segunda-feira, março 10, 2008

JMA


fala sobre o processo de reestruturação da rede de Urgência

É preciso «fazer já um calendário de aberturas e requalificações»
Membro da Comissão Técnica de Apoio ao Processo de Requalificação da Rede de Urgência, José Manuel Almeida fala sobre esta reforma, das suas vicissitudes e das principais críticas que lhe são apontadas. «Fazer já um calendário de aberturas e requalificações» é uma das medidas que defende.

«Tempo Medicina»O Ministério da Saúde demorou a formalizar os pontos da rede de referenciação de Urgência/emergência. A reforma ficou comprometida?

José Manuel Almeida — O Ministério formalizou os pontos de rede. Este era um passo político fundamental para definitivamente acertar a rede de referenciação entre eles e para planear o investimento que é preciso fazer para que esta rede funcional se comporte muito melhor e de acordo com a expectativa da população do País, por inteiro, e não de interesses locais. Esta publicação é o reflexo da intenção do Governo de levar por diante a reforma, o que atesta a grande coragem com que está a enfrentar os verdadeiros problemas do SNS. Não posso deixar de saudar Correia de Campos e Carmen Pignatelli, que permitiram que esta reforma estruturante se iniciasse. Agora é necessário fazer já um calendário de aberturas e requalificações, nomeadamente na questão dos novos serviços de Urgência básica e dos serviços de Urgência polivalente que não têm conseguido, ao longo dos anos, assumir essa condição. Esta calendarização será, do meu ponto de vista, mais um sinal inequívoco das intenções do Governo.

«TM»Esta é uma reforma para concretizar em quantos anos?

JMA — É difícil dizer. O calendário de aplicação destas medidas não é feito por nós. É uma reforma difícil e deve ser faseada e gradual, como, aliás, está escrito nos documentos. Querer ser eficiente e poupar recursos não é um erro, mas esta reforma não admite a acusação de economicismo, porque vai precisar, para o esforço de qualificação que envolve, de investimentos avultados. Queremos serviços de Urgência bem equipados, em termos de instalações, de soluções técnicas e de alocação de recursos humanos qualificados.

«TM»Foram definidos 89 pontos na rede de Urgência, em vez dos 83 definidos na proposta da comissão...

JMA — Um ministro da Saúde tem das reformas todas uma visão que é transversal, não tem apenas o problema das Urgências para resolver. E tem parceiros, tem realidades locais que podem exigir ajustes. É evidente que, do ponto de vista técnico, não me parece bem negociar coisas, mas percebo que isso possa acontecer. O ministro anterior foi acusado de encerrar serviços de Urgência, mas a nossa proposta era mais restritiva.

«TM»Os protocolos entre o Ministério e as autarquias traíram, de algum modo, a proposta da comissão?
JMA — Os protocolos que foram feitos com os municípios significam que houve uma negociação do Ministério da Saúde, para substituir uma coisa que não estava bem, possibilitando uma solução intermédia até que se complete a reforma dos cuidados de saúde primários.
«TM»O que se ganha com a consulta aberta?
JMA — A consulta aberta é uma alternativa intermédia até à reforma global dos cuidados de saúde primários, que é também gradual. O futuro, do meu ponto de vista, são as USF, que já têm na sua missão uma forma muito mais racional e eficaz de corresponder às expectativas de uma procura não programada. Com o crescimento das USF, a consulta aberta deixará de fazer sentido, mas agora é uma solução intermédia para acabar com o engano aos doentes, é a substituição daquilo que era uma consulta e não uma verdadeira Urgência, por uma verdadeira consulta, integrada no ficheiro do médico. Obviamente, esta ideia não poderia ser considerada isoladamente e sem um significativo reforço dos meios e da resposta pré-hospitalar. Claro que tudo isto tem pontos discutíveis. Mas este conceito de consulta aberta já resulta de um acordo com a MCSP.

«Médicos com experiência» nos SUB

«TM»Como está o processo de criação dos serviços de Urgência básica (SUB)?
JMA — Tanto quanto sei, na região Centro, alguns dos futuros SUB estão em obra, para adequar as suas instalações. Outros estão a tratar do equipamento. E outros, ainda, a preparar-se para a formação da Triagem de Manchester. Estou envolvido, em alguns casos, neste processo, porque sempre dei a colaboração necessária. No que toca aos SUB para a região Centro, pelo que sei, está a ser feito um esforço para se determinar um calendário de aberturas. Não se trata, como lamentavelmente alguns têm feito crer, de substituir um SAP por um SUB. O SUB terá na sua actividade e missão as situações de urgência e de emergência. Os SAP e os SASU, e as outras 14 ou 15 denominações para a mesma tarefa, eram um problema da área dos cuidados de saúde primários e os SUB são um problema da área de cuidados diferenciados da rede de Urgência/emergência.
«TM»Há médicos suficientes para trabalhar nos SUB? Que formação deverão ter?
JMA — Se para haver tantos SAP abertos — alguns para atenderem um doente entre as 00:00 h e as 08:00 h — havia médicos, também os haverá para os SUB, temos de fazer um esforço. E o SUB não vai ter dois médicos, o que está escrito é que terá pelo menos dois médicos e pelo menos dois enfermeiros. Porque pode ser necessário transferir e acompanhar o doente. Não há uma especialidade definida para os médicos que vão trabalhar nos SUB, mas contamos ter médicos com competência mínima para executarem as tarefas exigidas num serviço deste tipo, como o suporte avançado de vida e a estabilização inicial do doente grave. Contamos também com a Ordem para nos ajudar a definir quais as entidades prestadoras dessa formação.
«TM»Vai ser exigida a competência em Emergência?
JMA — Não será exigida. Apesar de não fazer parte deste trabalho, todos nós, na comissão, temos a visão de que é necessário, rapidamente, criar a especialidade de Medicina de Urgência, mas sabemos que nem toda a gente está de acordo connosco. O que pretendemos é que os médicos cada vez mais se dediquem àquela tarefa e para isso tenham qualificações.

«Encarar o técnico de emergência médica»

«TM»A reforma das Urgências implica o desenvolvimento de outras áreas, como a rede de emergência pré-hospitalar?
JMA — Nem sempre tenho estado de acordo com o INEM, mas a emergência, nos últimos anos, evoluiu muitíssimo, já nem falo no número de viaturas. Na maior parte das situações de Urgência/emergência o tratamento deve começar na rua e essa abordagem deve ser feita através do 112. Para que isso funcione é necessário, como há muito tem salientado a comissão, profissionalizar os serviços mínimos, definir a rede de ambulâncias de transporte e de socorro, integrando as do INEM, as dos bombeiros e as da Cruz Vermelha, e começar a encarar a formação de técnicos de emergência médica, profissionais capazes de receber delegações de actos médicos, enquadráveis nas determinações da Ordem.
«TM»A comissão defende uma maior medicalização do socorro?
JMA — É o desejável, até onde for possível, mas temos de admitir que não podemos ter um médico em todas as esquinas. Neste momento, exigir um médico em qualquer viatura pré-hospitalar não faz sentido, em nenhuma parte do Mundo. O que temos de ter é protocolos de actuação, sob controlo médico, que facilitem a aplicação de alguns actos e de algumas medidas terapêuticas. A comissão aceita, com clareza, começar a encarar o técnico de emergência médica, dotando-o com um plano de formação claramente estabelecido, aprovado nas instâncias certas e de acordo com as determinações da Ordem dos Médicos, que deve dar o seu parecer sobre esse plano de formação.
«TM»Vai demorar formar estes técnicos?
JMA — Vai demorar o tempo que demorar aquele conjunto de decisões, mais o tempo de formação inscrito no plano já proposto.

Helitransporte como táxi aéreo é ineficaz e caro

«TM»As SIV são uma alternativa?
JMA — A comissão disse que não estava de acordo com as SIV, porque o seu aparecimento não correspondeu a uma reforma do INEM. Foi, antes, uma medida reactiva a um conjunto de problemas. Mas se admito a formação de técnicos de emergência, também admito que possa estar um enfermeiro numa viatura, desde que tenha a formação adequada. O que é necessário é que esta questão das SIV se enquadre numa verdadeira reforma do atendimento pré-hospitalar de emergência, que exista a formação adequada e esteja assegurado um rigoroso controlo médico, porque não é suposto que não médicos pratiquem actos médicos sem delegação de competências e sem o controlo de quem delega.
«TM»E os chamados helicópteros SIV?
JMA — Essa questão é já muito diferente. Na emergência pré-hospitalar um helicóptero deve ser um meio de tratamento no local, que envolve quase sempre circunstâncias muito adversas, algumas, aliás, relacionadas com a própria fisiologia do voo e que exigem profissionais muito treinados. Se o helitransporte não for assim encarado, estamos a falar de um táxi aéreo que, para além de ineficaz, ficará demasiado caro. Só é exequível falar de helicóptero se tiver um médico e com significativa experiência na área da emergência pré-hospitalar.

«Temos de ter uma rede formal que toda a gente entenda»

«TM» - A Comissão Técnica de Apoio ao Processo de Requalificação das Urgências já concluiu o seu trabalho?
JMA - O trabalho da comissão está acabado, mas parece, para já, não ser conhecido por toda a gente. A comissão tinha o compromisso não apenas de escolher onde é que geograficamente deviam estar localizados os pontos de Urgência, tendo em conta uma série de critérios, mas também verificar como é que estes se deveriam relacionar entre si, através de uma rede de referenciação. Um serviço de Urgência não faz qualquer sentido se considerado isoladamente e se os parceiros do lado não o entenderem como um serviço de Urgência. Outra das tarefas da comissão foi a elaboração de um conjunto de recomendações de boas práticas nos serviços de Urgência, para que funcionem melhor. Também foi entregue.
«TM» - Como foi feita a rede de referenciação?
JMA - A rede de referenciação está pronta e foi entregue, ainda ao anterior ministro. Arquitectámos esta rede sobre os 83 pontos de Urgência e penso que não haverá grandes dificuldades em incorporar mais alguns. Tentámos cumprir alguns pressupostos, como colocar o cidadão mais próximo do serviço de Urgência. Com este conjunto de pontos, mais de 90% das pessoas ficam a menos de meia hora de um serviço de Urgência. Elaborámos uma tabela com todos os concelhos, com as freguesias desses concelhos, e com as distâncias, em minutos, em relação à unidade polivalente ou médico-cirúrgica mais próxima. O que está em causa é que temos de ter uma rede formal de Urgência/emergência, uma rede única, que toda a gente entenda, para tratar o doente urgente ou emergente, e sobre a qual deve incidir a avaliação e a exigência de prestação de contas. Todos têm o direito de saber qual é o seu destino se tiverem um AVC ou se chamarem o 112.
«TM» - O que tem sido feito nesta área?
JMA - Tem sido feito um esforço imenso, através da Coordenação nacional para as Doenças Cardiovasculares, presidida pelo professor Seabra-Gomes, na área da emergência que mata, o AVC e as doenças coronárias. Saliente-se que já arrancou a fase promocional, para a população de todo o País, de sinais e sintomas de alarme que devem levar a contactar, de imediato, a emergência, evitando o recurso por livre iniciativa ao que está mais próximo, mas que poderá ser menos adequado. Saliente-se, também, o esforço em formação de recursos humanos e em reforço de viaturas convenientemente equipadas para a imediata abordagem destas situações e, finalmente, uma referência às unidades de grande diferenciação que aquelas situações clínicas exigem e que, como não poderia deixar de ser, estão incluídas em hospitais contemplados na nossa proposta de rede de referenciação.
«TM» - Há críticas ao facto de, nessas contas da comissão, não ter sido calculado o tempo de chegada da ambulância até ao doente?
JMA - Aí entra a rede de emergência pré-hospitalar. Nós, aliás, propusemos tempos-alvo, meramente indicativos do que poderiam ser tempos exequíveis para o atendimento pré-hospitalar, e sem fugir ao que se passa no resto da Europa e até nos Estados Unidos. A reforma da emergência médica pré-hospitalar terá de ser capaz de responder pela eficácia desse tempo de socorro no local. Para além disso, com estes pontos de rede temos mais de 90% da população a menos de 45 minutos de um ponto de urgência com capacidade cirúrgica, médico-cirúrgica ou polivalente. A maior parte da morte evitável em trauma poderá sê-lo se os doentes forem logo para um serviço com capacidade cirúrgica, o que significa que o ponto mais próximo nem sempre é o mais adequado. Há população que está a 30 minutos do ponto mais próximo, mas temos, também, de fazer as contas da distância para a Urgência médico-cirúrgica. A rede de referenciação contempla, também, estas duas distâncias.

«Não é justo falar em política de encerramentos»

«TM» - Criticou-se o facto de a reforma ter começado pelo encerramento de SAP e de Urgências, sem haver alternativas consolidadas...
JMA - A propósito da rede de que estamos a falar, a rede de Urgência/emergência, não é justo falar numa política de encerramentos. Propusemos no nosso trabalho 83 pontos de Urgência, portanto, um aumento de 39 serviços, consignados na rede de 2001, para 83, e o único que encerraria, de facto, era a Urgência do Hospital de Curry Cabral, mas que o anterior ministro decidiu, há já algum tempo, que não ia fechar. Todos os outros, alguns que agora até têm galvanizado os protestos, não estavam formalizados. Também está escrito que para avançar nas diversas fases da reforma é necessário encontrar alternativas credíveis para não deixar as populações sem Medicina de proximidade, que é a missão dos cuidados primários e não da rede de Urgências. Não é mais admissível induzir esta confusão: uma coisa é falar de acesso a médico, outra, bem diferente, é falar de acesso a serviço de Urgência. Pode-se criticar a calendarização, mas chamar serviço de Urgência a um SAP é um erro que pode custar vidas.
«TM» - A reforma das Urgências implica, portanto, reformas noutras áreas, como a rede de emergência pré-hospitalar e os cuidados de saúde primários?
JMA - A reforma da rede de Urgências depende também do desenvolvimento dos cuidados de saúde primários e da rede de emergência pré-hospitalar. Queremos corresponder a uma expectativa que significa a melhor resposta às situações clínicas de urgência e emergência, não nos substituindo aos cuidados primários, que têm a sua missão própria e que está, erradamente, a ser imputada à rede de Urgências. Continua a subir o número de episódios de Urgência, ao mesmo tempo que sobe o número de consultas, e assistimos ao envelhecimento da população e ao aumento da sinistralidade. Mas a este aumento de pressão sobre a resposta não podemos responder com um grande conjunto de unidades de saúde disponíveis a toda a hora e para todos os casos. Temos de organizar os serviços para dar as respostas adequadas. O que não faz sentido é dizer que uma determinada «urgência» tem de ficar aberta por uma razão qualquer e ter apenas um clínico geral a procurar dar resposta a uma plêiade de situações. Isto não é justo para a qualidade do trabalho médico e é ainda menos justo para os doentes urgentes que ali recorrerem, por má sinalização e mau funcionamento de uma rede anárquica e não formal.
Tempo de Medicina 10.03.08