sábado, janeiro 01, 2011

Este capitalismo não tem remissão

O Governo hesita em injectar mais 500 milhões de euros no cadáver c h a m a d o BPN. A hesitação do Governo tem razão de ser: se lá meter mais €500 milhões, sabe que são mais €500 milhões roubados aos contribuintes e sem recuperação possível. Mas, se não meter lá mais estes €500 milhões, terá de declarar a falência do banco e aí os 4800 milhões de euros que a Caixa Geral de Depósitos lá tem espetados em troca de activos que nada valem terão de ser considerados perdidos e levados à conta do défice do ano que vem. Ora, se pensarmos que em 2011 o Governo se propõe conseguir cortar 5700 milhões de euros nas suas contas para atingir o anunciado défice de 4,7% do PIB, é fácil perceber o efeito devastador que será ter de assumir de uma vez só os custos da aventura do BPN: em vez de 4,7% de défice estaríamos a falar de qualquer coisa à roda dos 9% — o fim de qualquer ilusão.

A alternativa, tentada, seria vender o BPN, mas, obviamente, ninguém o quis comprar. Como se viu agora, o banco só consegue flutuar com sucessivas injecções de capital; os seus 300.000 clientes só se mantêm lá porque o banco está nacionalizado e tem a garantia do Estado; e os seus 250 balcões não são suficientemente atractivos para compensar o péssimo good will do nome BPN. Imaginando que para manter o BPN a funcionar chegariam €500 milhões por ano (o que é uma piedosa ficção), mesmo assim isso significaria que para defender cada um dos postos de trabalho dos seus 1800 trabalhadores são precisos cerca de 270.000 euros por ano, fora ordenados e tudo o resto. Resumindo uma triste história, o BPN só continua de portas abertas porque a alternativa teria custos contabilísticos com uma repercussão externa mortal.

É incrível pensar que tantas coisas decisivas para o país, para a vida concreta de todos nós, dependem do desfecho a dar a um negócio bancário de vão de escada. É incrível pensar que, enquanto os gurus republicanos responsáveis pela implosão do sistema bancário americano, até eles, deixaram um gigante como o Lehman Brothers ir à falência, entre nós, ao primeiro sinal de perigo, o pânico tomou conta de José Sócrates e Teixeira dos Santos e, num fim-de-semana nefasto, eles decidiram acudir ao BPN, porque tiveram mais medo do contágio do que da vacina. É incrível pensar como é que o Banco de Portugal deixou, contra indícios gritantes e informações correntes na praça, crescer aquele negócio familiar ‘mixuruco’ até se transformar num crime sem fundo cuja pena será paga tão-só e apenas pelos contribuintes. E é incrível pensar como é que, em primeira instância, se deu a Oliveira Costa — cujo currículo se resumia a uma duvidosa gestão da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, sem habilitação bancária nem fortuna conhecida — licença para abrir um banco e funcionar a seu bel-prazer. E onde estavam a Fitch, a Moody’s e a Standard & Poor’s, quando coisas como o BPN ou o BPP actuavam no mercado como respeitáveis instituições financeiras? Será que estavam pagas por eles?

Por muito que a factura nos custe, o BPN é apenas uma gota de água num oceano de tragédia global. Com excepção da China, não há uma única economia nacional relevante que não esteja neste momento dependente das consequências das aventuras criminosas do sector financeiro. A Islândia é um bom ponto de partida: uma ilha no meio do Atlântico, com uma população igual à da cidade do Porto, uma economia próspera, um sistema social perfeito e solvente. De repente, desregulado o sistema financeiro, rapidamente a banca islandesa tinha outorgado empréstimos numa quantia equivalente a dez vezes o PIB do país e, entre outras coisas, para financiar jovens tycoons que queriam comprar lojas de luxo em Oxford Street, em Londres. Quando os empréstimos começaram a não ser pagos, a banca islandesa ficou à beira da falência e o Estado teve de acorrer, mobilizando tudo o que tinha. A dívida pública disparou, as empresas fecharam por falta de crédito, o desemprego cresceu até aos 12%. O mesmo cenário na Irlanda (que agora teve de mobilizar os fundos das pensões de reforma dos trabalhadores para tapar os buracos da banca), e o mesmo cenário nos Estados Unidos — e daí para o mundo inteiro.

Para quem não conhece bem a história, recomendo que veja o filme “Inside Job”, cuja maior contribuição é mostrar a cara de alguns dos protagonistas da urdidura — e é sempre bom ver a cara dos criminosos: explica muito do que não se consegue explicar. Resumindo, a história é esta: aproveitando a sua sublime ignorância, Ronald Reagan foi facilmente convencido a desregulamentar o mercado financeiro: se o Estado nada controlasse, explicaram-lhe, a banca funcionaria livremente, haveria crédito abundante e barato para todos e a economia prosperaria. Clinton não conseguiu ou não quis rever a libertinagem e Bush-filho, esse idiota trágico, ainda aprofundou a ribaldaria e aliviou-a de impostos. Livres de vigilância, pressionados pelos accionistas em busca de lucros rápidos e aliciados por milionários prémios de gestão, os gestores financeiros americanos entregaram-se alegremente a uma década de irresponsável bebedeira. O mais à mão que tinham era o crédito imobiliário (tal como cá...), e desataram a financiar compras de casas, emprestando 99% do seu preço a quem não tinha hipótese alguma de as pagar. Com isso, fizeram subir exponencialmente o preço das casas, criando a célebre ‘bolha imobiliária’, e produzindo os chamados ‘activos tóxicos’, sob a forma de hedge funds e ‘produtos derivados’ — que começaram a vender aos clientes como investimento garantido e de retorno excepcional. Para tal, contaram com a conivência das agências de rating (as mesmas que agora especulam contra a nossa dívida soberana, impondo-nos juros de 7% ou mais — a Moody’s, a Fitch, a Standard & Poor’s). Sem nenhum escrúpulo, as agências, que recebiam tanto mais dos bancos quanto mais valorizassem os seus ‘activos tóxicos’, atribuíram-lhes as cotações máximas, levando os incautos ao engano.

Entretanto, os mesmos bancos que promoviam a venda dos activos tóxicos como produtos seguros perante os seus clientes, resguardavam-se inventando os CDS ( credit default swaps), uma espécie de seguro contra a insolvência dos tóxicos. Ou seja, ganhavam duas vezes, roubando os seus clientes: ganhavam vendendo-lhes lixo e ganhavam apostando na sua falência. Quando, como era inevitável que acontecesse, os créditos imobiliários começaram a não ser pagos, todo o sistema desmoronou.

Milhões de americanos ficaram sem as casas que tinham começado a pagar. Milhões de aforradores, que tinham acreditado na credibilidade dos ‘produtos derivados’, ficaram sem as suas poupanças. Bancos de investimento e de retalho abriram falência e arrastaram as empresas que deles dependiam e estas lançaram no desemprego outros milhões de americanos. Mas, nessa altura, já os grandes accionistas e os seus gestores na banca estavam a salvo e tinham encaixado biliões de lucros roubados aos clientes e passados para as offshores. Estranhamente, com excepção de Roubini, nenhum dos gurus da economia tinha imaginado que pudesse implodir um sistema onde os lucros crescentes não correspondiam a riqueza crescente mas apenas a especulação, e que, numa economia global, uma crise desencadeada num dos seus pilares pudesse alastrar ao resto do mundo. Soube-se depois porquê: porque também a Universidade, a elite dos economistas, estava a soldo do sistema financeiro e pregava o que eles queriam. A crise do sistema financeiro americano, desencadeada por práticas especulativas e criminosas, alastrou ao mundo e criou cinquenta milhões de desempregados, dezenas de milhares de falências de empresas viáveis, e obrigou os Governos a investirem uma parte inimaginável do dinheiro dos contribuintes e das poupanças dos reformados para salvar o sistema financeiro.

Mas nada de essencial mudou. Nos Estados Unidos, onde George W. Bush, o campeão do liberalismo, teve de nacionalizar bancos para salvar os ricos com o dinheiro dos pobres, Obama não conseguiu que o Congresso, dominado pelos republicanos, lhe aprovasse legislação para recuperar esse dinheiro roubado aos contribuintes, não conseguiu que lhe permitisse voltar a tributar os grandes lucros financeiros isentados de impostos por Bush e não conseguiu sequer livrar-se de ter como reguladores do sistema financeiro alguns dos grandes criminosos que o fizeram implodir, como os ‘sábios’ da Goldman Sachs. E as empresas de rating, as tais que aconselhavam a comprar créditos incobráveis, continuam a aconselhar os mercados a apostarem agora na falência de Portugal e de Espanha e na morte do euro.

Antes de mais nada, esta é uma crise de valores éticos, de valores de vida em sociedade. E mal vai o mundo se não há uma geração de líderes políticos com capacidade e coragem de fazer frente a este bando de abutres que suga o trabalho, o esforço e os sonhos de tanta gente que é vítima da sua ganância sem limite. Esse é o combate inadiável, sem o qual nenhum sacrifício do presente faz sentido.

Miguel Sousa Tavares, semanário expresso 30.12.10

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