudo indica que esta catástrofe é de longa duração...
Vamos ter de aguentar porque não temos alternativa. Não sei até que ponto vamos mudar os nossos comportamentos sociais. Se isto fizesse com que houvesse menos hospitais e melhores, com redes de referenciação, menos e melhores universidades, menos cursos, menos e melhores instituições de ciência, tínhamos dado um passo de reforço do tecido social. O que acho indecente é se o Governo aproveitar esta oportunidade para destruir o tecido institucional público.
Há esse risco?
Tenho medo. Sou totalmente a favor de reforçar o público, no ensino, na investigação e saúde. Se for preciso aparando as arestas, mas reforçá-lo. Não fragilizá-lo. Continuo a achar que é criminoso acreditar que a medicina privada e a privatização é melhor. É pior em custos e em eficiência e qualidade.
Está a falar das PPP [parcerias público-privadas]?
Estou a falar de hospitais universitários e IPO que é o que conheço melhor. Seria mortal que fossem transformados em empresas semiprivadas. Se quisermos dar cabo do SNS a melhor maneira é acabar com os hospitais universitários e IPO. São estas as instituições que dão esqueleto ao sistema. Sou totalmente contra a privatização da saúde. Não tenho nada contra a existência de áreas da saúde que, com regras claras, estejam privatizadas. Mas privatizar o SNS de uma forma disfarçada com a ideia de que os privados gerem melhor que o público? Não. Conheço públicos e privados que são horrorosamente geridos. Todos nós já chamamos canalizadores a casa! Todos nós já recorremos a serviços privados que são muito maus.
Disse recentemente numa entrevista que acabou o tempo das mordomias. Temos mordomias?
Tínhamos. O dinheiro europeu para a nossa escala era muito e barato. Não nos apercebemos que estávamos a comprar chatices para o futuro. Estávamos a criar um mundo cada vez mais desigual. Além das catástrofes naturais (da água e da energia), o que mais me assusta é a desigualdade. Por que está a aumentar de uma maneira obscena. Como sociedade, fomos apanhados de surpresa. E é verdade que não desenvolvemos riqueza. Acabámos com a pesca, agricultura, têxtil... o dinheiro da Europa veio contribuir para que isso fosse definhando e, em contrapartida, não criamos alternativas além do turismo e umas coisas muito incipientes e que não são muito empregadoras. O têxtil e o calçado estão agora a recuperar. Mas estou muito assustado.
É o avô que está assustado?
O avô, o pai, o colega... a falta de segurança para desenhar um futuro profissional. Eu vivi melhor do que os meus pais. Acho que os nossos filhos vão ter mais dificuldades do que nós. E é a primeira vez que isso acontece.
O médico apresenta soluções para manter o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em tempo de cortes "brutais" e dá exemplos de racionamento, como limitar a dois o número de ecografias durante a gravidez. O professor universitário fala em fechar universidades e cursos para melhorar o ensino. O investigador pede um reforço e classifica de "indecente" a possibilidade de o Governo aproveitar a crise para destruir o tecido institucional público. E o avô está assustado com o futuro mais difícil que se adivinha. Todas as vozes numa só pessoa: Manuel Sobrinho Simões. Aos 64 anos, o rosto do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) está longe de pensar na reforma, ao contrário de muitos colegas de profissão.
Recentemente, num programa de televisão, falou na necessidade de racionar no Serviço Nacional de Saúde. O que queria dizer com isso?
Primeiro ponto: é difícil arranjar alguém que seja mais a favor do SNS do que eu. Farei tudo que estiver ao meu alcance para que o SNS se mantenha vivo e saudável. Segundo ponto: O caso da saúde é uma história de sucesso extraordinária. Nos países em que foi mudado o sistema no sentido da iniciativa privada a saúde piorou e ficou mais cara. Os EUA têm um sistema de saúde pior do que o nosso em todos os indicadores e muito mais caro. Portanto, não acho que em nenhuma circunstância seja defensável pensar em acabar com SNS ou sequer fragilizá-lo. Agora, o SNS não se aguenta como está e aí aparecem palavras e os verbos é que não são fáceis. O verbo racionar é infelicíssimo porque está muito ligado afectivamente à guerra.
Queria dizer racionar ou racionalizar?
As duas coisas. Infelizmente vai ser preciso racionar. Mas antes disso há medidas a tomar que são relativamente menos dolorosas, como planificar e separar o essencial do acessório. Odeio a palavra racionar, tem uma componente afectiva que não pode ser pior, mas a sustentabilidade do SNS exige que nós planifiquemos, separemos o essencial do acessório e racionemos. Três coisas que não podemos evitar.
Isso é tudo muito abstracto....
Dou-lhe um exemplo. Temos que decidir se vamos investir mais no diagnóstico pré-natal e na fertilização in vitroou mais no tratamento das pessoas idosas. Os recursos são finitos, não há dinheiro para tudo. Bater-me-ei até ao fim para ter um SNS sustentável, para isso precisamos de poupar, depois discutimos o racionamento, que tem de ser sempre encarado como a última solução.
O ministro da Saúde está pressionado para reduzir a despesa. Acha que o que se está a fazer são cortes cegos?
Não sei. Que são cortes brutais são, que seguramente não são inteligentes, não são. Também não faço a mínima ideia se é possível atingir este nível de poupança com medidas inteligentes. Temos uma literacia mínima, portanto as nossas discussões são sempre inquinadas por meia dúzia de bandeiras. Outro exemplo: se diminuir a quantidade de doentes que chegam ao Hospital de S. João [no Porto] e não precisavam de chegar, a qualidade melhora. Nesta altura, e isso é estúpido, os hospitais são pagos por acto médico, portanto o S. João não se importa de ter uma quantidade enorme de doentes nas consultas que, na sua maioria, deviam ter ficado nos centros de saúde ou nos hospitais periféricos. Quem perde são os doentes mais graves.
Mas indo ao concreto. Entre a procriação medicamente assistida e cuidar dos idosos?
Aí se não houver dinheiro já põe um problema seríssimo. Não sei.
Portugal é um país muito envelhecido...
Não, não. Nós não temos é crianças. O que somos é um país de doentes ou pelo menos de pessoas que se julgam doentes. Nós queixamo-nos mais porque somos periféricos, pequenos, pobres e assustados. Há uma negociação nossa com a fragilidade que é fruto da nossa experiência comercial. Na nossa cultura é quase malcriado dizer estou bem nunca estive tão bem na vida. A vitimização cria empatia, como temos uma vaga inspiração religiosa, não gostamos de desafiar Deus. Isso dificulta muito, de novo, a planificação de saúde, porque a valorização das queixas é muito difícil de fazer de uma forma objectiva. Vamos ter muita dificuldade em planificar. Mas planifica melhor a medicina de proximidade do que a de hospital central, melhor os enfermeiros que vão a casa do que o médico que vê o doente de tempos a tempos.
No tal programa de televisão, foi dado o exemplo da hemodiálise como algo que poderia ser pago pelos doentes com mais de 70 anos. Foi muito polémico. Concorda?
É um disparate. Não existe em nenhuma parte do mundo. Vamos ter que decidir outras coisas, como por exemplo quando interrompemos tratamentos. A nossa civilização acha que a morte é opcional e não é. Se calhar é mesmo melhor morrer em paz, com a família, não podemos continuar a prolongar tratamentos indefinidamente, fica caríssimo.
Para isso é preciso mais cuidados paliativos...
Os cuidados paliativos podem ser resolvidos com associações, com amizade, com ternura, não são caros do ponto de vista médico. E aí continuo a pensar que temos que recuperar rapidamente o nosso capital nas Misericórdias a sério.
Concorda com a devolução dos hospitais às Misericórdias?
Sim. Mas as Misericórdias não têm capacidade para gerir grandes hospitais. Falo de hospitais como o de Arouca, Vila Nova de Cerveira, Valença, Caminha, hospitais de cuidados continuados, de recuperação e reabilitação.
Dê-nos mais exemplos de racionamento
O racionamento que para mim é óbvio é o do número de ecografias durante a gravidez. Na Inglaterra fazem-se duas. Um bom médico faz só duas ecografias e é suficiente.
Mais?
Sou contra a taxa de médicos por habitante que em Portugal é maior do que na maior parte dos países europeus. Temos um problema de distribuição. Não acho que a solução seja fazer faculdades de medicina privada, já temos faculdades em excesso.
Em Portugal há hospitais a mais?
Há, isso é indiscutível. Aí é que é preciso também racionar. Nos medicamentos temos igualemente que fazer contas. Se não houver dinheiro para todos, temos que decidir os que vamos usar. Outra questão é, por exemplo, o problema das bandas gástricas para a obesidade. A pessoa que não quer fazer regime deve ter o mesmo direito a ter uma banda gástrica do que a pessoa que quer fazer regime? Se os recursos são finitos, tem que se decidir quanto do dinheiro público vai ser gasto em bandas gástricas e qual é a contrapartida que se pede aos cidadãos para terem acesso a isso. Não vale a pena as pessoas porem-se na posição de que tem que haver dinheiro para isso, porque não vai haver dinheiro para tudo.
As pessoas respondem que para a saúde tem de haver sempre dinheiro...
Mas não vai haver dinheiro para a saúde. E não é só cá em Portugal. Já não está a haver em parte nenhuma civilizada do mundo. A sociedade tem de ser capaz de aumentar a sustentabilidade do SNS à custa de mecanismos de prevenção e planificação.
Concorda com o co-pagamento? Acha que as pessoas que ganham mais deviam pagar mais? Ou o financiamento devia fazer-se só pela via dos impostos?
Não sei comparar as duas coisas. Até porque há muita fuga aos impostos em Portugal e portanto isso é o que me assusta mais. Seria a favor do co-pagamento para assegurar a sustentabilidade do SNS. Se a pessoa pode pagar... Uma coisa que quero que fique bem claro: sou totalmente a favor da existência de medicina privada. Mas acho que a medicina pública e o SNS são muito mais importantes para o país. Deve haver regras muito claras de articulação da medicina privada com a pública, não se pode admitir que a medicina privada viva de desnatar a medicina pública.
É isso que tem acontecido em Portugal?
É. Vamos a outra questão de racionamento, desta vez da privada. Acho muito bem que as pessoas que queiram escolham hospitais privados para ter as crianças. Agora, tinha de existir um acordo com os hospitais privados onde há partos e, quando as coisas dão para torto e elas vão parar às maternidades e hospitais centrais, parte do dinheiro que as pessoas tinham pago revertia para o público. Às tantas, temos tudo o que é rendível nos privados e tudo o que dá despesa é pago por todos nós.
Quando me fala destas escolhas e decisões difíceis entre o essencial e o acessório... Lembra-se do que aconteceu com as maternidades [foram fechadas várias, por entre os protestos da população]?
Isso das maternidades foi muito infeliz porque o ministro Correia de Campos tinha toda a razão. Foi uma medida inteligentíssima.
Mas acha que este "povo pequeno, assustado, pobre" (como lhe chamou) é capaz de aceitar estas decisões?
Não sei. As maternidades ou o tratamento de cancro são bons exemplos. Mas atenção: percebo que, para a pessoa que está em tratamento com quimioterapia ou radioterapia, a deslocação seja um sofrimento muito grande. Era preciso arranjar formas de deslocação que fossem o menos incómodas possível.
Está a falar da rede de referenciação do cancro. Mas ainda não avançou...
Não sei porque não avança. Mas tenho a certeza é que a ideia que as pessoas têm de que é muito bom ter um hospital ao pé de casa é uma estupidez. É uma estupidez daquelas!
Mas temos de levar os doentes aos sítios onde podem ser tratados.
Temos de racionalizar os transportes de forma a optimizar o transporte de doentes que não tenham possibilidade de se deslocar de outra maneira. Por exemplo, se há quatro doentes que vêm num transporte só se deve fazer um pagamento. Não um por cada doente. Se a pessoa tem possibilidade de andar, não é só porque está doente que deve vir de ambulância. Nesse caso paga, é mais barato, e vem de comboio ou de autocarro.
Mas aí a pessoa está a ser penalizada por estar longe do centro de tratamento.
Como está longe de uma escola ou de um tribunal. Esse é um problema menor num país como o nosso. É um problema social gravíssimo do ponto de vista da desertificação do interior... mas não é o problema das pessoas. O problema das pessoas é solúvel, até porque não são muitas. De resto, eu também sou a favor que nas regiões fronteiriças se usem os tratados europeus e, se houver bons hospitais em Espanha, devemos ir a Espanha. Há um custo de localização, de pouca sorte, que não se resolve aumentando uma oferta sem qualidade. E isso também é racionar. Não pode haver tantos hospitais a tratar cancro como há. Porque quem trata poucos cancros por ano, trata mal. Se me diz... ah, mas o povo não quer, paciência.
Ou manda o ministro embora como fez no caso das maternidades com o Correia de Campos.
Atenção que o Correia de Campos foi um excelente ministro da Saúde.
E o que diz do actual?
Não digo. Não conheço. Se querem que diga algo positivo, foi a recondução dos directores do S. João e IPO que tanto quanto sei não são próximos do partido do Governo. São excelentes gestores. E aqui dou outra ideia. Este tipo de eficiência de gestão pode ser usado como exemplo para hospitais semelhantes (cuidado, não se pode comparar coisas que são diferentes). O São João pode ser comparado com o Hospital da Universidade de Coimbra e com o Santa Maria (em Lisboa). Seria sempre a favor de usar exemplos concretos, em vez dos tais cortes cegos. Que também é muito raro na nossa cultura, que é muito retórica. As pessoas gostam dos tipos que falam, falam... Quando alguém faz muito coloca os pares em cheque e fere um maior número de interesses instalados.
São mudanças difíceis...
A grande resistência da sociedade portuguesa à transformação está na iliteracia. Continuamos a não saber o que nos interessa. Além disso, temos uma sociedade com corporações muito instaladas. Aí, as resistências são múltiplas. Nós podemos poupar imenso sem racionar. O que é uma estupidez é as pessoas começarem a chatear toda a gente se o velhinho de 70 anos vai ou não fazer hemodiálise quando podemos é diminuir imenso as pessoas que precisam de hemodiálise.
Acha que vamos conseguir sair da crise?
Acho que sim, apesar de tudo temos condições razoáveis. Temos um desenvolvimento muito grande da ciência e educação. Tivemos. Somos muito sensíveis ao estrangeirado, é uma das características do Portugal. Mas, se repararmos, estamos a reagir de uma forma muito mais organizada do que, por exemplo, os gregos, os espanhóis e italianos.
Temos mais espírito de sacrifício ou somos mais conformados?
Temos mais espírito de sacrifico. E, está bem, estamos mais calados mas isso é bom em termos de concertação social. Um dos grandes problemas para nós seria se, de repente, caíssemos num desespero tal que levasse, por exemplo, a um aumento da violência urbana.
Acha que isso não pode ainda vir a acontecer? Ainda estamos no início...
É verdade. E estou muito assustado. Mas a minha fuga é sempre para a frente, é fazendo. Mesmo aqui no Ipatimup, onde estamos a passar uma fase difícil. O Governo cortou de uma forma estúpida, a universidade cortou e as pessoas não nos pagam.
Que corte tiveram no orçamento?
Tínhamos um contrato com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de 1,6 milhões de euros por ano e reduziram-nos para o valor de 2005, 1,2 milhões. Este ano vamos aguentar com o dinheiro que tínhamos no banco. Mais dois anos assim e ou despedimos pessoas ou desligamos o aquecimento... ainda temos também o problema das prestações de serviços aos hospitais que também não estão a pagar.
A investigação está ser afectada pela crise?
Está muito bem porque ainda está com o lanço que teve com o ministro Mariano Gago. Está a ser afectada, mas apesar de tudo este ministro [Nuno Crato] é inteligente e a secretária de Estado [Leonor Parreira] é muito sensível à investigação. Esta decisão de passar para o orçamento de 2005 é do ano anterior, estes responsáveis mantiveram mas não diminuíram ainda mais. O futuro é assustador. Mas não estou tão preocupado com a ciência porque a ciência é internacional.
Somos premiados e respeitados, mas somos apoiados?
A nossa ciência está muito dependente do privado. Mas eu prefiro que exista a Champalimaud e a Gulbenkian do que não os ter. Não resolvo o meu problema com inveja. Ao menos que venham eles. Por outro lado, acho uma estupidez esta ideia de que é melhor emigrar.
Há fuga de cérebros?
Há muita gente que está a sair. O país ganha em criar condições para que muitos dos bons fiquem. Não é preciso que fiquem todos. Voltamos à saúde e ao ensino. No ensino também temos de racionar. Não podemos ter o número de universidades e politécnicos que temos. Temos dezenas de cursos de arquitectura, de psicologia... e os miúdos vão quase todos para o desemprego. Num país que está fragilizado, por razões circunstanciais e estruturais, o truque não é apostar em pessoas e fait-divers, é apostar em instituições. Mas os políticos não gostam de escolher instituições. Perdem votos.
Nem gostam de fechar universidades ou hospitais...
Exacto. O grande obstáculo, além das corporações, são os próprios políticos. Os políticos vivem das corporações por interposta pessoa.
E, ainda assim, acha que vamos conseguir sair disto?
Acho porque não temos alternativa.
Vamos sair disto diferentes?
Já estamos um bocadinho diferentes. Aumentámos as exportações... não vamos continuar a fazer auto-estradas... acho que nós, como povo, somos bons em situações de grande aperto, em catástrofes. Despertamos solidariedade, generosidade. Não somos bons é na manutenção.
O problema é que tudo indica que esta catástrofe é de longa duração...
Vamos ter de aguentar porque não temos alternativa. Não sei até que ponto vamos mudar os nossos comportamentos sociais. Se isto fizesse com que houvesse menos hospitais e melhores, com redes de referenciação, menos e melhores universidades, menos cursos, menos e melhores instituições de ciência, tínhamos dado um passo de reforço do tecido social. O que acho indecente é se o Governo aproveitar esta oportunidade para destruir o tecido institucional público.
Há esse risco?
Tenho medo. Sou totalmente a favor de reforçar o público, no ensino, na investigação e saúde. Se for preciso aparando as arestas, mas reforçá-lo. Não fragilizá-lo. Continuo a achar que é criminoso acreditar que a medicina privada e a privatização é melhor. É pior em custos e em eficiência e qualidade.
Está a falar das PPP [parcerias público-privadas]?
Estou a falar de hospitais universitários e IPO que é o que conheço melhor. Seria mortal que fossem transformados em empresas semiprivadas. Se quisermos dar cabo do SNS a melhor maneira é acabar com os hospitais universitários e IPO. São estas as instituições que dão esqueleto ao sistema. Sou totalmente contra a privatização da saúde. Não tenho nada contra a existência de áreas da saúde que, com regras claras, estejam privatizadas. Mas privatizar o SNS de uma forma disfarçada com a ideia de que os privados gerem melhor que o público? Não. Conheço públicos e privados que são horrorosamente geridos. Todos nós já chamamos canalizadores a casa! Todos nós já recorremos a serviços privados que são muito maus.
Disse recentemente numa entrevista que acabou o tempo das mordomias. Temos mordomias?
Tínhamos. O dinheiro europeu para a nossa escala era muito e barato. Não nos apercebemos que estávamos a comprar chatices para o futuro. Estávamos a criar um mundo cada vez mais desigual. Além das catástrofes naturais (da água e da energia), o que mais me assusta é a desigualdade. Por que está a aumentar de uma maneira obscena. Como sociedade, fomos apanhados de surpresa. E é verdade que não desenvolvemos riqueza. Acabámos com a pesca, agricultura, têxtil... o dinheiro da Europa veio contribuir para que isso fosse definhando e, em contrapartida, não criamos alternativas além do turismo e umas coisas muito incipientes e que não são muito empregadoras. O têxtil e o calçado estão agora a recuperar. Mas estou muito assustado.
É o avô que está assustado?
O avô, o pai, o colega... a falta de segurança para desenhar um futuro profissional. Eu vivi melhor do que os meus pais. Acho que os nossos filhos vão ter mais dificuldades do que nós. E é a primeira vez que isso acontece.
Alexandra Campos e Andrea Cunha Freitas , JP 29.01.12
Etiquetas: Entrevistas
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