sábado, março 22, 2008

Privados querem escolher os seus internos


Dar mais poder às unidades hospitalares na selecção dos médicos que vão formar foi uma ideia lançada por José Roquette, e apoiada por Jorge Mineiro e Pais Clemente. Mas tem, por enquanto, a oposição da Ordem dos Médicos.

A possibilidade de os hospitais poderem escolher os seus internos foi o ponto mais quente de uma mesa-redonda organizada pela Associação Portuguesa de Engenharia da Saúde sobre o futuro dos internatos médicos nos sectores público e privado. Convidado para fazer uma intervenção inicial, o director clínico do Hospital da Luz, José Roquette, lançou o assunto, colocando como um dos pressupostos da existência de internatos nas unidades privadas «a possibilidade de [estas] escolherem os internos».
As opiniões dos especialistas convidados para a sessão, realizada a 12 de Março no auditório da Ordem dos Médicos, dividiram-se em relação a esta questão. Ao lado de José Roquette esteve o director clínico do Hospital Cuf Descobertas, Jorge Mineiro, que questionou por que razão os hospitais não podem escolher os seus internos, «se hoje em dia têm a possibilidade de ir “buscar o senhor A”».

Da mesma forma, Pais Clemente, presente em representação da European Medical Association, também se mostrou favorável a um método de escolha dos internos. O otorrinolaringologista disse não concordar com o método de avaliação instituído e criticou o facto de o processo de selecção ser «muito burocrático» e estar «muito centralizado no Ministério da Saúde». Para o médico, os serviços que acolhem os internos «têm uma palavra a dizer não só na formação, mas também no acesso» dos jovens médicos. Por isso, na sua opinião, «é preciso dar voz aos serviços e dar voz aos privados».

Os «contras»
Apesar dos apoios a esta ideia serem significativos, encontram um «adversário» de peso, nomeadamente a Ordem dos Médicos (OM). A representá-la estava o vice-presidente do Conselho Regional do Sul, João de Deus, que afirmou que os responsáveis da instituição não podem, «pelo menos nesta fase», concordar com uma medida destas. O médico sublinhou que a escolha dos internos por parte dos hospitais «poderia criar desigualdade» e que uma forma de acesso nesses termos «leva sempre a alguma suspeita».
Mesmo depois de José Roquette esclarecer, mais tarde, que quando fala na hipótese de escolha dos internos isso é desejável para todos, e não só para os privados, João de Deus não alterou o seu discurso. Pelo contrário, voltou a frisar que tem «muita dificuldade em usar outra forma de acesso». E culpou a «cultura latina», afirmando que esta constitui um entrave a um processo de selecção protagonizado pelos hospitais.
Uma opinião que foi ao encontro do que já havia sido dito pelo presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, Rui Guimarães, quando lembrou que Itália é um país onde os hospitais podem escolher os internos, mas que «é uma vergonha» em termos de formação. Mostrando-se favorável a que o «acesso seja feito como até agora», Rui Guimarães manifestou a opinião de que um sistema em que as unidades hospitalares tenham formas de escolha dos seus internos resulta «em países com culturas mais frias», conseguindo de facto «combinar uma seriação universal com alguma ponderação».

Na sua intervenção antes do debate, Cláudia Melo, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, começou por referir que nos internatos, sejam eles no sector privado ou no sector público, o «critério de admissão deve ser universal» e que tem de ser «salvaguardada a igualdade de acesso». Apesar desta ressalva por várias vezes repetida, a jovem dirigente adiantou, depois de ouvir as intervenções dos participantes, que a associação que representa está disposta a «estudar e discutir» uma proposta neste sentido.
A mesa-redonda contou ainda com a participação de Serafim Guimarães, presidente do Conselho Nacional do Internato Médico, Zelinda Cardoso, da Administração Central do Sistema de Saúde, e Sérgio Coimbra, director clínico do HPP Norte.

A urgência das carreiras médicas no privado
Indissociável da realização de internatos médicos no privado parece ser a existência de carreiras neste sector. Pelo menos é essa a opinião do director clínico do Hospital Cuf Descobertas, Jorge Mineiro, ao dizer que os «internatos estão muito ligados às carreiras médicas dentro dos hospitais privados», pelo que considera ser essa uma medida «urgente». Da mesma forma parece pensar José Roquette. O director clínico do Hospital da Luz sublinhou que estão «à espera» das orientações da Ordem dos Médicos (OM), afirmando mesmo que se estas não vierem entretanto, irão «avançar até ao fim do ano com carreira interna» naquele hospital.
Na resposta, João de Deus indicou que os responsáveis da OM pretendem «estabelecer um modelo de carreiras transversal ao público e ao privado». No entanto, afirmou estarem «à espera de uma abertura do Ministério da Saúde», acrescentando que «se o Ministério quiser, será a própria Ordem a fazer» o modelo.

«Disponíveis para investir»
Os custos da formação foram motivo para uma questão levantada por Sérgio Coimbra. O director clínico dos HPP Norte chamou a atenção para o facto de a formação ter «custos acrescidos» que são «inevitáveis», como, por exemplo, a execução de técnicas de diagnóstico que não são absolutamente necessárias. Por isso, perguntou «como vai ser solucionado» este aumento da despesa.
Na resposta, José Roquette foi peremptório: «Estamos disponíveis para investir.» O director clínico do Hospital da Luz esclareceu ainda que «os custos acrescidos não se podem reflectir no doente», até porque os segurados compram um «pacote» de serviços, pelo que o preço não é alterado.

Formação vista como investimento
José Roquette tinha afirmado, na sua intervenção no início do debate, que as empresas privadas na área da Saúde consideram o ensino «como um investimento, não como um custo». Apesar disso, o presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, Rui Guimarães, não resistiu a perguntar o porquê deste interesse, atendendo a que «os privados visam o serviço ao cliente e o lucro».
Mas foi Serafim Guimarães, presidente do Conselho Nacional do Internato Médico, que fez questão de explicar os motivos pelos quais os privados encaram a formação como um investimento. É que, na sua opinião, «a única maneira de um hospital não se reduzir» e «manter o grau de qualidade da investigação» e dos próprios cuidados assistenciais, é formando médicos.
Tempo de Medicina, 24.03.08

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