Certo, por razões erradas
É necessário um Estado invulnerável a interesses. O nosso não o é
A história está cheia de decisões certas por razões erradas. O exemplo mais emblemático foi a descoberta da América. De acordo com a versão oficial, Colombo rumou à Índia mas acabou descobrindo a América, porque errou nos cálculos. Mas há exemplos mais comezinhos. O papel mata-borrão ou a cola do Post-it foram erros de fabrico que levaram à descoberta de novos produtos de consumo generalizado.
O primeiro-ministro anunciou há semanas que a gestão do Hospital Amadora-Sintra deixaria de ser privada e voltaria para mãos públicas. É também uma decisão certa, por razões erradas.
É a decisão certa porque o Estado, tal como o primeiro-ministro o afirmou, tem custos administrativos muito vultuosos com a aplicação do actual contrato. Mais correctamente, o Estado nem sabe sequer quanto lhe custou a gestão privada do hospital. É, pois, a decisão certa pelas piores razões: o reconhecimento da incapacidade e da debilidade do Estado. Esqueçamos este caso emblemático, esqueçamos este Governo e este grupo económico e centremo-nos apenas nos problemas do Estado que são cruciais num regime democrático.
Um contrato de gestão (apenas gestão) de uma grande infra-estrutura pública tem de ser um contrato de longo prazo. Pensar, delinear e negociar um contrato destes é muito difícil e o Estado não tem essa capacidade. E não estamos a falar tanto de capacidade técnica, mas antes da capacidade do Estado para enfrentar interesses num ambiente de incerteza.
É que desenhar um contrato de gestão, de longo prazo, que seja equilibrado e não seja uma fonte de disputas financeiras e legais é muito difícil. E a razão é simples: temos de prever uma infinidade de acontecimentos que podem, eventualmente, ocorrer, durante cinco ou sete anos, atribuir-lhes um custo e um pagamento por parte do Estado. Como o futuro é incerto, os contratos nunca podem prever todas as situações e os conflitos são inevitáveis. Portanto, é sempre necessário prever contratualmente formas de resolução de conflitos.
Há formas arbitrais de ultrapassar estes problemas, mas para tal é necessário um Estado invulnerável a interesses. O nosso não o é. Portanto, as indemnizações compensatórias são sempre problemáticas e sujeitas a disputas que duram anos.
Além disso, os árbitros são pessoas e quem vai acreditar (sempre) na sua independência? Vejamos: tipicamente, de um lado há um grupo económico com um longo passado e um valioso futuro; do outro temos um ministro que, inevitavelmente, acaba sempre por sair de cena. Para que lado cairá o "coração" independente do árbitro? É que num país pequeno, em que todos se conhecem, um grupo económico é sempre um cliente actual ou um cliente potencial.
Como estar seguro de que um contrato foi correctamente pensado quando, de um lado, há um grupo económico que está para ficar e, do outro, há um Estado dependente, financeiramente débil, muitas vezes sem capacidade técnica para entender o que está em causa e com um ministro de saída? (Quase) todos os ministros pretendem mostrar serviço hoje, porque os custos serão para pagar daqui a uns anos, por outro ministro.
Para além da elaboração do contrato, há que avaliar se este está, de facto, a ser cumprido. Essa avaliação é tanto mais difícil quanto o problema é de "quantidade" e de "qualidade" de um serviço prestado, seja por uma auto-estrada, uma ponte ou um hospital. Mais uma vez, para além da dificuldade de medir a quantidade/qualidade, os mesmos obstáculos aparecem: independência pessoal; capacidade técnica; inexistência de um Estado forte...
Como se tudo isto não bastasse, a nova lei da responsabilidade extracontratual do Estado veio dificultar ainda mais a acção dos agentes do Estado. Nenhum funcionário público vai querer responsabilizar-se por decisões financeiramente relevantes, porque poderá arruinar o resto dos seus dias, tanto financeira como moralmente.
Não sou apenas eu que afirmo tudo isto, é o Tribunal de Contas em trabalho recente. É também José Mouraz Lopes, especialista em corrupção e ex-PJ, que o afirmou ao Diário Económico.
Acabar com contratos de gestão privada de infra-estruturas públicas é abdicar das vantagens da gestão privada e só pode ser uma boa decisão, porque reconhecemos, implicitamente, que este Estado é incapaz de celebrar, fazer cumprir e aplicar este tipo de contratos. É uma decisão certa pelos piores motivos. E será que este Estado vai ser capaz de gerir? Será este o Estado de que necessitamos numa democracia representativa?
ET: Réplica. Há alguns meses tenho vindo a defender que os Governos não devem, neste momento, reduzir impostos ou expandir os gastos, porque a crise actual não é uma questão (fundamentalmente) de procura mas de uma eventual necessidade de socorrer os mercados financeiros. Esta posição é verdadeira para todos os Governos, incluindo o nosso. Comentários houve à minha posição, mas não senti necessidade de elaborar grandes réplicas, pois, entretanto, outros o fizeram por mim. Jean--Claude Trichet (presidente do BCE), Dominique Strauss--Khan (que lidera o FMI) e o Institute of International Finance (representante de grandes instituições financeiras) todos vieram em minha defesa, sem o saberem. Em resumo, salientaram que a crise ainda não passou, que a crise é global e, finalmente, que os Governos deviam estar preparados para intervir nos mercados financeiros, salvando bancos em crise. Para algum leitor menos atento, tal já foi necessário (que se saiba) no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos.
A réplica às críticas erróneas que me fizeram fica feita. Aos que preferiram o ataque pessoal, recomendo (inutilmente) que deixem de fazer fretes...
Luis Campos e Cunhar, JP, 18.04.08
A história está cheia de decisões certas por razões erradas. O exemplo mais emblemático foi a descoberta da América. De acordo com a versão oficial, Colombo rumou à Índia mas acabou descobrindo a América, porque errou nos cálculos. Mas há exemplos mais comezinhos. O papel mata-borrão ou a cola do Post-it foram erros de fabrico que levaram à descoberta de novos produtos de consumo generalizado.
O primeiro-ministro anunciou há semanas que a gestão do Hospital Amadora-Sintra deixaria de ser privada e voltaria para mãos públicas. É também uma decisão certa, por razões erradas.
É a decisão certa porque o Estado, tal como o primeiro-ministro o afirmou, tem custos administrativos muito vultuosos com a aplicação do actual contrato. Mais correctamente, o Estado nem sabe sequer quanto lhe custou a gestão privada do hospital. É, pois, a decisão certa pelas piores razões: o reconhecimento da incapacidade e da debilidade do Estado. Esqueçamos este caso emblemático, esqueçamos este Governo e este grupo económico e centremo-nos apenas nos problemas do Estado que são cruciais num regime democrático.
Um contrato de gestão (apenas gestão) de uma grande infra-estrutura pública tem de ser um contrato de longo prazo. Pensar, delinear e negociar um contrato destes é muito difícil e o Estado não tem essa capacidade. E não estamos a falar tanto de capacidade técnica, mas antes da capacidade do Estado para enfrentar interesses num ambiente de incerteza.
É que desenhar um contrato de gestão, de longo prazo, que seja equilibrado e não seja uma fonte de disputas financeiras e legais é muito difícil. E a razão é simples: temos de prever uma infinidade de acontecimentos que podem, eventualmente, ocorrer, durante cinco ou sete anos, atribuir-lhes um custo e um pagamento por parte do Estado. Como o futuro é incerto, os contratos nunca podem prever todas as situações e os conflitos são inevitáveis. Portanto, é sempre necessário prever contratualmente formas de resolução de conflitos.
Há formas arbitrais de ultrapassar estes problemas, mas para tal é necessário um Estado invulnerável a interesses. O nosso não o é. Portanto, as indemnizações compensatórias são sempre problemáticas e sujeitas a disputas que duram anos.
Além disso, os árbitros são pessoas e quem vai acreditar (sempre) na sua independência? Vejamos: tipicamente, de um lado há um grupo económico com um longo passado e um valioso futuro; do outro temos um ministro que, inevitavelmente, acaba sempre por sair de cena. Para que lado cairá o "coração" independente do árbitro? É que num país pequeno, em que todos se conhecem, um grupo económico é sempre um cliente actual ou um cliente potencial.
Como estar seguro de que um contrato foi correctamente pensado quando, de um lado, há um grupo económico que está para ficar e, do outro, há um Estado dependente, financeiramente débil, muitas vezes sem capacidade técnica para entender o que está em causa e com um ministro de saída? (Quase) todos os ministros pretendem mostrar serviço hoje, porque os custos serão para pagar daqui a uns anos, por outro ministro.
Para além da elaboração do contrato, há que avaliar se este está, de facto, a ser cumprido. Essa avaliação é tanto mais difícil quanto o problema é de "quantidade" e de "qualidade" de um serviço prestado, seja por uma auto-estrada, uma ponte ou um hospital. Mais uma vez, para além da dificuldade de medir a quantidade/qualidade, os mesmos obstáculos aparecem: independência pessoal; capacidade técnica; inexistência de um Estado forte...
Como se tudo isto não bastasse, a nova lei da responsabilidade extracontratual do Estado veio dificultar ainda mais a acção dos agentes do Estado. Nenhum funcionário público vai querer responsabilizar-se por decisões financeiramente relevantes, porque poderá arruinar o resto dos seus dias, tanto financeira como moralmente.
Não sou apenas eu que afirmo tudo isto, é o Tribunal de Contas em trabalho recente. É também José Mouraz Lopes, especialista em corrupção e ex-PJ, que o afirmou ao Diário Económico.
Acabar com contratos de gestão privada de infra-estruturas públicas é abdicar das vantagens da gestão privada e só pode ser uma boa decisão, porque reconhecemos, implicitamente, que este Estado é incapaz de celebrar, fazer cumprir e aplicar este tipo de contratos. É uma decisão certa pelos piores motivos. E será que este Estado vai ser capaz de gerir? Será este o Estado de que necessitamos numa democracia representativa?
ET: Réplica. Há alguns meses tenho vindo a defender que os Governos não devem, neste momento, reduzir impostos ou expandir os gastos, porque a crise actual não é uma questão (fundamentalmente) de procura mas de uma eventual necessidade de socorrer os mercados financeiros. Esta posição é verdadeira para todos os Governos, incluindo o nosso. Comentários houve à minha posição, mas não senti necessidade de elaborar grandes réplicas, pois, entretanto, outros o fizeram por mim. Jean--Claude Trichet (presidente do BCE), Dominique Strauss--Khan (que lidera o FMI) e o Institute of International Finance (representante de grandes instituições financeiras) todos vieram em minha defesa, sem o saberem. Em resumo, salientaram que a crise ainda não passou, que a crise é global e, finalmente, que os Governos deviam estar preparados para intervir nos mercados financeiros, salvando bancos em crise. Para algum leitor menos atento, tal já foi necessário (que se saiba) no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos.
A réplica às críticas erróneas que me fizeram fica feita. Aos que preferiram o ataque pessoal, recomendo (inutilmente) que deixem de fazer fretes...
Luis Campos e Cunhar, JP, 18.04.08
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