terça-feira, abril 29, 2008

João Cordeiro

em entrevista ao Expresso, edição 1852 de 25.04.08
"Sócrates soube mostrar carinho pelas farmácias"
Há quase 30 anos no comando de um dos mais poderosos lóbis do país, João Cordeiro diz que teve de mudar de estratégia com este Governo, de maioria. Foi direito ao alvo: negociou directamente com primeiro-ministro, José Sócrates.
Ana Sofia Santos e Vera Lúcia Arreigoso

Lidera a Associação Nacional das Farmácias (ANF) há 30 anos. Não se sente cansado? É metade da sua vida...Vai recandidatar-se em 2009 ou tem outros projectos?
Estou na ANF desde 1974.
Mas tomou-lhe as rédeas mais tarde.
Sim, mas já tinha algum peso na estrutura. Em 1974, como é sabido, houve um período muito conturbado. Estava ligado às associações de estudantes, conhecia colegas de Lisboa e do Porto e foi com naturalidade que nos constituímos num grupo para tomarmos conta do, à época, Grémio das Farmácias. Já tínhamos muitas ideias e projectos cimentados a partir das associações de estudantes. Ou seja, já tínhamos um modelo de exercício profissional. Relativamente à sua questão, não me sinto cansado. Sabe que quando as pessoas fazem aquilo que gostam não se cansam. Não me sinto nada cansado, todo o trabalho associativo dá-me muito prazer. Hoje, a associação tem uma equipa de pessoas altamente competentes. Há um núcleo duro dentro da direcção que me acompanha ao longo dos anos. Aqui trabalha-se com entusiasmo, muito profissionalismo e confiança no futuro e essas características mantêm o prazer de estar envolvido na ANF.
Os últimos anos têm sido intensos. Houve grandes mudanças e desafios.
Pois. Mas, naturalmente, se não têm sido esses desafios e essas mudanças já me tinha ido embora.
Anunciou que saía em 2007 mas não o fez. O que mudou?
Não pensava recandidatar-me mas, entretanto, houve alterações legislativas muito significativas e a associação envolveu-se em projectos como a compra da Alliance Unichem, a constituição de uma financeira e a criação do Cartão das Farmácias Portuguesas. Cheguei a referir, em 2005, que ainda iria agradecer a José Sócrates o discurso de tomada de posse (onde foi anunciada a venda livre de medicamentos não sujeitos a receita médica). Havia mudanças muito significativas no sector de enquadramento legal, económicas e achei que não era oportuno. Neste momento, acho que quem tem que decidir se saio não devo ser eu mas os associados. Reconheço que estou há muito tempo e isso pode ter inconvenientes, mas não devo ser eu a assumir essa responsabilidade.
Mantém essa intenção, de agradecer ao primeiro-ministro?
Hoje posso afirmar isso com bastante mais segurança porque José Sócrates manteve uma atenção muito especial para com o sector. Em fases decisivas, soube mostrar o carinho, o interesse e a avaliação positiva do sector. Soubemos responder de forma muito positiva aos desafios que tivemos nestes últimos três anos. A associação neste período, que foi difícil e em que havia o risco de se criar desunião entre os associados - e houve algumas tentativas, como se verificou nas últimas eleições , conseguiu manter o rumo e promover uma reorganização total dos serviços. Hoje, em termos que quadros e de estruturas estamos muito melhor organizados, temos projectos muito ambiciosos, como a cadeia de farmácias na Polónia (em parceria com a Jerónimo Martins).
Esse projecto, afinal, foi para a frente.
Estamos a avançar. Pensamos ter uma rede de cem farmácias na Polónia até ao final do ano. Neste momento, já abriram doze e estão seis ou sete, praticamente, prontas. Temos em análise a aquisição de duas cadeias, portanto, as coisas estão a correr.
Essa experiência pode ser útil para Portugal, agora que a propriedade da farmácia foi liberalizada?
Não é essa a nossa prioridade. De qualquer forma, acho que é importante a associação, o sector, ter pessoas com experiência na gestão de cadeias de farmácias. É um activo importante para a ANF. Temos também o projecto da Consiste em Angola, que está a correr bem. Temos muita coisa que está a avançar e que não existia há três anos.
Portanto, recandidata-se em 2009?
Sim, com dois desafios: se ganhar as eleições por um voto que seja cumpro o mandato mas se não tiver dois terços dos votos não volto a recandidatar-me. Hoje escolho as coisas que me dão prazer. Tenho um estatuto que construí ao longo da minha vida profissional que me permite dar ao luxo de escolher apenas o que me dá prazer. E dá-me muito gozo estar na associação.
E também lhe dá poder. A ANF é um dos maiores lóbis do país...
Os nossos adversários tentam criar essa imagem, de que somos um lóbi poderosíssimo, que temos um poder descomunal. Acho isso ridículo, sobretudo se compararmos o poder das farmácias ao poder das multinacionais farmacêuticas. Somos, sim, um sector organizado e não dependemos do poder político. Mesmo quando há eleições não nos fracturamos numa base política - o que costuma acontecer com outros grupos profissionais. Além disso, não dependemos economicamente do poder político e qualquer partido ou Governo não gosta de associações profissionais organizadas. Dizem que é uma pena não haver associações fortes no país, mas no fundo não gostam de estruturas organizadas e a partir daí tentam justificar as suas incapacidades com o poder desmesurado de um sector que apenas está é bem organizado, que representa micro-empresas e que ao longo destes anos tem feito coisas bonitas porque trabalhamos bem e muito e estamos unidos. É esse o maior activo da ANF: a união e a confiança que existe. É isso que faz com que consigamos sair dos momentos mais difíceis de uma forma positiva. Faço reuniões pelo país em que contacto directamente com dois mil associados. Nas últimas eleições, em que houve duas listas, votaram 90% das farmácias, o que não é habitual quando se diz que o movimento associativo está morto, que não existe. E não existe porque há um subsídio de dependência (conheço isto porque já estive na Confederação do Comércio). As associações não podem defender os interesses sectoriais baseados numa lógica de dependência económica do poder político, qualquer que seja o Governo.
Mas foi o Governo (à época, Leonor Beleza e Fernando Costa Freire eram a ministra e o secretário de Estado da Saúde, respectivamente) que lhe deu um acordo milionário ao permitir-lhe adiantar às farmácias os créditos devidos pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS)...
O nosso desenvolvimento foi feito fora dos subsídios e apoios comunitários. Referir que a associação tem poder por causa do acordo é altamente limitativo e distorce o problema.
Porquê?
Agora até nem temos acordo, temos uma estrutura financeira. Foi o fim do coro de maledicência, de que éramos uma situação de excepção, que tínhamos privilégios relativamente aos outros fornecedores. Só me posso responsabilizar pelas minhas incapacidades, não posso responsabilizar-me pela incompetência dos outros. Estou, sim, de acordo que associação hoje é forte porque foi cimentada nas dificuldades do passado, muitas delas relacionadas com os atrasos nos pagamentos do Estado às farmácias.
Houve uma época em que todos os dias entravam processos em tribunal de farmácias contra o Estado por falta de pagamento.
Houve Administrações Regionais de Saúde com atrasos de trinta meses nos pagamentos. O Ministério da Saúde chegou a dever-nos 250 milhões de contos (cerca de 1250 milhões de euros). Acho que a questão que se deve pôr é como é que um micro-sector como este consegue reagir e organizar-se sem cortar no crédito, um caminho para o qual nos tentaram empurrar - para o confronto com a população portuguesa. Aliás, a solução mais fácil era cortar no fornecimento de medicamentos a crédito. Tem havido noutros sectores grupos de profissionais que suspendem os seus serviços à população por causa de dois ou três milhões de euros de dívida.
Mas jogaram com essa hipótese.
Pode não acreditar, mas isso nunca esteve em cima da mesa. Eu pelo menos nunca utilizei esse argumento. Sempre exigi o pagamento, isso sim. A culpa do poder do ANF é da incompetência do Estado na gestão dos seus interesses. Sei que dizer isto choca as pessoas mas quanto maior a incompetência por parte do Estado na gestão dos seus interesses mais força nos dá à associação. Mas esse problema é do Estado, não é nosso. Se não tivéssemos tido uma compreensão extraordinária da parte da banca privada, que sempre nos financiou permitindo que nós pagássemos sempre ás farmácias, não teríamos conseguido ultrapassar as dificuldades.
O recurso à banca custou muito dinheiro aos associados.
Custou bastante menos do que aquilo que deveria ter custado. Durante muito anos cobrámos apenas os juros que suportávamos junto da banca e poderíamos ter exigido o pagamento dos juros legais.
Mas continuam a cobrar a quota variável, quando o SNS já paga a dois meses...
A associação tem receitas que resultam das quotas dos associados. Há uma quota fixa com um valor insignificante (cerca de 50 euros por mês) e uma quota variável. Não é obrigatório estar na associação e as pessoas analisam aquilo que pagam e vêem o que recebem. As pessoas são livres e é dentro desta lógica que, todos os anos, temos um orçamento, que é discutido e aprovado nos órgãos estatutários.
A associação teve prejuízos em 2007...
Entendemos que neste momento de crise a associação tinha que antecipar ainda mais os pagamentos às farmácias. Estamos a pagar a oito dias.
E isso custou 4,4 milhões de euros aos associados. Justifica-se este preço?
Custou o que teve de custar e naturalmente este ano até vai custar mais. Pergunte aos associados o que eles ganharam com isto.
Perguntamos-lhe a si.
Nestes últimos três anos, as farmácias foram massacradas em termos financeiros, económicos e outros. Por isso, é natural que se sintam confortáveis com os pagamentos a oito dias. O Estado paga a dois meses e o que é estranho é porque é que nos paga a nós e não paga aos outros fornecedores.
Nomeadamente à indústria farmacêutica.
Sim. O que eu acharia suspeito é porque é que há um sector forte e organizado que aceita que alguns hospitais lhe paguem a dois anos.
São multinacionais, com outra capacidade financeira.
Mais uma razão para serem exigentes. Julgo que aí é que podem existir contrapartidas não claras. Está a compreender? Não é pelo facto de um sector ser exigente com o Estado que vai ganhar poder. Ganha, sim, quando deixa o Estado comprometer-se com esse sector.
Por falar em contrapartidas, o Governo anunciou que os medicamentos para o cancro e para o VIH serão vendidos nas farmácias. Tem garantias?
Tenho que acreditar nos governantes deste país. O pior que me podia acontecer era que as pessoas que estão à frente do país não cumpram os compromissos. O 'Compromisso para a Saúde ' foi assinado entre a ANF e o Governo.
Mas há ainda muitas coisas por fazer...
Sim e manifestei publicamente que o Compromisso tem sido posto em prática de uma forma totalmente desajustada. Tudo aquilo que era negativo para o sector avançou rapidamente, e de uma forma extremista, e tudo aquilo que poderiam ser factores compensadores, que são importantes para população, ainda não são uma realidade.
Estes medicamentos vão aumentar a facturação das farmácias e, consequentemente, as quotas pagas à ANF.
Não estou preocupado com as quotas da associação. Não pense que as políticas que a associação defende estão baseadas numa óptica de receitas. Temos receitas suficientes para desenvolver os nossos projectos e cumprimos os nossos compromissos com a banca. Até hoje sempre tivemos acesso ao crédito necessário e temos "plafonds" disponíveis para novos investimentos. Nestes anos de crise investimos cerca de 130 milhões de euros. Assumimos riscos e esse é um dos factores que o engenheiro José Sócrates aprecia em nós.
Foi com ele que negociaram estas questões, incluindo a liberalização da propriedade da farmácia e os medicamentos oncológicos e para o VIH?
Não negociei a liberalização da propriedade da farmácia. Isso foi imposto pelo Governo.
E em troca deram-lhe os oncológicos e os medicamentos para o VIH...
Não me deram nada em troca. O que houve foi o envolvimento pessoal do senhor primeiro-ministro para que a associação e o Ministério da Saúde chegassem a um compromisso para o modelo do exercício profissional. Não vejo ali (no compromisso) nenhuma medida que nós tenhamos defendido que seja do interesse das farmácias. Mas há muito por fazer, por exemplo, falta desenvolver o mercado dos genéricos, que está em todos os programas eleitorais e, por isso, admira-me que ainda não tenha avançado.
Mas a quota de mercado dos genéricos caminha a passos largos para os 20%, segundo dados do Infarmed.
Em oito anos subverteu-se completamente o conceito de medicamento genérico. Obviamente, que o genérico tem que ser prescrito pelo princípio activo (composição química), basta ler a primeira legislação da Dra. Leonor Beleza que definia que a prescrição de um genérico não podia conter qualquer referência à firma responsável pela introdução no mercado. Era a prescrição por princípio activo pura e é este o conceito técnico. Depois foi-se sempre subvertendo o conceito.
Está a dizer que houve pressões por parte da indústria farmacêutica?
Estou apenas a apontar factos. A legislação foi sendo mudada para o sentido defendido pela indústria farmacêutica e hoje chegamos ao cúmulo de ser considerado genérico um medicamento com nome de fantasia. O que lhe posso dizer enquanto farmacêutico é que isto é uma fraude científica. Seguramente, não foram os interesses dos doentes que condicionaram esta evolução. É muito mau quando os políticos se põem a subverter conceitos técnicos e fazem operações de cosmética.
Acredita nos números do Infarmed sobre os genéricos?
Há medicamentos de marca que são contados para o estudo do mercado como genéricos. Há aqui um jogo de números e um tentar enganar as pessoas. As estatísticas do Infarmed estão de acordo com o enquadramento legal mas devia haver um factor rectificativo nesta contagem.
Tem ideia da percentagem desse factor rectificativo?
Não tenho ideia, mas posso referir os dados da IMS Health (consultora que monitoriza o sector do medicamento em Portugal), que no final de 2006 davam conta de uma quota de pouco mais de 10%. Houve um crescimento, mas os níveis em países como o Reino Unido são muito mais elevados.
O que é que ganham as farmácias com o aumento da quota dos genéricos?
É importante termos uma maior intervenção profissional e a prescrição pelo princípio activo permite uma intervenção diferenciada e mais responsabilizante por parte das farmácias. Por outro lado, defendo claramente que cabe ao médico fazer o diagnóstico e seleccionar o princípio activo e, se essa decisão for suportada por protocolos terapêuticos (pela evidência técnica como está, aliás, no 'Compromisso para a Saúde ') julgo que responsabiliza ainda mais todos os intervenientes.
Caso isso avance, haverá um reforço do "marketing" farmacêutico junto das farmácias.
O que está mal é a concentração do poder num só profissional de saúde, que faz o diagnóstico, selecciona o princípio activo e indica o laboratório. Essa responsabilidade deve ser repartida, como já acontece nos hospitais.
Há muito que a ANF se bate pela prescrição por denominação comum internacional (DCI).
Em qualquer país civilizado o genérico é a prescrição por DCI. É esse o conceito da Organização Mundial de Saúde.
Como encarou a saída do anterior ministro da Saúde Correia de Campos?
Disse tudo o que pensava sobre ele e sobre a sua política ao próprio. Toda a gente sabe que fui muito crítico e que ele teve posições de massacre e altamente desequilibradas relativamente ao nosso sector.
Porque é que acha que isso aconteceu?
Tem que lhe perguntar a ele.
Ele não lhe justificava as medidas que tomava?
Ele até tentava.
A saída deste governante 'teve o seu dedo '?
Já foram apontados 'n dedos' à saída de Correia de Campos. Julgo, aliás, que fomos altamente pacientes, o que não nos prestámos foi a ser o subsídio de segurança social. Sabia que não podia vir para a praça pública criticá-lo. Tive que identificar que estávamos perante um Governo maioritário e isso implica mudanças de estratégias e posições muito mais determinadas. Sabe que eu mudei muito nestes últimos três anos - as pessoas vão aprendendo.
Está mais "low-profile". Trabalhou mais na sombra?
Não, adaptei-me.
Como é que gere o poder que tem?
Nos últimos dois meses reuni apenas, há quinze dias, com a ministra da Saúde. Não reuni com mais nenhum político da área da Saúde ou do poder nos últimos dois meses. Digo-lhe isto de forma muito tranquila. A Assembleia da República foi a entidade com a qual tive mais contacto, nos três anos que passaram.
Qual é o partido político que melhor compreende a especificidade do sector das farmácias?
O Partido Comunista. Isto baseia-se muito na forma como o PCP está organizado mas também na personalidade do responsável dentro do partido pela área da Saúde, Bernardino Soares. Os partidos não estão minimamente organizados, não existem gabinetes de estudos, não têm um único tema debatido internamente, à excepção do Partido Comunista. As posições dos partidos mudam conforme as pessoas que os lideram e acho isso inacreditável. É uma irresponsabilidade total e é aliciante para os lóbis. Eu, sendo um lóbi poderosíssimo (marca o tom irónico), critico ferozmente este tipo de situação. Gosto de tratar dos assuntos do meu sector com estruturas profissionais, que avaliem os nossos estudos e que apresentem soluções alternativas.
Os Governos PSD têm sido os mais generosos com as farmácias. Por exemplo, com Luís Filipe Pereira (ministro de Durão Barroso) as coisas correram bem...
Não houve generosidade. Esse antigo ministro deu-me trabalho e responsabilidade e eu respondi-lhe a isso. Se me perguntar qual a análise que faço dos últimos ministros da Saúde digo-lhe que um ministro que acho que, num curto intervalo de tempo, desempenhou bem o seu papel e definiu linhas de orientação que eu aprecio foi Luís Filipe Pereira. Se me perguntar qual é o perfil da pessoa que eu acho que deve estar à frente do Ministério da Saúde é uma pessoa de gestão, habituada a assumir riscos.
O anterior ministro, Correia de Campos, era uma pessoa da gestão?
Nunca me ouviu dizer que Correia de Campos não conhecia os problemas da Saúde e que era uma pessoa incompetente. Acho, sim, que ele tomou decisões desequilibradas. Temos aqui algumas gravações dos discursos que ele fez com os maiores elogios às farmácias e dos discursos que ele fez passados dois, três anos, em que nós aparecemos como o inimigo a abater, como um lóbi que punha em causa a democracia. (Ele pediu na AR o apoio de todos os partidos para acabar com o cartão das farmácias).
Há incoerências, portanto. Na sua opinião a que se deveu essa mutação?
Terá de ser ele a explicar isso. Só constato esse facto.
Falou da unidose com a nova ministra da Saúde, Ana Jorge?
A reunião foi para fazer um ponto da situação. Não terei falado de nenhum assunto em particular mas também falei da unidose.
Como vê a intenção de avançar com a unidose nos antibióticos?
Nunca começaria pelos antibióticos. Se mandasse nesta área, onde prioritariamente introduziria aquilo a que chamo uni-toma (dose unitária) seria nos doentes crónicos. A minha visão da unidose não é numa perspectiva economicista, de poupar, mas mais uma análise de adesão à terapêutica, ou seja, de cumprir a medicação. Acho que a unidose está associada a doentes crónicos, são eles que mais podem beneficiar da uni-toma. Isto porque são doentes idosos, têm polimedicação - que por vezes é complexa - e terem um blíster onde está toda a medicação que deve ser tomada ao pequeno-almoço, almoço e jantar é altamente facilitador.
Isso daria mais trabalho às farmácias.
Se isso for bom para a população.
Mas não seria um trabalho gratuito.
Nós até temos que pagar impostos, porque se não os pagarmos não há Administração Pública... Evidentemente que teremos de ser remunerados, tal como os serviços públicos também são, de outra forma.
E poderiam vender às farmácias máquinas de preparação de medicamentos em unidose. Cheguei a ver um equipamento destes nas instalações da Consiste...
Não as vamos vender às farmácias. Muitas vezes associa-se a unidose a uma situação precária em que se põe em risco o serviço aos doentes, mas isso é uma estratégia de má fé para tentar, no fundo, queimar uma boa solução. Hoje é fácil termos estruturas para servirem um conjunto de farmácias situadas numa determinada área na questão da unidose. Uma máquina como aquela que viu custa 30 mil contos, logo não vamos pôr uma em cada farmácia, até porque necessita de um ambiente especial esterilizado. Além disso, hoje temos tecnologias que permitem passar electronicamente requisições a um centro, que depois preparava os medicamentos e os entregaria às farmácias.
Estão prontos para avançar com esse projecto?
Estamos prontos para uma experiência nesta matéria.
Falou nisso à ministra?
Genericamente. Achei-a sensibilizada para esta questão, até porque quando ela foi presidente da Administração Regional de Saúde foi criado um regime de unidose nas Urgências do Hospital São Francisco Xavier e que ela referiu, na reunião que tivemos, como uma experiência positiva.
Como é que olha para movimento de contestação à actual direcção da ANF, liderado por João Ferro Baptista (denominado Fórum Farmacêutico)?
Gosto de luta, de ter adversários, sobretudo, adversários fortes. Acho que isso é positivo para o desenvolvimento, enriquecimento e fortalecimento do sector. A inscrição na associação é livre, conhecem os estatutos.
Estatutos que foram alterados recentemente. Porque é que a aprovação das contas da ANF deixou de depender da Assembleia-Geral (AG) e foi constituída uma Assembleia de Delegados? É para esconder alguma coisa?
Tomamos as decisões não numa perspectiva de interesse individual mas tendo em conta aquilo que pensamos ser o mais adequado. As alterações aos Estatutos têm que ser aprovadas por 75% dos votos em AG e, neste caso, a aprovação ocorreu por 95% dos votos. Admito que existam pessoas que não concordem e que tenham projectos alternativos. Temos neste sector uma grande vantagem: as divergências que existem nunca são de carácter político, são, fundamentalmente, visões diferenciadas sobre a função da associação.
Mas porque é que criaram a Assembleia de Delegados?
Considero que os principais assuntos do sector devem ser debatidos internamente. As contas são enviadas a todos os associados, não temos nada a esconder. Tenho um arquivo com tudo aquilo que o Dr. Ferro Baptista tem dito e vamos ver se aquilo que ele diz é verdade - de que a associação está à beira da falência, que há buracos. E vamos ver se essas afirmações são compatíveis com um investimento de 130 milhões de euros e como é que a banca continua tranquilamente a financiar-nos.
Poucos dissidentes da ANF se atrevem a dar a cara para o criticar, à excepção de Clara Carneiro. Acha que têm medo de si?
Clara Carneiro contesta e critica porque nós não a apoiámos como bastonária para a Ordem dos Farmacêuticos porque tínhamos uma alternativa melhor. Até isso acontecer, ela fazia os maiores elogios à associação. Não sei o que é que as pessoas dizem em "off" e, por isso, não comento. Tudo aquilo que digo é em "on". Se têm medo de mim, têm que dizer, em "on", quais a razões.
Como encarou o volte-face na gestão do Hospital Amadora-Sintra, que vai deixar de ser gerido pela José de Mello Saúde (detida em 30% pela ANF) para voltar para as mãos do Estado?
É dramático fazerem-se experiências que depois não são avaliadas. Ainda hoje não estão definidos os indicadores essenciais para a gestão da Saúde. Isto é incompetência. Cada um tira da cartola os indicadores que mais lhe interessam. Acho que o desempenho do Amadora-Sintra deveria ter sido avaliado seguindo indicadores indiscutíveis, que fossem aplicados a todos os outros hospitais para que não restassem dúvidas sobre esta matéria. Estamos a queimar soluções de uma forma perfeitamente irresponsável. Neste país nada é avaliado em termos de rigor. Todas as decisões são de carácter político. Seguramente, que no Amadora-Sintra nem tudo correu bem mas o que eu gostava de saber é o que correu bem e o que correu menos bem.
Voltando ao universo empresarial da ANF. Qual é o retorno ao investimento que a ANF tem feito nesta área?
Nós fizemos investimentos há dois anos, não lhe posso dizer agora qual é o retorno. As contas estão publicadas e estamos muito tranquilos com os resultados da Alliance Unichem (o controlo da filial portuguesa da distribuidora de medicamentos custou 49 milhões de euros) e posso-lhe dizer que esta compra foi integralmente financiada pela banca e que teremos o retorno deste investimento em dez anos. Estou disponível para manter a responsabilidade por estes projectos se me quiserem. A José de Mello Saúde também está a investir, com a aposta em Espanha, por exemplo. A Finanfarma iniciou a sua actividade no ano passado e estamos a tratar da papelada para a transformar em IFIC (Instituição Financeira de Crédito Especializado), alargando o seu âmbito de actividade, e, logo no primeiro ano, deu resultados positivos (julgo que somos a quarta "factoring" do país). Na Polónia estamos numa fase inicial.
Tem alguma compensação financeira pelo seu trabalho na ANF?
Pago para estar na associação. Aliás, toda a direcção paga. Ando no meu carro e pago a gasolina. O telemóvel que utilizo também é meu. No dia em que sair da direcção não tenho que entregar nada. Acredito que as pessoas que vivem para benefícios económicos e pessoais tenham dificuldade em entender isto. Se calhar, se estivessem na minha situação teriam uma prática muito diferente. Sinto-me muito confortável quando um associado desta casa faz uma doação de três milhões de euros de uma colecção de arte (António Pine, farmacêutico da Guarda). Durmo de uma forma muito tranquila. Não tomo comprimidos para dormir.
Tem negócios seus. Em que áreas? Tem novos projectos?
Tenho vários familiares que são farmacêuticos. O meu pai, tia, primas, mulher e sobrinha. A minha mulher é analista e tenho uma empresa ligada à área do diagnóstico (Quilaban), que tem agora alguns produtos para as farmácias, nomeadamente, de ortopedia. Todas as empresas que tenho têm trinta anos (aliás, tenho uma última empresa na área da Saúde - clínicas em Cascais - e de certo modo até sou concorrente da José de Mello Saúde).
Mesmo assim consegue ter tempo para si. Para ter férias?
Faço à vontade um mês e meio de férias por ano. Tenho tempo para tudo. Sou de Cascais e, naturalmente, gosto de praia. Agora vou para Angola de vez em quando porque tive lá um 'desafiozinho'.
É um projecto seu ou envolve a ANF?
A Consiste está a instalar-se lá. Numa vez em que fui a Angola por questões relacionadas com a Consiste fui desafiado para um projecto pessoal dentro da área da Quilaban. Será uma extensão da minha actividade em Portugal.
É verdade que comprou um barco a meias com o seu amigo Costa Freire?
Somos sócios.
Reconhecem-lhe a capacidade para manter amizades sólidas e duradouras, como o engenheiro Costa Freire. É verdade?
Conheço o engenheiro Costa Freire do tempo da faculdade. Ele é casado com uma farmacêutica que foi colega da minha mulher, ambas estudaram em Angola. Não há nada de suspeito nessa situação. Se eu tivesse alguma coisa a esconder, seguramente, que me protegia dessas ligações.
Costa Freire era secretário de Estado da Saúde na altura do acordo entre a ANF e o Estado...
Esteve envolvido e bem porque aquele acordo foi sempre belíssimo para o Estado. Leonor Beleza e a sua mãe também estiveram envolvidas. Nós temos a nossa estrutura financeira que entrou em funcionamento no momento em que esse acordo acabou e vamos a ver se daqui a alguns anos o Estado não nos vem propor um novo acordo.
Tem essa ideia?
Nós estamos satisfeitos com a situação. Hoje as farmácias recebem a oito dias.
Tem filhos?
Não tenho filhos e essa é uma razão pela qual estou casado com a associação, tenho disponibilidade para isso. Por outro lado, como a minha mulher também é farmacêutica, e por isso entende bem os problemas da profissão, não tenho que perder muito tempo a justificar a minha actividade associativa, na qual ela também se envolve bastante.
Expresso de 25 de Abril de 2008.

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